Rafaela Tasca
do Rio de Janeiro (RJ)
“Qual é o seu sonho?”. Se extraída de uma conversa qualquer poderia ser somente uma pergunta, mas nas mãos de um artista esta interrogação pode suscitar outros questionamentos e modos de ver a vida, a cidade e a própria arte.
Foi assim, com olhos voltados para as ruas, que o artista Rubens Pileggi Sá perguntou do sonho para aqueles cidadãos que aparentemente perderam tudo, até o direito de sonhar. Surgia Cromo Sapiens: mais um projeto do artista relacionando arte, vida, estratégias de visibilidade e ativismo. O projeto teve início em 2009, a partir de 30 entrevistas com andarilhos e moradores de rua que transitam pelo centro fluminense, Lapa e Largo da Carioca. Nestas entrevistas, registradas em vídeo e fotos, as perguntas giraram em torno de lembranças e sonhos na vida.
“Com esse material em mãos, desenvolvi o protótipo de um álbum de figurinhas intitulado Nowhereman, onde as páginas do álbum são ilustradas com detalhes de apartamentos e moradias, preços de imóveis e espaços culturais e de lazer do centro da cidade. E as figurinhas a serem coladas nessas páginas são as fotos das pessoas entrevistadas. Da experiência com esse álbum foram surgindo outros trabalhos e peças artísticas que, no conjunto, formam a exposição que dei o nome de Só sonha quem dorme”, explica o artista.
De temática sobre a questão do acesso à moradia nas grandes cidades, Nowhereman assume o formato clássico de um álbum de figurinhas. Contém 27 páginas impressas com lugares, equipamentos urbanos e anúncios publicitários de venda e aluguel de apartamentos do centro da cidade do Rio de Janeiro, a serem preenchidas com exatas 42 fotografias de moradores de rua. A cada retratado é dada a referência de nome, idade, procedência, tempo como morador, dia e local da entrevista. Em alguns casos, são acrescentadas às legendas frases retiradas das incursões linguísticas que aparecem nas entrevistas e que auxiliam na construção do universo poético, mítico e urbano do projeto.
É assim com a expressão-título da mostra Só sonha quem dorme, cunhada por Cícero Soares. Ou com a reflexão de Luiz Carlos Marques da Silva, “No fundo do poço, 3 mil metros abaixo, a gente não ‘veve’, a gente vegeta”. Ou ainda, com Clara Nunes Pereira dos Santos, a senhora da videoinstalação Olhos roubados que aparece na capa dos envelopes de Nowhereman. Ao descrever sua procedência, Clara aponta o dedo para o alto e diz que vem do “Estado do Céu” e declama “Esses olhos são roubados. É azul. É de uma mulher que trabalha ali. Por isso que eu não posso trabalhar.”
“Invisíveis funcionais”
Para o artista, o álbum tem a intenção de promover uma espécie de reforma urbana simbólica. “Oferecer um espaço de visibilidade a ‘invisíveis funcionais’ que, por sua própria condição miserável, não contam nas estatísticas senão como problema. Que não são vistos senão como lixo, incomodando, impedindo a passagem, sujando a cidade.”, escreve Pileggi Sá na apresentação de sua proposta.
Desde seu lançamento, Nowhereman encenou discussões, críticas, apoios e leituras bastante sensíveis. Como o depoimento dado pela artista Juliana Kase no blog de Cromo Sapiens. “Quando Rubens propõe a tarefa de colar as figurinhas, o espectador deve empregar um certo tempo para realizá-la e, consequentemente, ler as sucintas informações das legendas. É aí, na legenda, que para mim está o ponto fundamental do trabalho. Enquanto muitos artistas intentaram dar visibilidade à população de rua, Nowhereman resgata os nomes desses desconhecidos. Penso que o reconhecimento dessas pessoas como indivíduos, a sua singularidade, é mais eficaz que mantê-los apenas como uma massa indiferenciada.”, escreve Kase.
