O preço da vida: R$ 10


Adolescentes, dependentes químicos e ameaçados de morte. Dívida por droga é o principal motivo

Fernanda Aranda, iG São Paulo

Foto: Divulgação

Crack é apontado como o principal caminho entre a infância e a ameaça de morte

Quinta-feira, 17h. Faltavam só 60 minutos para a vida de Daniel acabar. A mãe não confiava mais em dar dinheiro para o filho de 15 anos que já tinha roubado a vizinhança toda e torrado tudo em droga. “Os homens” tinham prometido dar o tiro na cara. O medo maior do garoto, no entanto, era da sessão de porrada que viria antes da “bala de misericórdia”. Quem deve ao tráfico, é sabido, não tem morte rápida. E, daquela vez, Daniel não tinha a menor esperança de conseguir R$ 50 para salvar sua pele. O prazo vencia às 18h.

Por valor ainda menor, outros meninos da mesma idade de Daniel deixam a vida por causa da dependência química. A nota de R$ 10 que eles não entregam na "boca” para pagar o quanto devem por uso de crack vira o preço médio de suas vidas, segundo constatou o iG nos programas de proteção à criança ameaçada de morte em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia, Espírito Santo e Rio Grande do Sul.

Nunca ninguém contou quantos deles morreram por não darem dinheiro ao mercado paralelo de entorpecentes. Sob a forma de algarismos, estes meninos estão misturados entre os dados que fazem da violência a principal causa de morte de homens brasileiros entre 10 e 25 anos. Estão também entre os números que contam a escalada de 32% de homicídios nos últimos 15 anos. Freqüentam ainda as informações sobre déficit de vagas para tratamento clínico – e eficiente – para combater o vício nas drogas.

Daniel tinha 50 minutos para não fazer parte destes estudos numéricos do IBGE e Ministério da Saúde. A tentativa de salvamento foi acompanhada pela reportagem que assistiu ao início da ação de uma rede articulada e sigilosa no País que, diariamente, trabalha para que estes adolescentes não virem estatísticas resultantes da parceria entre drogas, saúde falha e assassinatos.

O rosto

A sigla do grupo é PPCAAM: Programa de Proteção à Criança e ao Adolescente Ameaçado de Morte. O início da atuação é o ano de 2003, em São Paulo e Belo Horizonte. O avanço da epidemia de crack – e a consequente proliferação de homicídios, como detectou pesquisa da PUC de Belo Horizonte – fez com que a Secretaria Especial de Direitos Humanos tivesse a necessidade de ampliar a rede.

Hoje, 11 capitais já têm o programa de proteção, escolhidas de acordo com os níveis altos de letalidade juvenil. A missão é acolher pessoas com menos de 18 anos e com a vida ameaçada. Além dos garotos, alguns familiares também precisam ser protegidos. Eles mudam de bairro, de escola e de rotina por pelo menos três meses. Em casos mais extremos, até a identidade é trocada. Orkut, MSN, celular são proibidos. Nada pode ser transformado em pista para seus algozes. Se um deles for morto enquanto estiver protegido, é decretado o fim do pacto de confiança selado, com muito custo, entre os agentes do PPCAAM e os meninos.

Até agora, já passaram pelas mãos do programa 1.592 crianças e adolescentes, 60% deles por causa do envolvimento com o tráfico de drogas. Quando não são os traficantes que os sentenciam à morte, são fome, falta de moradia adequada, abandono dos pais, transtornos mentais, tentativas de suicídio, testemunho de crimes e brigas de gangue que dividem o ranking de outros motivos para a proteção.

“Mas mesmo quando a droga não é o motivo principal para a proteção, os meninos e meninas sempre trazem algum relato que associa seus problemas ao uso de cocaína, crack e álcool”, afirma a coordenadora do PPCAM do Espírito Santo, Renata Freire Batista.

No mês passado, 641 jovens no País estavam tentando sair do alvo da morte violenta por meio da proteção dos PPCAAMs. Os rostos que precisam ficar escondidos têm perfil quase unânime: 76% são negros, 59% têm entre 15 e 17 anos, 95% não terminaram o ensino fundamental. Metade – apenas metade – é desligada do programa por consolidação da inserção social e cessação da ameaça.

O restante? Foge, não aceita a proteção, não consegue ficar seguro sem as drogas, não encontra uma opção de tratamento público e disponível para "já". "Ou simplesmente não entende que morrer é perigoso", conta Célia Cristina Whitalker, secretária executiva da comissão municipal de direitos humanos de São Paulo, pasta responsável pelo PPCAM paulistano.

“Eles já experimentaram a violência tantas outras vezes antes de chegar até nós que têm dificuldade para reconhecer como é uma vida sem ameaça”, conta Célia.

“São tão seduzidos pela violência, que o nosso primeiro desafio é mostrar que não há glamour em ser ameaçado.”

“Fichinha”

Naquela quinta-feira que prometia ser a última da vida de Daniel ele só tinha medo da morte porque, uma semana antes, viu de perto como ela poderia seria cruel. Seu amigo de “rolê” não havia honrado o compromisso de pagar o que devia. Levou tiros na nuca e nas costas. Morreu na hora, estirado no beco da capital paulista.

Daniel apanhou dos mesmos caras, pouco antes de assistir o menino ser alvejado. Com o olho esquerdo roxo e a voz rouca de tanto ser enforcado, ele tentava explicar a um grupo de profissionais que serve de porta de entrada do PPCAAM porque preferia o dinheiro para sanar sua dívida de R$ 50 do que ser protegido para não acabar como o colega.

“Se eu não pagar, eles vão arrombar a minha casa, matar minha mãe e meu irmão. O que vocês assistem nos programas de TV que mostram o mundo do crime é fichinha perto do que eles fazem na vida real.”

