Desapropriações são prejudiciais à população
Em abril deste ano, Raquel Rolnik, urbanista, professora da Universidade de São Paulo e relatora especial da Organização das Nações Unidas para o Direito à Moradia Adequada, divulgou, pela Relatoria da ONU, violações do Estado relativas às desapropriações para as obras para a Copa do Mundo e Olimpíadas. Segundo Rolnik, as remoções têm sido feitas de maneira forçada, sem diálogo com as populações afetadas e com indenizações baixas, sem planejamento quanto ao futuro dos desapropriados.
A denúncia é extremamente oportuna em tempos nos quais o bom legado dos Megaeventos tem sido alardeado. Em contraposição ao cenário de criação de empregos, investimentos externos, obras de infra-estrutura, valorização de bairros e boom econômico que têm sido divulgados, temos a possibilidade de sairmos desses eventos numa situação pior do que aquela na qual entramos, com aumento da exclusão social, remoção de famílias, desvios de dinheiro e perda de patrimônio público.
Os dados acerca das desapropriações são preocupantes. Só no entorno do estádio a ser construído em São Paulo para sediar os jogos do mundial de futebol, 5.200 pessoas correm o risco de ser despejadas de suas casas. No país todo, esta situação engloba 60 mil brasileiros. As desculpas do poder público de serem áreas de risco são extremamente inapropriadas, pois famílias vivem nos locais há décadas e nunca foram alvos de políticas públicas. E mesmo hoje, o que se tem visto são remoções sem planejamentos que garantam o direito à moradia decente, direito este garantido pela Constituição Federal e por tratados internacionais assinados pelo país, como a Declaração de Direitos Humanos da ONU.
Resta-nos concluir que está em jogo o famoso “preço do desenvolvimento”, no qual algumas famílias têm de ser sacrificadas, sendo deslocadas de seus habitats históricos para que a sociedade como um todo obtenha progresso. Porém, ao analisarmos mais a fundo o processo e seus resultados, nos indagamos se realmente é o progresso o que estamos construindo.
Voltemos à denúncia realizada por Raquel Rolnik. Segundo a relatora, as indenizações pagas às famílias são ínfimas se comparadas aos preços do mercado imobiliário. Ainda mais dentro de um contexto de supervalorização dos imóveis que as obras para a Copa têm trazido às regiões atingidas e refletindo em áreas próximas, em “efeito cascata”. O resultado disso é uma expulsão dos moradores de seus bairros, sendo levados a regiões distantes, causando uma nova onda de urbanização descontrolada em bairros que hoje são menos habitados. Ou seja, mais pessoas serão alocadas em locais com dificuldades de infra-estrutura, transportes, atendimento hospitalar etc., causando um novo passivo social ao país e aumentando a exclusão.
Junte-se a isso a intenção do poder público de não indenizar moradores de áreas irregulares, ilustrada pela declaração da Agecopa (Agência Estadual de Projetos da Copa 2014) de Mato Grosso, e teremos uma onda crescente de favelização. Ou seja, moradores que hoje estão em situação precária em bairros com algum atendimento público, como o caso de Itaquera, em São Paulo, serão deslocados para regiões nas quais o Estado não chega. É como se fizéssemos um “afastamento dos pobres” e a criação de guetos. O problema da falta de garantias de direitos pelo poder público a essas pessoas não será solucionado, porém a valorização imobiliária será garantida com mais uma região de alto padrão.
Os resultados disso são alarmantes: intensificação da formação de “bairros dormitórios”, aumento da lotação no sistema de transporte público, ao deslocar mais trabalhadores para bairros periféricos distantes, aumento de pessoas desatendidas pelo poder público e o conseqüente crescimento do poder paralelo, representado pelo tráfico de drogas nas grandes cidades brasileiras.
Mas há quem ganhe com isso. As empreiteiras e empresas de construção civil estão contratando e fazendo negócios atrás de negócios. No Brasil, até 2014, serão aplicados R$ 108 bilhões somente em infra-estrutura, segundo cálculos da Associação Brasileira de Infra-Estrutura e Indústria de Base (Abdib). Os empregos que essa onda de obras criará podem ser apresentados como um dado a confirmar o bom legado da Copa.
