Lepra - Hanseníase: Perseguição e clausura


hanseniase3Abandonados pelos parentes aos primeiros sinais de hanseníase, doentes eram muitas vezes caçados e trancafiados em colônias, que funcionavam como verdadeiras cidades, com cinemas, delegacias e armazéns
Renata Mariz Correio Braziliense

Data de 1.450 anos antes de Cristo o livro de Levítico, mencionado acima, mas sua mensagem parece bem atual para Cecília Alves de Lima. Natural do Tocantins, a senhora de corpo franzino descobriu os primeiros sinais da doença aos 11 anos. A repulsa começou na família. “Minha mãe queria me deixar escondida no mato até eu morrer”, lembra Cecília. Abandonada, não restou outra alternativa para ela, senão mendigar na rua. Logo a polícia recolheu Cecília e a levou para onde os “impuros” tinham que permanecer: os leprosários, fechados a grade, com vigias em todas as saídas.
Houve 101 colônias de isolamento compulsório no Brasil, por ação do Estado, que determinou à polícia sanitária, já extinta, que trancafiasse os doentes. A captura tinha de ser feita a qualquer custo. Não são raros os relatos de gente que foi laçada, no meio do mato, feito bicho, pelas autoridades. Levados de trem ou num carro de ferro todo fechado, eram despejados na porta do leprosário mais próximo. “Aqui era o primeiro choro de todo mundo”, conta Vicente Pinto Leite, apontando para a antiga guarita de entrada da Colônia Santa Marta, em Goiânia.
Ele mora lá até hoje, aos 70 anos. A Santa Marta faz parte das 33 colônias que ainda estão em funcionamento no Brasil. Elas abrigam ex-internos que, mesmo após o fim da política de exclusão, determinada por lei em 1962, mas cumprida de forma integral mais de 20 anos depois, continuaram discriminados. “Fora dos muros do isolamento, a vida também foi muito difícil. Éramos tirados dos ônibus, ninguém dava emprego para leproso, não”, conta Erasmo de Freitas, recolhido aos 13 anos, hoje com 70. “Nem com a família eu pude contar, nunca recebi uma visita, não tenho saudade de ninguém, meus companheiros são o povo daqui.”
Vicente, Cecília, Erasmo — e tantos outros que foram obrigados a abandonar a família, tiveram seus filhos tomados, comeram alimentos estragados, trabalharam com feridas expostas às moscas, dormiram em cadeias — são protagonistas de um drama oculto no Brasil. Embora resignados, contam com tristeza o que passaram dentro das colônias de isolamento. “Minha filha, isso era horrível, uma clausura. A gente tentava fugir, mas os guardas perseguiam a gente. Quem fugisse, ia para a cadeia. Colocavam sal no chão, para torturar ainda mais os rebeldes”, conta Erasmo.
Universo paralelo
As colônias, construídas em fazendas abandonadas, que chegavam a abrigar 5 mil pessoas, tornaram-se verdadeiras cidades no período do confinamento. Havia cinema, delegacia, igreja, armazém. Não tinha ninguém “de saúde”, como os moradores se referem às pessoas livres da hanseníase. Todo mundo, exceto os diretores das colônias, era gente com a doença. Nas enfermarias, uns cuidavam dos outros. Médicos só apareciam vez por outra. E de longe.
“Ninguém chegava perto da gente”, lembra Vicente. Os doentes, quando recebiam visita de familiares ou de médicos, eram colocados numa espécie de câmara, chamada parlatório. De um lado do vidro, ficava o hanseniano, de outro, fora da colônia, o interlocutor. As cartas que eles mandavam para parentes tinham de ser descontaminadas numa estufa, antes de sair dos portões do leprosário.
A segregação chegou a tal ponto em alguns dos 101 leprosários de isolamento compulsório construídos pelo governo brasileiro que até moeda própria existia. No Pará, a prática foi muito difundida, pois a população tinha medo de que o contágio da doença se desse por meio do dinheiro.
O estigma de ter uma doença associada à maldição, impureza do sangue e outras crendices levantadas desde os tempos bíblicos levou Geraldo Celestino, hoje com 84 anos, a só registrar seu casamento, com uma interna, quando tivessem alta. “Esperei o quanto foi preciso. Não queria que o nome ‘Colônia Santa Marta’ aparecesse no meu documento, o preconceito era terrível”, lembra.
Ao contrário de Geraldo, Rita Pereira Neres casou, de véu e grinalda, com cerimônia religiosa, festa e tudo a que tinha direito. E não foi só uma vez. A senhora, hoje com 70, dos quais 53 vividos na colônia, teve três maridos, todos falecidos. A foto da última cerimônia está na parede. Na cabeça, as lembranças continuam vivas. “Apesar de tudo, fomos felizes aqui. Não tínhamos mesmo para onde ir, perdemos todos os laços com parentes, e aqui, pelo menos, não há discriminação”, diz, sorridente, com os dois membros superiores deformados.
Quem ficar leproso, apresentando quaisquer desses sintomas, usará roupas rasgadas, andará descabelado, cobrirá a parte inferior do rosto e gritará: – Impuro! – Impuro! (Levítico 13:45)