Daniel deu a primeira tragada no cigarro de maconha aos 10 anos. Não gostou do barato que deixava tudo “meio em câmera lenta”. A cocaína era mais interessante. Adrenalina pura, conseguida no banheiro da escola, com uma só cheirada.

Na primeira vez deram “a farinha” de graça. Na segunda, já cobraram. Um dia a mesada não deu mais para sustentar a droga preferida, cara demais para o bolso do adolescente. Por isso, às vezes, ele se rende ao crack. Para a boca de fumo, o garoto já levou o aparelho de som, depois os brinquedos do irmão mais novo, os CDs da mãe, o GPS do pai. Em uma dessas reviradas de gavetas na calada da noite, encontrou uma faca usada para abrir cartas. Passou a praticar furtos na vizinhança. O olhar de medo dos vizinhos começou a ser interpretado como sinal de respeito. Em segredo, a mãe até rezava para ele ser pego pela polícia.

“Juro que não sei onde errei. O meu filho menor não é assim. O Daniel tinha tudo para ser o que ele quisesse. Quem na vida sonha em ser bandido?”, questionava-se a mulher.

Cheio de marra – a penugem escura e rala sobre o lábio indica apenas o início da puberdade – Daniel exibia na mão direita um anel de ouro falso. Ele só tinha 14 anos quando se apaixonou por uma garota de 19 e colocou a aliança para mostrar compromisso. “Sou mais ou menos noivo”, disse com um sorrisinho. Pensava um dia fazer dinheiro, mudar dali e comprar um carro. Aprendeu a dirigir aos 11 anos. Adora o Orkut e a internet, onde consegue baixar os Proibidões do Funk, seu estilo de música favorito. Foi em tudo isso que ele pensou antes de se convencer que, naquele dia, não poderia voltar mais para a rotina de sempre.

A mãe estava junto com o garoto na tentativa de salvamento. E junto com os outros profissionais do programa convenceu o menino a aceitar a proteção. “Sempre soube que a minha vida iria acabar uma hora. Não quero que ninguém adiante isso”, falou o garoto para expressar que, sim, aceitava “ser protegido”.

Sem saída

O destino de Daniel era incerto, o relógio andava rápido e o grupo de funcionários precisava encontrar um local seguro para ele passar, pelo menos, uma semana. Os telefones foram disparados em busca de algum canto da cidade. Os garotos que estão no fio da navalha podem ser o fósforo que faltava em um barril de pólvora, caso encaminhados para algum local errado. Em uma das ligações, um endereço que faz parte da rede sigilosa aceitou receber o adolescente. Os ponteiros do relógio já marcavam 17h45. A mãe deu um beijo na testa dele e sugeriu “juízo”. Foi embora orientada a pagar o que o filho devia caso “os homens" aparecessem.

Apesar da história de ameaça relatada por aquela família, é preciso uma avaliação do Ministério Público, do Juizado da Vara e da Infância ou do Conselho Tutelar para algum menino ingressar de fato no PPCAAM. Daniel passaria por este processo enquanto provisoriamente deixava o bairro onde morava.

O critério de inclusão precisa ser minucioso – e rígido – pois privar alguém de liberdade para garantir a sobrevivência não pode ser regra, precisa ser exceção. “Em várias ocasiões, identifica-se que a principal questão posta é a vulnerabilidade social e não a ameaça de morte. E, por outro lado, algumas famílias optam por buscar outros meios para garantir a proteção das crianças e adolescentes (como a casa de parentes em outros municípios), visto que a inserção no programa provoca algumas mudanças”,explica Flora Luciana de Oliveira, coordenadora do PPCAAM do Rio Grande Do Sul, que começou a funcionar de maneira integrada só este ano.

A decisão de quem será ou não protegido é de revirar o estômago, mas não supera a angústia vivenciada quando o PPCAAM não existia, lembra Cláudia Tourinho, coordenadora do programa da Bahia, instalado em março deste ano. “Não tínhamos saída”, conta.

“Muitas crianças podem ter sido mortas por não chegarem até a gente. Era muito difícil conviver com estes pedidos. Hoje, um pouco de tranqüilidade é trazida com a rede. Nenhum menino que chegou até nós morreu”, comemora.

Valido muito pouco

O rótulo “ameaçado de morte” pesa. E a origem dele é confusa, explica o juiz da Vara e Infância e Juventude de Santo Amaro (na capital paulista), Iasin Issa Ahmed, que coordenou o PPCAAM de São Paulo por três anos.

“Não sabemos se é a droga que atrai a violência ou o inverso. A história de início nebuloso destes meninos tem desfecho ainda mais incerto" conta Ahmed.

“Vivemos com as mãos atadas após a proteção. Se o menino está protegido e tem uma crise de abstinência por falta da droga, é muito difícil conseguir com o governo o tratamento para ele. Não há vagas. Eles fogem e, no dia seguinte, vamos escutar um novo pedido, de uma mãe desesperada, que não suporta mais a contagem regressiva para o assassinato de um filho seu.”

Renata Batista, coordenadora do Espírito Santo, diz que qualquer garoto, de classe média, pobre ou rico, que faz uso excessivo de droga é vulnerável à ameaça. “Mas a lógica que predomina entre os que podem ou não ser exterminados é perversa. Existe ‘os matáveis’ e os ‘não matáveis’. O primeiro grupo não tem pai, mãe nem ninguém para pagar as dívidas de drogas. E a vida destes meninos tem valido muito pouco. Não é por mil ou dois mil reais. O preço é 10 reais” lamenta.