Porém, são empregos em sua grande maioria temporários, que podem ou não se sustentar, o que dependerá de outras ações relativas ao planejamento macroeconômico.
Se pegarmos o exemplo da África do Sul, nação em desenvolvimento que sofreu conseqüências da crise econômica mundial em 2009 e que organizou o mais recente mundial em 2010, o cenário não é de euforia. De acordo com o relatório sobre o índice de empregos da Adcorp de Emprego, uma das mais respeitadas do país, divulgado em 22 de junho de 2010, o nível de emprego caiu 6,2% entre abril e maio daquele ano, justamente pela conclusão das obras da Copa. O índice mostrou que o nível de desemprego no país, que em 2008 era de 21,9%, continuou a aumentar mesmo com a realização do megaevento, chegando a 25,2% no primeiro semestre de 2010.
Há, ainda, a preocupação com o retorno financeiro previsto. No caso da África do Sul, os ganhos com a Copa eram estimados em 0,5% do PIB do país, porém, os gastos já haviam passado dos 6,5% de seu Produto Interno Bruto. Em compensação, a FIFA, entidade internacional que gerencia o futebol e o mundial de seleções, obteve lucro de US$ 3,2 bilhões, livres de impostos, e destinaria apenas 3% desse valor para auxílio em obras sociais no país.
A quem interessam as desapropriações?
Mesmo que as remoções fossem feitas em nome da certeza de um desenvolvimento econômico e social, ainda assim teriam de acontecer com um planejamento visando o bem-estar das comunidades atingidas, com um indicativo de que as melhorias em condição de habitação e expectativa de vida chegassem a elas também.
Nem um, nem outro. Tanto o desenvolvimento a partir dos investimentos realizados para os megaeventos é incerto, como a preocupação com a qualidade de vida das populações atingidas está fora de pauta.
O exemplo de São Paulo é emblemático. Favelas que historicamente estão alojadas na região próxima ao estádio a ser construído serão despejadas. Os projetos incluem avenidas de acesso à nova arena e a construção de um parque linear como compensação ambiental para as obras viárias. Nada tem se falado sobre o futuro dessas comunidades.
É óbvio que o desaparecimento de favelas é essencial para a valorização imobiliária da região, que é o legado mais claro que a Copa deixará para o bairro de Itaquera. Bem como a apresentação de uma cidade desenvolvida, com condomínios de padrão elevado, avenidas bem pavimentadas e uma grande área verde demonstram ao público turista que a cidade vai muito bem.
A preocupação em passar esta imagem de desenvolvimento e segurança faz sentido ao lembrarmos que São Paulo tem se destacado como cidade sede de eventos e a prefeitura, via SPTuris (empresa pública de turismo da capital paulista), tem se esforçado em aumentar o fluxo de “turistas de negócios” através da realização de feiras, congressos etc. Segundo estimativa da Federação Brasileira de Convention & Visitors Bureaux, o setor cresceu 7% nos últimos anos. Só em São Paulo, ocorre um evento desses a cada 12 minutos.
Também é interessante destacar que a valorização não convém aos moradores do bairro. Apesar de ser vista como algo bom, pois o patrimônio das famílias, acumulado em seu imóvel, tende a aumentar, o custo de vida da região também sobe consideravelmente, bem como os impostos a serem pagos com base no valor da residência e os custos com aluguel. Para quem comprou um imóvel apenas por investimento, a Copa do Mundo trará, assim como os Jogos Olímpicos, um ganho rápido a partir dessa supervalorização momentânea. Porém, quem é morador e deseja permanecer na região terá de desembolsar quantias maiores desde o IPTU até o pãozinho francês. Diversas famílias que hoje têm dificuldades para pagar suas contas terão de se mudar para bairros mais afastados, de custo de vida mais baixo.
Os gastos para os Megaeventos: dinheiro público para uso privado
Conforme frisamos, se as desapropriações ao menos fossem parte de um projeto de desenvolvimento econômico e social, num futuro próximo seu passivo social seria compensado através do progresso do país todo, também chegando àquelas comunidades deslocadas. Porém, não é esse o resultado que virá, tampouco é o quadro que esperam os organizadores.