Família, uma raridade

Iraci Maria fugiu para uma colônia em Anápolis a fim de evitar que a separassem do filho
Ficar grávida na colônia de isolamento, por mais que o bebê fosse bem-vindo, era motivo de tristeza. Além do medo de transmitir a doença até então desconhecida ao filho, as futuras mães sabiam que muito provavelmente não conseguiriam sequer ver a criança. “Às vezes, eles só mostravam a carinha e carregavam logo”, lembra Ana Coelho Cesário. O destino dos recém-nascidos era o preventório, um local de onde poucas crianças retornavam ao convívio familiar. Na maioria das vezes, a informação era de que tinham morrido.
“Hoje meu filho caçula teria 45 anos. Não me mostraram uma certidão de óbito, nada dele”, lamenta Ana Coelho Cesário. Após 20 anos confinada em uma colônia, a senhora de 73 anos conseguiu sair e terminar de criar os dois filhos, que ficaram com a sogra na época do isolamento. Ana tem hoje o que poucos hansenianos do período das colônias podem exibir: uma família. São 10 netos e sete bisnetos.
Ela mora no bairro Novo Paraíso, em Anápolis (GO), onde funcionou um leprosário improvisado. Na verdade, a área era um depósito de lixo. Mas se tornou uma espécie de quilombo. Servia de abrigo para aqueles que fugiam da vigilância das colônias à procura de uma vida melhor, entre iguais, para evitar o preconceito. Lá chegou Iraci Maria Silva Santos, em 1969, com um filho nos braços. “Quando descobri que tinha esse lugar onde não roubavam nossos meninos, nem pensei duas vezes”, conta.
Como uma colônia extra-oficial, a comunidade de hansenianos em Anapólis se organizou a ponto de receber algumas regras da prefeitura da cidade. Somente às terças e sextas-feiras, por exemplo, era permitido sair às ruas para pedir esmolas. “Havia polícia, mas eles não prendiam a gente”, lembra Iraci. O estigma de ser um local onde viviam os doentes fez do bairro uma área acessível, em termos de preço, para que os próprios hansenianos adquirissem imóveis na década de 90. Muitos vivem lá até hoje. (RM)

Tempos de violência

As colônias para tratamento de hanseníase são agora atingidas pelos problemas dos centros urbanos, com assaltos, roubos e até assassinatos. Muitas das 33 comunidades existentes sofrem com o abandono
Renata Mariz Correio Braziliense
Desapareceram os guardas com carabinas na mão, à espreita de qualquer doente que tentasse fugir das colônias de isolamento obrigatório, onde portadores de hanseníase eram confinados pelo governo brasileiro. Depois de 1986, com o fim da política de segregação, ficou na lembrança a época sombria das humilhações. Hoje, são outras as mazelas que atormentam a vida de quem permanece em 33 colônias ainda ativas no Brasil. A violência tomou conta de locais que deveriam ser pacatos, onde cerca de 3 mil pessoas, todas idosas e quase sempre incapacitadas pela doença, tentam esquecer o drama que viveram.
Roubo, furto, assassinato, prostituição e drogas passaram a ser problemas do dia-a-dia dessas comunidades. Ana Cláudia Krivochein, diretora do Hospital Estadual Tavares Macedo, antiga colônia no Rio de Janeiro, explica que o principal motivo é a entrada de desconhecidos nessas áreas. “Eles vêm atraídos por facilidades, como não pagar aluguel, ter água e luz de graça, e acabam trazendo esses conflitos sociais para dentro das unidades”, destaca.
Ela assumiu a colônia do Rio numa situação crítica. Em fevereiro deste ano, quatro meses antes de tomar posse, houve um assassinato dentro de um pavilhão abandonado da unidade. Um casal, que não era de pacientes, mas morava provisoriamente no local, foi morto em circunstâncias estranhas. A polícia, depois, descobriu que a causa do crime teria sido um acerto de contas. Existe a suspeita de que tenha sido por envolvimento com o tráfico de drogas.
Para Carlos Tadeu Dutra, ex-interno da Colônia Santa Isabel, em Minas Gerais, o governo falhou ao não definir um destino às terras dos antigos leprosários. “Ficou tudo abandonado. E outras pessoas foram invadindo. Hoje os pacientes estão numa situação complicada. Tem gente já com medo de ser roubada quando receber essa pensão que o governo vai conceder”, afirma Tadeu, que mantém uma casa de apoio aos hansenianos em Anápolis (GO). Outro agravante, segundo ele, é a ocupação desordenada ao redor das colônias. “Todas elas ficam afastadas, em bairros pobres que se formaram”, observa.
Para Wolf São Geraldo, atual diretor da antiga Colônia Santa Marta, em Goiânia, a solução é fechar os portões. “Precisamos isolar, pelos menos a área hospitalar, que é onde ocorrem mais problemas de violência”, destaca. Arthur Custodio Moreira Sousa, coordenador do Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas por Hanseníase (Morhan), discorda dessa política de separação. “O que é preciso é suprir essas localidades, inclusive os bairros na redondeza, de políticas sociais”, defende.
Moradora da ex-colônia Tavares Macedo, no Rio de Janeiro, Raimunda de Souza Andrade já teve a casa assaltada duas vezes. “Levaram tudo que eu tinha: televisão e som”, conta a amazonense de 73 anos, internada desde os 15. Ela diz não gostar de falar muito do assunto, por medo de represálias. “Mas sabemos, ouvimos coisas sobre a presença de drogas, de marginalidade. Essas coisas já chegaram aqui e nos preocupam bastante”, diz. Muitas das casas nas colônias têm grades e cadeados reforçados.