Inserções ideológicas
Embora utilize um formato tradicional de colecionismo, a tática de Nowhereman atua em uma vertente de contra-informação, realizando representações sociais às avessas dos ideários de heróis, celebridades e objetos veneráveis do consumo, comumente utilizadas nestes álbuns de figurinhas.
Esta experiência de Nowhereman se relaciona a duas importantes situações brasileiras históricas. A primeira absorve a forma utilizada por um fenômeno editorial brasileiro recente, ocorrido durante a Copa de 2010, quando o conglomerado multinacional Panini lançou um álbum de figurinhas com os jogadores das seleções participantes da competição mundial. Posto que o futebol é febre nacional, as figurinhas igualmente assim foram. A segunda é que a ousadia de Nowhereman sedimenta um trabalho de arte que opera na fusão de mercadoria e arte, com ênfase na distribuição de um objeto artístico que evoca a participação ativa do espectador, condição essencial para o projeto se completar. Deste modo, o artista cria, por meio de um impresso industrial de reprodução e circulação massiva, uma estratégia de visibilidade que usa da noção de circuito e compartilhamento de informações para dar materialidade e sentido a seu trabalho.
Esta proposição artística de Pileggi Sá segue moldes adotados por outros artistas brasileiros. A exemplo de Cildo Meireles, artista referência nestas práticas, com trabalhos como Inserções em Circuitos Ideológicos I – Projeto Coca-Cola, exposto pela primeira vez na Mostra Information no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, em 1970. A proposta de Cildo consistia em propor ao público a ação de imprimir mensagens nas garrafas retornáveis de Coca-Cola e a devolução ao fabricante. Na ocasião da exposição Information, Cildo adesivou a frase “Yankees, Go Home” em uma garrafa do refrigerante.
Em outro projeto de Inserções em Circuitos Ideológicos II - Projeto Cédula (1970), Cildo utilizou a serigrafia ou o carimbo de frases em cédulas de dinheiro como “Quem matou Herzog?” ou instruções de ação como “gravar informações e opiniões criticas nas cédulas e devolvê-las à circulação”. Propostas de uma arte de vanguarda que se lançava a criar ruídos no campo ordinário da circulação das mercadorias; além de questionar o lugar adequado para a exposição de um trabalho artístico.
Longe dos cânones mais tradicionais da obra de arte e de suas formas expositivas, circunscritas aos espaços consentidos e consagrados dos museus e galerias, Pileggi Sá também articula ações artísticas em diversos espaços e suportes. E organiza um aparato de distribuição para Nowhereman possível de ser adquirido em localidades da capital fluminense ou solicitados por email, através de seu blog.
Muito além da esfera do colecionismo e do jogo interativo aberto à participação de todos, Nowhereman segue pelo tenso curto-circuito das fronteiras entre arte, vida e proposição política. É livro-objeto sagaz que ao expor os “cães sem plumas” da cidade adere arte ao mundo, sem cair na estetização da pobreza.
Para entender
Em uma livre tradução dos nomes criados pelo projeto para os títulos, Nowhereman poderia ser traduzido como “homem de nenhum lugar” ou “homem do aqui e agora”; Cromo Sapiens algo como “Fotos com Sabedoria” ou “Figura Inteligente”. “É que em um mundo onde tudo se transforma em imagem, depois do Homo Sapiens vem o Cromo Sapiens. E Nowhereman surge no sentido de que essas pessoas retratadas no álbum continuam excluídas da globalização”, pondera o artista sobre a criação dos títulos.
Onde adquirir o álbum:
No Rio de Janeiro
Atelier DEZENOVE
Travessa do Oriente, 16A – Santa Teresa
Telefone: (21) 2232-6572
MUSEU DO MUNDO
Rua Visconde de Pirajá, 111 – Ipanema
Telefone: (21) 7207-0326
Outros Estados
Email: pileggisa@gmail.com
Telefone: (21) 2135-6928 / (21) 7207-0326
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