Na mais recente Copa do Mundo, a promessa de desenvolvimento como legado à África do Sul esvaiu-se ao término do evento. Os estádios construídos hoje têm um custo de manutenção anual de R$ 17 milhões, que sai dos cofres públicos. Tornaram-se os famosos “elefantes brancos” em regiões onde o futebol sozinho não consegue prover os custos das arenas.
É o que parece ser o futuro de alguns estádios no Brasil. No caso de Manaus, por exemplo, nem todo o público do campeonato amazonense de 2011 seria capaz de lotar a nova arena a ser construída para a Copa. O público dos 80 jogos da competição, somado, ficou em pouco abaixo de 38 mil pessoas, bem aquém dos 47 mil lugares do novo estádio. Esse dado dá a dimensão do legado da Copa: grandes obras que favorecem o mercado imobiliário e aquecem o setor de construção civil, mas que serão inúteis à população em médio prazo, e um custo ao erário em longo prazo.
Os investimentos em áreas sociais foram ínfimos dentro de um universo catastrófico. O país que apresenta uma taxa de 18% dos adultos infectados pelo HIV recebeu investimentos de escassos US$ 106 milhões - apenas 2,5% do que foi gasto com a realização do evento. Na educação, os investimentos relacionaram-se à capacitação de pessoal a ser empregado nas obras e no atendimento ao público da Copa. Sem o planejamento sócio-econômico adequado, a maior parte dessa mão-de-obra, agora qualificada, voltou a fazer parte da estatística do desemprego, que, como já vimos, está em torno de 25%.
O que devemos nos perguntar é se o dinheiro previsto para ser gasto em eventos de tal envergadura não estaria sendo melhor aproveitado em investimentos sociais. Por exemplo: o Brasil hoje perde cerca de US$ 15 bilhões (R$ 25 bilhões) por ano por conta de erros em projetos de engenharia, só em obras públicas. Esse dado é ligado, segundo estudos apresentados no Encontro Nacional de Engenheiros, em 2010, à má formação de nossos engenheiros. Outro dado aponta que o país gasta, anualmente, cerca de R$ 300 milhões com o tratamento de doenças relativas à falta de higiene, que poderiam ser substancialmente reduzidas com um efetivo investimento em saneamento básico, do qual carece metade da população brasileira. É um investimento com retorno ambiental, social e econômico.
Por fim, temos o exemplo dos Jogos Pan-americanos de 2007, nos quais R$ 7 bilhões foram gastos e hoje muitas obras, como o Velódromo e o Parque Aquático Maria Lenk, têm sido pouco aproveitadas, com a população afastada dos benefícios que os equipamentos poderiam trazer caso suas utilizações tivessem sido planejadas na concepção. Obviamente, a população carioca viu na época uma oportunidade de desenvolvimento da cidade, porém suas expectativas hoje não vivem nem na memória. Os Jogos passaram e foi como se não tivessem jamais acontecido, a não ser por conta das obras portentosas em locais inabitados.
Com tudo isso, fica claro que a certeza de ganho com essa Copa do Mundo e com as Olimpíadas está com os grandes empresários, os políticos envolvidos com seus lobbies e os organizadores. À população resta espernear para que seu dinheiro, advindo de impostos pagos no dia-a-dia trabalhado, seja gasto da melhor maneira possível e torcer para que suas vidas sejam atingidas com um mínimo de impacto, ficando todos nós a desejar, para antes e para depois dos megaeventos, investimentos que melhorem efetivamente nossas condições e expectativas de vida. É por conta dessa incerteza de ganhos reais à população que devemos olhar com desconfiança para as desapropriações, que mexem diretamente com o direito à moradia e o respeito que o Estado deve ter com o provimento de qualidade de vida a todos os brasileiros.
Fernando Paganatto e Mateus Novaes são membros da Associação Nacional dos Torcedores e Torcedoras (ANT) e do Tribunal Popular: O Estado Brasileiro no Banco dos Réus.
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