Naquele início de noite de quinta-feira, Daniel ainda não sabia de era do grupo dos matáveis ou não. O medo, nítido em sua expressão no início, agora começava a dar lugar para uma impaciência, quase incontrolável. Ele mexia as mãos e os pés sem parar. Bebeu quase dois litros de água. Já falava pouco e não olhava mais ninguém nos olhos. Indícios de que as quase 36 horas que estava sem usar cocaína estavam fazendo efeito.

Os profissionais que o acompanhavam tentavam puxar assunto e pouco conseguiam entrar na mente do garoto impaciente. Ele não sabia o que era Holanda, o que impediu a continuidade da conversa sobre os planos de morar fora do Brasil. Não conseguiu escolher uma matéria preferida da escola. Não falou de música. Até que o fio condutor do diálogo, finalmente foi encontrado: ao lado do veículo em que estava, passou um carro antigo e os olhos de Daniel brilharam. “Sempre quis um desses”, falou apontando a um Chevette. Mas o sorriso só apareceu quando falaram de super-heróis. “Sou fissurado naqueles heróis que são mutantes, sabe?”, disse o garoto.

X-men e sushimen

Quase todos os garotos que ingressam no PPCAAM sofrem mesmo da “síndrome de super-heróis”. Primeiro porque são garotos, o que torna a fantasia natural. Segundo porque enfrentam enredos que parecem existir só em filmes de ação, em que bandidos e mocinhos não têm função definida.

“São super-heróis que dão o mesmo valor para a vida e para morte”, compara Célia, a coordenadora do PPCAAM paulistano.

Às 21h, ainda vivo – mesmo após quatro horas do fim do seu prazo –, Daniel já não pensava mais no tempo enquanto falava com entusiasmo sobre o X-men. Entrou em seu "lar provisório" com o compromisso de não contar sobre a sua ameaça. Ele agora era um super-herói na imaginação.

Para a segurança do adolescente, a reportagem não pôde acompanhá-lo por mais tempo. Se é impossível saber como foi a “sexta-feira do X-men de 15 anos”, Cláudia Aguiar, coordenadora do PPCAAM de Belo Horizonte, afirma que o desafio diário de não perder a esperança de salvar estes meninos é muito compensador.

“Um dia uma de nossas funcionárias foi a um restaurante japonês e encontrou um dos meninos que já havia passado pelo PPCAAM trabalhando como sushiman, tocando a vidinha dele, feliz da vida. Foi tão recompensador... É isso que nos dá força.”

Quanto vale?

Daniel tomou banho, vestiu roupa de frio e despediu-se do grupo que, por um dia, salvou a sua vida. Antes de falar tchau, topou escrever em uma folha de caderno quais são seus sonhos. Nas seis linhas abaixo, deixou explícito que não custa caro fazer este menino feliz. Ao mesmo tempo, evidenciou que sua vida não pode valer só R$ 10.

Foto: Fernanda Aranda/ iG São Paulo

Bilhete escrito por Daniel, 15 anos e ameaçado de morte por dívida no tráfico

Aos 25 anos, Emicida inaugura o rap brasileiro com autocrítica


Rapper paulista lança sua segunda mixtape, "Emicídio", e vai contra a corrente do discurso negativo do rap

Pedro Alexandre Sanches, repórter especial do iG Cultura

Foto: Augusto Gomes

Emicida em seu estúdio na Zona Norte de São Paulo

O rap brasileiro encara suas próprias contradições e protagoniza uma nova movimentação, desta vez no coração do bairro de Santana, na zona norte de São Paulo. Ali funciona, num imóvel alugado, o Laboratório Fantasma, mistura de estúdio, gravadora e produtora do rapper paulistano Leandro Roque de Oliveira, de 25 anos, que tem conquistado notoriedade crescente sob a alcunha de Emicida.

Nestes dias, ele e seu irmão mais novo, Evandro “Fióti”, consomem grande parte do tempo no Laboratório produzindo artesanalmente centenas de cópias do disco "Emicídio". Esse novo trabalho significa, nas palavras de Leandro, “a morte e o renascimento do Emicida, com outra visão”.

Nascido no Jardim Fontales, na periferia norte da capital paulista, Emicida, “matador de MCs”, é um exímio improvisador, ligado por laços indiretos à histórica tradição dos repentistas nordestinos. Adquiriu notoriedade nas chamadas batalhas de freestyle, em que os MCs (mestres de cerimônia) do hip-hop se enfrentam em desafios de rimas formuladas na hora.

Em 2009, o também caseiro "Pra Quem Já Mordeu um Cachorro por Comida, Até Que Eu Cheguei Longe…" atravessou obstáculos, alastrou-se da periferia para o centro, disseminou o incômodo nome “Emicida” na mídia, ajudou o jovem artista a ganhar prêmios e se apresentar Brasil afora.

Foto: Augusto Gomes

Rapper acaba de lançar sua segunda mixtape

Com 18 faixas, "Emicídio" é sua segunda mixtape, como ele denomina – Leandro considera que não produziu, ainda, seu álbum de estreia. “Os ‘beatmakers’ me mandam as batidas e em cima eu faço as rimas. Um álbum é um trabalho mais complexo que isso”, explica. “Tanto os ‘beatmakers’ como eu sofremos uma influência muito forte da América do Norte, e isso começa a me parecer repetitivo. No meu primeiro álbum quero dar continuidade à música brasileira. Musicalmente, a gente pode dar muitos passos ainda”, ele se autoanalisa.

