Mais uma vez, entre outras, estamos estarrecidos com as cenas de violência no Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte.
Aproveito este blog para expor algumas opiniões, não com a pretensão de pontificar a verdade, mas com o intento de estimular o debate. Afinal, é através de um debate sereno, democrático e respeitoso que podemos avançar nos entendimentos sobre o tema da relação entre polícia e sociedade.
Para fins didáticos, faço minha exposição (sintética e parcial) dividindo a análise em três partes distintas: a polícia, a comunidade e os governos.
a) A polícia: todas as democracias têm instituições policiais – indispensáveis para a garantia da paz, da segurança e dos direitos de cidadania. Porém, em hipótese alguma, numa sociedade democrática, é permitido às polícias o uso da força de forma desproporcional. Em outras palavras, à polícia não é dado o direito de, salvo em casos excepcionais, usar da violência para quaisquer ações.
No início deste ano, como já comentamos neste blog, uma portaria do Ministério da Justiça e da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, da Presidência da República, determinou que os agentes de segurança pública não deverão disparar armas de fogo, exceto em casos de legítima defesa própria ou de terceiro, contra perigo iminente de morte ou lesão grave. A portaria proíbe que policiais atirem numa pessoa em fuga e que esteja desarmada ou que, mesmo na posse de alguma arma, não represente risco imediato de morte ou de lesão grave a ninguém.
Tudo isso seria desnecessário se as polícias brasileiras não figurassem entre as mais violentas e arbitrárias do mundo. Pesquisas (do próprio Ministério da Justiça) sobre homicídios (no Brasil) têm apontado altos índices de letalidade da ação policial. Por essas e por outras (corrupção, violência, extorsão) podemos afirmar, com tristeza, que, no geral, segmentos de nossas polícias ainda não absorveram em suas práticas os princípios basilares do Estado Democrático e de Direito, entre as quais, a primazia e prevalência da dignidade humana. São instituições autoritárias e arbitrárias que precisam de reformas urgentes. Enquanto as instituições policiais (e de resto, muitas instituições públicas em geral) não extirparem de seus quadros todos os envolvidos com violência, morte e corrupção não teremos um estado verdadeiramente democrático. Teremos nichos democráticos dentro de instituições antidemocráticas.
b) As comunidades têm todo o direito de se manifestarem contra as arbitrariedades e abusos policiais ou quaisquer arbítrios praticados por agentes públicos. Não podem se calar, nem capitular frente ao medo. Erram somente quando usam da força e da violência, justamente para combaterem a mesma força e violência que denunciam serem vítimas.
Quando membros da comunidade destroem o patrimônio público, queimam ônibus ou depredam bens de terceiros, perdem parte da razão e, mais que isso, possibilitam que os conversadores (das polícias, da imprensa e dos governos) utilizem os velhos argumentos da criminalização da pobreza e dos movimentos sociais para justificar todo o tipo de arbitrariedade policial nas manifestações das comunidades.
A comunidade deve usar de estratégias mais eficazes para combater todos os tipos de abusos. Vejam as manifestações populares que têm derrubados governos autoritários mundo afora: mobilização, vocalização das denúncias (ocupando pacificamente espaços públicos e demandando cobertura da mídia, por exemplo) e usando desse maravilhoso recurso, ainda sem censura governamental, a internet. A comunidade deve e pode registrar as imagens de violência, postando-as em sites gratuitos, exibindo-as para a imprensa; ou seja, cortando o cordão de isolamento tradicional que impede a pobreza de se manifestar publicamente. Deve e pode, sim, ocupar os espaços públicos num grito de revolta (a garantia de manifestação é preceito constitucional). É justo e compreensível, além de legal, protestar em frente aos palácios dos governantes, dos tribunais da justiça, dos comandos das polícias, das sedes do Ministério Público, das ouvidorias, das casas legislativas. Os poderosos devem ouvir o clamor dos pobres. Quando os fatos se tornam públicos e inquestionáveis, as mudanças tornam-se inevitáveis.
c) Os governos: enquanto tivermos governantes medrosos e lenientes com a violência policial (e com a corrupção geral que campeia em vários órgãos da administração pública) não poderemos dizer que vivemos numa democracia. Isso vale para os três poderes. Não adianta apontar o dedo somente para o Executivo – que tem grande responsabilidade, principalmente com as reformas policiais. Mas quando não existem leis severas contra a corrupção e a violência institucional, toda ação pública corre o risco da discricionariedade. Então, nossos legisladores, o Judiciário, o Ministério Público – que constitucionalmente deveria controlar as polícias -, deveriam fazer sua parte para a consecução dessas reformas. Portanto, os governos podem atuar no sentido reformar nossas instituições republicanas, incluindo as polícias, para adequá-las aos tempos democráticos.
Infelizmente, o que aconteceu no Aglomerado da Serra não é exceção. Todos os dias, nas vielas das favelas e das comunidades pobres, em vários estados da federação, de variados modos, o cidadão pobre é aviltado em seus direitos básicos. Vejam na internet os inúmeros relatos de violência e abuso policial, de corrupção de agentes públicos, de afronta, por agentes do estado, aos direitos de cidadania (hoje mesmo vi uma reportagem que mostrava crianças pelo Brasil afora estudando no chão e com fome, por deficiências nos prédios escolares). É preciso que o povo ocupe as ruas para que nichos de conservadorismo e autoritarismo que impedem mudanças institucionais sejam destronados e para que, de fato (e não somente de direito) vivamos numa sociedade democrática e justa.
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