Histórias

Para Maria Cardoso de Oliveira, 63 anos, a ex-colônia de Goiânia, para onde ela foi com apenas 14, a entrada deveria ser limitada. “Daqui a pouco vão querer cobrar a água da gente, como já acontece com a luz, por causa dos gastos excessivos de pessoas que vêm para cá”, afirma. Cecília Alves de Lima, 55 anos, também não aprova a mudança de famílias inteiras, mesmo parentes dos pacientes que foram confinados, para a colônia, como ocorre hoje. “As crianças fazem muito barulho, xingam a gente na rua, não respeitam ninguém”, reclama.
Erasmo de Freitas, morador da Colônia Santa Marta, discorda. “Nunca na minha vida tinha ouvido grito de criança, pelo menos agora posso ouvir”, comenta. Freitas está confinado desde os 13 anos de idade e pinta para passar o tempo. A parede de sua casa é cheia de esboços coloridos. “Minhas deformidades são só nos pés, mas as mãos ficaram boas”, entusiasma-se, estendendo os braços. A população feminina costuma se dedicar a tarefas rotineiras, como costura e bordado.
Sentada num banquinho com rodinhas, para ajudar na locomoção, Sebastiana de Almeida dá uma aula de superação e persistência. Com as mãos debilitadas pela doença, a senhora de 71 anos corta retalhos e faz colchas. Para ela, a colônia hoje em dia é um “paraíso”. “Acostumei, né? Estou aqui há mais de 50 anos”, afirma, enquanto trabalha com um pedaço de pano. Maria Cardoso é outra que não esmorece. Também costura, para presentear filhos e netos, todos sadios e morando fora da colônia, sempre que pode. O marido, Vicente Pinto Leite, faz passarinhos de madeira.
Na maioria das colônias existem salas de recreação, com jogos disponíveis. Mas quem usufrui, quase sempre, são os moradores mais jovens, muitos que nem parentesco têm com os antigos confinados. Os bailes, que eram periódicos na época do isolamento, também não ocorrem com muita freqüência. “Procuramos ficar mais recolhidos agora, com idade avançada”, afirma Vicente, um dos mais antigos e animados moradores da colônia de Goiânia.

Ouvimos coisas sobre a presença de drogas, de marginalidade. Essas coisas já chegaram aqui e nos preocupam bastante

Raimunda de Souza Andrade

O número
3 mil pessoas que sofrem com a hanseníase vivem nas colônias de tratamento

O que fazer

Como o Ministério da Saúde tem combatido a hanseníase para tirar o Brasil da vergonhosa lista dos piores do mundo. Os desafios são grandes: 34% da rede de atenção básica oferece diagnóstico e tratamento para a doença Flagrantes do abandono
As colônias que transformaram alguns pavilhões em hospitais, abertos a pacientes de várias enfermidades, foram os que se estruturaram melhor. Mas os sinais de abandono ainda são flagrantes na maior parte dos 33 antigos leprosários. A área residencial é a mais crítica. Casas com telhados velhos e paredes mofadas mostram a penúria em que vivem moradores. “Com a aposentadoria por invalidez não conseguimos reformar tudo que precisamos”, afirma Vicente Pinto Leite, morador da Colônia Santa Marta, em Goiânia.
Antigos pavilhões abandonados também preocupam a comunidade das colônias. É que o local pode ser usado por mendigos e meninos de rua para se esconder ou morar. O pavilhão, onde ocorreu o assassinato de um casal no Rio de Janeiro, no início deste ano, chegou a ser fechado com tijolos. Mas recentemente a diretoria da Colônia Tavares de Macedo resolveu dar outro destino ao lugar, transformando-o em centro cultural.
As igrejas, construídas ainda na época do isolamento compulsório, fogem à lógica do abandono. Geralmente são bem preservadas. Na colônia de Goiânia, uma gruta feita pelos doentes confinados virou um local sagrado para a comunidade. Os internos levavam o material pesado na cabeça, na esperança de receberem a cura mais rápido. “Cada pedra dessa é a história de uma pessoa, de alguém que esteve aqui”, lembra Leite. (RM)

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