A segunda mixtape prossegue a saga de Emicida, pela via da desconstrução, mais ou menos inédita no rap nacional. O artista discorda, acima de tudo, do predomínio do discurso negativo no nosso hip-hop. “Não dá para eu ir tocar pra criançada com discurso de sofrimento e ser tão sincero quanto fui quando chorava. Não é mais a minha realidade. Os CDs de rap vendem, os shows dão dinheiro, e isso não está sendo retratado. Fica o mesmo discurso de 20 anos atrás, que vicia os moleques numa depressão, faz acreditar que o mundo não é feito pra gente.”

Não é que o protesto se dilua na esteira do sucesso e do assédio midiático, ao contrário. A vida de privação numa favela não é mais o cotidiano de Leandro, mas ainda há muito a dizer em "Emicídio". O CD fala muito sobre racismo e discriminação, enfrenta o tabu de inserir raps de amor, tece considerações sobre como às vezes é difícil estar num palco, identifica-se com o dia-a-dia das prostitutas da rua Augusta.

Em "Cê Lá Faz Ideia", por exemplo, Emicida narra os constrangimentos que um cidadão tem de enfrentar cotidianamente por ser negro. “Os pretos na sociedade são vistos como se fossem ratos. Tem vários ratos famosos, Mickey Mouse, Jerry do Tom & Jerry, mas quem vê um rato na rua só pensa em matar e sair de perto. Ouvem Jimi Hendrix em casa, mas quando encontram um preto na rua só querem atravessar pro outro lado”, afirma. “Me sinto muito mal de ir à avenida Faria Lima, ter de entrar no banco e o segurança perguntar o que eu fui fazer lá. Eu já vou logo causando: ‘Não vou roubar essa porra, não’.”

Põe-se a narrar um conflito que teve com um taxista na rodoviária de São Paulo: “Minha mina deu uma nota de R$ 50 para pagar, ele achou que era falsa, não queria aceitar. Me chamou de macaco. Eu causei uma dor de cabeça pra ele, mano. Fomos pra delegacia, mas a polícia é foda. Quer tudo, menos um boletim de ocorrência de racismo. Foi registrado como injúria, não como racismo. O velho se ajoelhava pra mim, chorava, dizia: ‘Eu tenho um sobrinho mais escuro de você’. Podia ser avô de Zumbi dos Palmares, não faz diferença. Perdi o show daquele dia, mas fiz o B.O. ‘Hoje eu aprendi uma lição’, ele disse no final. Se tiver chance, eu faço isso”.

Episódios como esses, em que Leandro se impõe sobre o racismo, são cruciais para a autoafirmação do cidadão, e também para a autoconfiança do artista. “Nós não falamos o que as pessoas querem ouvir. Esteticamente, a nossa aparência não é aquela que o Brasil compra. A gente tem que ser muito foda e confiar muito no nosso taco. Se tem que fazer dez vezes mais para alcançar alguma coisa, burro é você se fizer só oito”.

O rapper Emicida no sofá de seu estúdio em Santana, Zona Norte de São Paulo
Foto: Augusto Gomes

O rapper Emicida no sofá de seu estúdio em Santana, Zona Norte de São Paulo

Jacira, a mãe de Leandro e Evandro, chega ao Laboratório Fantasma e se integra à entrevista. É dela o painel meticulosamente construído com retalhos, sementes, miçangas, búzios, conchas, fitas, madeira e sucata que está pregado à porta do estúdio, para dar proteção aos filhos. O estandarte retrata os orixás do candomblé, decifra um alfabeto africano e transcreve a letra de um samba de Clara Nunes.

Viúva e em dificuldades financeiras antes de se casar novamente (com um agente funerário que ajudou a criar os meninos), ela levava os filhos pequenos ao culto evangélico, mais para alimentá-los do que pela religião em si, como Emicida lembra dando risada. “Fui empregada doméstica, vivia morando na casa dos outros, mal empregada. Armei barraca na feira, tive 500 profissões, ou mais. Aliás, não é profissão, é função”, conta. “Depois voltei para a escola, concluí o fundamental.”


Ela lembra que Leandro, quando criança, cantava repetidas vezes o verso bossanovista “o barquinho vai, a tardinha cai”. E se mostra tão sensível quanto o filho às questões raciais: “Quando mudei para cá, com cinco anos, esta região da Serra da Cantareira tinha muito japonês. Minha referência eram festas japonesas, e as filhas dos portugueses eram nossas professoras, que foram marcando em mim a ideia de que a nossa cor não é boa. Até três anos atrás eu estava cega, não sabia que sou afrodescendente, negra e brasileira. Se soubesse antes ninguém ia poder comigo”.

Jacira fala criticamente de seus heróis de infância nas histórias em quadrinhos, Tarzan e Fantasma. “Estudando, vi que Tarzan é o algoz, o herói branco que adentra a África e se comunica com os animais. Acabaram com a minha fantasia”, ri. E relata as aflições que sentia por ter um filho rapper. “Tinha medo de a música não dar certo, pensava: ‘Esse menino é preguiçoso demais, não carrega tijolo’. Achava que ele tinha que ser um bom servente de pedreiro”, admite. “Ela não me incentivava, mas um dia chegou em casa com um teclado”, lembra o filho.

O hip-hop de Emicida é incomum também porque ele aprecia desafiar a misoginia comum em tantos raps do passado. “Muitos ainda chamam as minas de vadias. Os rappers criticam o funk carioca, que chama as minas de cachorras, mas fazem a mesma coisa.” A lírica faixa "Rua Augusta" é o melhor exemplo dessa vertente em Emicídio: “Conheço várias minas que são putas, sei os bastidores da coisa. Passo ali e vejo não como quem come a puta, mas penso nos filhos que ela tem para criar, se está com frio. Ninguém decide ser prostituta com 8 anos de idade”.

Casado e pai de Estela, hoje com sete meses, Emicida avança no tema dos preconceitos e toca em outro tema quase sempre evitado pelo rap (e pela sociedade), a homofobia: “Pelos estereótipos, puta dá, veado é promíscuo e preto rouba. Se é alguém próximo, você tenta cuidar, mas se não… Tenho um primo gay, a mãe dele fala que é deficiente mental, dá calmante, trata. Ele é normal, todo mundo vê que é gay só a mãe tem receio de assumir isso para o mundo”.

Mãe e filho divergem sutilmente quando o assunto é eleição. “Eu não gosto do Serra antes de qualquer coisa. Não tenho afeto pelo PSDB”, afirma Emicida, colocando sentimento na política. “Não achei maneiro a TV Cultura acabar com o Manos & Minas, porque o novo diretor (João Sayad) não conhecia o programa. Não se brinca com essas coisas. Foi o que repercutiu de modo mais negativo na campanha do Serra para mim”.

Diz Jacira: “O PSDB vem de longa data fechando instituições que lidam com a cultura, circos-escola, centros de juventude, sem dar a menor satisfação. Eu fui petista desde que me vi consciente, trabalhei próxima de Marta e Lula. Mas a gota d’água para mim foi quando Lula ficou contra o fim da CPMF. Não voto em ninguém, nem vou lá.”

Leandro diz que pretende votar, mas ainda está indeciso. “Me identifico talvez com a Marina. E gosto muito do Lula, por isso acabo me identificando com a Dilma também. Lula é uma ofensa para muita gente, e eu me considero também uma ofensa para muita gente”, compara. Quanto ao próprio Emicida, é difícil crer que alguém possa se ofender com o modo maduro e autocrítico como ele e a nova geração do rap brasileiro têm lutado por se expressar.


A Origem e Consolidação do Racismo no Brasil




Escrito por Mário Maestri

1- Constituição e Racionalização da Exploração Escravista na Antiguidade

A desqualificação dos oprimidos é recurso histórico, consciente e inconsciente, dos opressores para racionalizar e consolidar a exploração. Nas formas de produção pré-capitalistas, essa desqualificação centrou-se fortemente na natureza dos explorados. No clássico A origem da família, da propriedade privada e do Estado, de 1884, Frederico Engels assinalou a dominação da mulher pelo homem, no contexto da primitiva divisão sexual do trabalho, como a primeira forma geral de exploração. "[...] o primeiro antagonismo de classes que apareceu na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mulher na monogamia; e a primeira opressão de classes, com a opressão do sexo feminino pelo masculino". A opressão da mulher apoiou-se tradicionalmente na defesa de sua inferioridade, fortemente ancorada na sua diversidade fisiológica em relação ao homem. O magnífico Aristóteles apontava como exemplo da inferioridade feminina o fato de que ela teria menos dentes que os homens!

A escravidão patriarcal, base da produção na Grécia homérica, surgiu quando o produtor superou sistematicamente suas necessidades de subsistência, produzindo excedente capaz de ser apropriado pelo explorador. A orientação da produção para o consumo do núcleo familiar da pequena propriedade grega, de uns cinco ou pouco mais hectares [oikos], pôs relativamente travas à exploração do homem e da mulher escravizados. Não havia sentido em produzir acima do consumido pelos proprietários, familiares, dependentes e cativos. No escravismo patriarcal, o proprietário, sua família e dependentes trabalhavam comumente ao lado do cativo, em proximidade que apenas minimizava o caráter despótico daquela relação social de produção.

Com a consolidação da propriedade privada sobre a terra e seus frutos e a expansão do mercado, a escravidão patriarcal desenvolveu-se e superou-se qualitativamente. Ainda que fossem numerosas as pequenas propriedades escravistas de subsistência, nos dois séculos finais da República e nos dois primeiros do Império, dominou social e economicamente a pequena propriedade escravista pequeno-mercantil especializada. Orientada para o mercado, a villa tinha em torno de uns dez a trezentos hectares e trabalhava com algumas poucas dezenas de cativos. A dimensão reativamente restrita e o caráter dos seus produtos, que exigiam comumente trabalho intensivo, especializado e sazonal, impediram tendencialmente a degradação das condições do trabalho servil conhecida séculos mais tarde na escravidão colonial. Era monótona e dura a existência do produtor escravizado nessas propriedades.

Transição Histórica

Por variadas razões, fracassou a evolução da produção pequeno-mercantil em escravismo mercantil, ou seja, em grandes propriedades trabalhadas por dezenas e centenas de cativos, tentada em diversas regiões, com destaque para as propriedades triticultoras da Sicília. Sob a forte pressão dos produtores escravizados, abriram-se então as portas à longa transição ao colonato e, a seguir, à produção feudal. Nesta última, o produtor deixava de ser, como anteriormente, propriedade plena do explorador. Sob a obrigação de pagamento de rendas delimitadas, ele passou a controlar sua família e seus instrumentos de trabalho e a gerir relativamente a gleba à qual era adstrito, em importante evolução histórica que não o emancipou da servidão. A escravidão plena, menos produtiva e mais custosa, manteve-se como relação de dominação subordinada na Europa, em alguns casos, até o século 18.

A violência foi sempre a principal forma de submissão do trabalhador na escravidão patriarcal e pequeno mercantil. Os cativos e cativas tidos como relapsos e desobedientes eram forte e exemplarmente castigados. Os atos de rebelião contra os proprietários, familiares e feitores eram punidos com a tortura e a morte. Não raro, os cativos rebeldes eram queimados vivos. No Império, quando a escravaria urbana dos romanos mais ricos podia superar os cem membros, o receio dos proprietários à resistência do cativo chegou ao paroxismo. Lei romana dos primeiros anos de nossa determinou que, se um pater famílias, ou seja, um proprietário escravista ou seu familiar fosse assassinado, todo cativo que, encontrando-se a uma distância em que pudesse ouvir seu pedido de ajuda, não o socorresse, seria torturado e executado. Nos tempos de Nero, Padânio Secondo, prefeito de Roma, foi justiçado por cativo que lhe pagara e não recebera a manumissão. Todos seus quatrocentos cativos, de ambos os sexos e das mais variadas idades, foram executados, apesar da agitação que a terrível medida causou entre a plebe romana formada em boa parte por libertos.

A escravidão apoiou-se também na submissão ideológica dos cativos. Entre os múltiplos mecanismos utilizados, destacava-se o convencimento do cativo de sua natureza diversa e inferior, proposta que racionalizava e consolidava a ditadura dos escravizadores sobre os escravizados.

Azares da Sorte

Na Grécia homérica, a escravidão era vista como decorrência dos azares da sorte – guerra, captura, dívida etc. A visão platônica expressava uma época em que a escravidão tornara-se instituição importante. Para Platão, a servidão de um indivíduo ou de um povo devia-se à incapacidade de se auto-governar, por falta de discernimento intelectual, cultural ou moral, qualidades exclusivas ao mundo, cultura e homem helênicos. Porém, para ele, era a lei que determinava quem era escravo e senhor. Entretanto, sua teoria da superioridade da alma sobre o corpo consubstanciava já a visão da submissão necessária do súdito ao soberano, da mulher ao homem, do escravizado ao escravizador.

A visão aristotélica da escravidão nasceu em sociedade solidamente escravista. Para Aristóteles, era inaceitável que um homem fosse submetido e mantido na escravidão apenas pela força, sancionada pela lei. O que lhe apontava a força, como forma de emancipação. Ele superou a tese platônica, ao defender raiz natural e, portanto, genético-racial à servidão. Para Aristóteles, a reunião de diversas famílias formava o burgo e a associação de diversos burgos, a cidade, ou seja, a sociedade política. Um processo determinado pela natureza que compelia "os homens a se associarem" na procura do "fim das coisas", a felicidade.

Para Aristóteles, a família "completa", unidade de base da sociedade, forma-se por homens livres e escravizados. Para ele, a natureza criara as coisas diferentes, na procura da especialização, pois o melhor "instrumento" era o que serve para "apenas" um "mister", e não para muitos. Assim, na consecução de fins comuns, seres de essência diversa complementavam-se, cada qual realizando a função para que fora criado pela natureza. Os mais elevados comandavam os menos perfeitos. "A autoridade e a obediência não só são cousas necessárias, mas ainda [...] úteis. Alguns seres, ao nascer, se vêem destinados a obedecer; outros, a mandar".

A natureza determinava que o pai dominasse o filho, o homem a mulher, o senhor o escravo. "[...] a todos os animais é útil viver sob a dependência do homem. Os animais são machos e fêmeas. O macho é mais perfeito e governa; a fêmea o é menos, e obedece. A mesma lei se aplica naturalmente a todos os homens". "Há também, por obra da natureza e para a conservação das espécies, um ser que ordena e um ser que obedece. Porque aquele que possui inteligência capaz de previsão tem naturalmente autoridade e poder de chefe; o que nada mais possui além da força física para executar deve, forçosamente, obedecer e servir – e, pois, o interesse do senhor é o mesmo que o do escravo". Fundando o direito da servidão na inferioridade natural e não na força, consolidava ideologicamente a ordem escravista grega, impugnando a escravização do heleno, por um lado, e a validade do bárbaro de emancipar-se pela força, por outro. Propunha que oprimidos e opressores se associariam na consecução de objetivos comum, pois, sendo a opressão algo próprio da ordem da natureza, não haveria civilização à margem da mesma.

Como os Animais Domésticos

Aristóteles foi mais longe, ao propor que a especialização natural, ou seja, a inferioridade e superioridade, se expressasse na própria constituição dos seres. A inferioridade dos "animais domésticos", que serviam com a "força física" ao dono nas "necessidades quotidianas", como o boi, o asno etc., registrava-se nos seus corpos de brutos. O mesmo ocorria entre os homens, pois a "natureza" pareceria "querer dotar de característicos diferentes os corpos dos homens livres e dos escravos". "Há na espécie humana indivíduos tão inferiores a outros como o corpo o é em relação à alma, ou a fera ao homem". Os homens incapazes de outra função que as relacionadas à "força física" eram "destinados à escravidão".

A proposta de registro material da superioridade e inferioridade naturais dos homens constituía elemento central na racionalização aristotélica da exploração escravista, retomada plenamente no mundo romano, e, mais tarde, na Idade Média e Moderna. A força desta proposta encontrava-se no registro, indiscutível, nos corpos, da inferioridade da alma. O que tornava materialmente visível a hierarquização social, com homens superiores, destinados a mandar e serem servidos, e homens inferiores, destinados a obedecer e servir. Porém, tal proposta materializou-se em forma muito limitada no mundo grego, por falta de condições objetivas nas quais pudessem se apoiar as fantasmagorias dos escravizadores.

Mesmo no mundo grego tardio, os cativos provinham sobretudo das províncias e regiões periféricas do mundo helênico. Portanto, havia forte identidade étnica entre amos e cativos. O que dificultou a tentativa permanente de apontar traços somáticos que expressassem as naturezas diferenciais, superiores e inferiores, dos escravizadores e dos escravizados. Inicialmente, a escravidão romana apoiou-se na escravização de povos itálicos, de forte semelhança étnico-somática. Com a extensão da escravidão, foi feitorizada infinidade de povos da bacia do Mediterrâneo e da Europa Ocidental, Central e Oriental. A diversidade étnico-linguística dessa população escravizada impediu, também, o procurado registro fenótipo da pretensa natureza humana inferior do escravizado.

A sociedade romana enfatizou a cultura e a língua como elementos diferenciadores, ainda que os múltiplos traços fenótipos dos cativos fossem apontados como registro de inferioridade. É conhecida a descrição de escravista romano, com propriedade na Magna Grécia – um italiano meridional, nos dias de hoje; dos traços semi-bestializados de seu cativo germânico. Ou seja, um alemão atual. Sequer o renascimento ibérico da escravidão, com a Reconquista, produziu identificação cabal e duradoura entre etnia e escravidão. Tal fenômeno materializar-se-ia quando do renascimento do escravismo, nas Américas, dando origem à desqualificação essencial do africano subsaariano, base das visões racistas anti-negro contemporâneas.


Mário Maestri, 62, é professor do curso e do programa em Pós-Graduação em História da UPF. É autor, entre outros trabalhos, de O escravismo antigo e O escravismo brasileiro, publicados pela Editora Atual. E-mail: maestrti@via-rs.net

Grupo de meninas DJs cria projeto para ensinar jovens carentes a fazer hip hop


"Nossa ideia não é segmentar, mas mostrar às mulheres que elas têm espaço" explica Mayra, uma das integrantes do Hip Hop de Salto

Larissa Drumond, iG São Paulo


Vivian Marques, Lisa Bueno, Mayra, Simmone e Tati Laser são um grupo de meninas que toca em festas. Mas elas não animam a galera com o último single da Lady Gaga, nem da Katy Perry. O negócio delas é rap e hip hop. Depois de se esbarrarem em vários eventos e festivais, Lisa, que toca há 12 anos, convidou as outras quatro para trocar experiências, discos e habilidades nas pick-ups. Surgia, em 2008, a Applebum – ou “Applebunitas”, como costumam brincar. Pouco depois de terem se unido para fazer scratches e batidas, elas se inscreveram no DMC Campeonato Nacional de DJ, no qual alcançaram o terceiro lugar. “Nossa ideia não é só tocar, mas fazer performances também. É usar vinil, batida, instrumental e criar outra música”, diz Mayra.

Encontro do projeto: debate sobre os rumos do hip hop e dos festivais

Agora elas se encontram regularmente para continuar juntas na ativa. E decidiram dar oportunidade para outras garotas com a criação do “Hip Hop de Salto”, um projeto que envolve oficina de DJ, workshops, palestras e rodas de debate. Em 2009, a crew recebeu apoio do Fundo Social Elas, da Espanha; agora, com o suporte da prefeitura de São Paulo, haverá mais três encontros até o fim do ano – o primeiro aconteceu no último sábado (18). “Nossa ideia não é segmentar, mas mostrar às mulheres que elas têm espaço”, diz Mayra. “Por causa do preconceito de antigamente, elas não buscam quebrar barreiras. Sou DJ há um bom tempo e meus amigos sempre me ensinaram, me emprestaram discos e me incentivaram”, conta Vivian.

Por mais que busquem o mesmo espaço – e reconhecimento – que os homens, as cinco admitem que as mulheres têm um feeling diferente na hora de escolher o setlist. Mesmo aquelas que preferem um som mais pesado, como a Tati Laser. “Eu sou da rua, gosto de tocar underground. Sem querer classificar, mas já classificando, é ‘para os moleques’. Mas sou aberta a todas as músicas”, brinca.

Vivian é fã de R&B e Simmone sempre inclui as cantoras dos anos 90. “Sou militante. Se não fosse por Queen Latifah e MC Lyte, que começaram todo esse movimento, nós nem estaríamos aqui hoje”, lembra. Mayra é apontada pela turma como a indie. “Sou eclética, gosto do underground e adoro R&B”, defende-se. “Mas opto por mostrar novidades e sons conhecidos pouco tocados, como Amy Winehouse e Sharon Jones. Sempre puxo para a linha do jazz e do soul”, completa a DJeia – forma como elas se chamam de brincadeira, sem nenhum cunho ideológico. “Aliás, a gente tem de parar com isso. É como falar ‘MC mulher’, não existe”, lembra.

Elas só tocam com vinil: é um charme, mas cria dificuldades

Um desafio na hora de tocar – mas também um charme! – é que todas usam vinil. Nada de CDs, MP3 ou uma maçãzinha branca brilhando na frente do DJ. “Às vezes quero soltar um lançamento da semana passada, mas não tem disco. Também queria tocar muito mais rap nacional”, lamenta Mayra. E hoje o rap brasileiro está cada vez mais próximo ao gringo. Há alguns anos, as letras só retratavam favela, pobreza, periferia e crime – quem nunca se pegou recitando “aqui estou, mais um dia, sob o olhar sanguinário do vigia”? “Agora a música também aborda temas de trabalho e romance, mas não gira dinheiro como nos Estados Unidos”, diz Vivian. “A maior diferença é que os caras veem grana: é diamante, mulher bonita, carro, bebida e dinheiro; aqui não é bem assim”, adiciona Tati Laser.

Roda de rap
Os encontros do Hip Hop de Salto incluem mesa redonda de discussão sobre os rumos da música. As garotas da Applebum elaboram os temas e convidam personalidades especialistas no assunto. No encontro de setembro, o tema foi “Hip Hop de Fora para Dentro”; no caso, pessoas que já trouxeram artistas internacionais para shows em São Paulo. Guigo Lima, produtor de festas, e Rodrigo Brandão, idealizador do Indie Hip Hop – maior festival de rap do Brasil, que existia há dez anos e teve sua última edição em 2009 –, contribuíram com suas experiências.

“Nós queríamos saber os motivos do fim [do projeto]. O pessoal do rap não se atualiza muito e meio que esgotou a lista de MCs clássicos dos anos 90, que todo mundo gostaria de ver”, diz Mayra. Depois de duas horas de conversa, como amigos numa conversa informal e gostosa de bar, eles falaram sobre a vinda do Mos Def ao Brasil, a depredação do Sesc Santo André no último dia de festival, a atitude e a postura dos rappers internacionais e os erros tanto dos produtores, como do público. “Essas discussões são importantes porque agregam conhecimento. Muitas vezes, as pessoas se limitam ao que chega para elas em vez de assistir a uma palestra”, diz Vivian. “É serviço mesmo, utilidade pública”, finaliza Mayra. O próximo será no dia 28 de outubro, com as MCs Rúbia e Lurdez da Luz, sobre a mulher no universo do hip hop.

DJ, aumenta o som!
O projeto Hip Hop de Salto só aceita meninas. As inscrições são realizadas pelo blog ou pelo e-mail hiphopdesalto@gmail.com. De 600 solicitações, em média, apenas 20 garotas são escolhidas. Um dos critérios de seleção, além de ser mulher, é o financeiro. “Quanto menor o poder aquisitivo, mais chances de entrar para a turma. A gente já recebeu e-mails absurdos de pessoas com condições de fazer um curso pago e que se inscreveram só porque era gratuito”, opina Simmone. As oficinas acontecem no centro de São Paulo, na e-DJs, com 12 aulas durante três meses.

Mais da metade das mulheres negras trabalham sem carteira assinada


Por: Isabela Vieira, da Agência Brasil

Rio de Janeiro - As mulheres negras (pretas e pardas) estão em situação pior no mercado de trabalho que as brancas, revela pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgada nesta sexta-feira (17), mostrando que elas são maioria entre as trabalhadoras informais.

A pesquisa Síntese dos Indicadores Sociais 2009 destaca que enquanto metade das mulheres pretas (54,1%) e pardas (60%) trabalha sem carteira assinada, portanto, sem direito a benefícios como seguro desemprego e licença maternidade, o percentual de brancas na mesma situação é de 44%.

A situação contrasta com o fato de "um tipo de família mais vulnerável", segundo o documento, ser o de mulheres sem cônjuge, com filhos pequenos, cujos percentuais de mães pretas é de 23,3% e pardas, de 25,9%. Famílias nessas condições com mulheres brancas representavam 17,7% do total.

De acordo com o IBGE, a situação menos favorável das mulheres negras se dá em função da escolaridade e da renda. “Quando consultamos menores rendimentos, a maioria se declara preta ou parda. Tem uma correlação entre escolaridade, renda e cor flagrante”, justificou a pesquisadora, Ana Lúcia Sabóia.

Do total da população, a informalidade é maior entre as mais jovens e mais velhas. Entre aquelas de 16 a 24 anos, é de 69,2% e entre as com mais de 60 anos, de 82,2%. Segundo a pesquisa, os dois segmentos concentram pessoas com mais dificuldade de conseguir emprego.

"No caso da mais jovens, pode ser também pela dificuldade de conciliar emprego e estudos, e, no caso das mais idosas, o retorno de aposentadas e pensionistas ao mercado", diz o texto.

Em relação à posição na ocupação, a síntese destaca que os brancos eram 6,1% dos empregadores, enquanto os pretos eram 1,7% e os pardos, 2,8%. A maioria da população negra trabalhava sem carteira (17,4% entre os pretos e 18,9% entre os pardos). Entre os brancos, o percentual era de 13,8%


Juventude e violência


Autor : Robson
  • Robson Sávio
  • Direitos humanos, cidadania, segurança pública, política e religião


Apesar de uma significativa melhoria nos indicadores de crimes nos últimos anos, o Brasil é um país violentíssimo. E vários estudos têm comprovado, sistematicamente, que os jovens são as maiores vítimas da criminalidade. A escassez de políticas públicas destinadas aos jovens, um grande número de armas disponíveis (e sem controle do Estado) e o adensamento do tráfico de drogas, principalmente nas periferias das grandes cidades, são fatores que contribuem para o adensamento da vitimização juvenil. Esses ingredientes articulados respondem por altas taxas de letalidade desta população.
Dados de uma pesquisa divulgada em agosto do ano passado pelo Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (em parceria com o UNICEF, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República e a organização não governamental Observatório de Favelas), projeta que o número de mortos na faixa etária entre 14 e 19 anos chegará a 33.504 entre 2006 e 2012, sendo que metade desses crimes acontecerá nas capitais. A chance de um jovem morrer por arma de fogo é três vezes maior na comparação com outras armas.
De acordo com o levantamento, a média de adolescentes assassinados no Brasil antes de completarem 19 anos é de 2,03 para cada grupo de mil. O número é preocupante, dado que, numa sociedade pouco violenta essa taxa deveria apresentar valores próximos de zero.
O estudo feito em 267 municípios brasileiros com mais de 100 mil habitantes, revela, também, a disparidade entre as condições de segurança nas diferentes regiões do país. Em 34% dos municípios pesquisados, o IHA – Índice de Homicídios na Adolescência - foi inferior a um adolescente assassinado para cada grupo de mil. Cerca de 20% das cidades obtiveram valores superiores a três jovens mortos por mil habitantes. Significa que, em tese, um em cada 500 adolescentes brasileiros será assassinado antes de completar 19 anos.
Por fim, o estudo mostrou que a probabilidade de ser vítima de homicídio é quase 12 vezes maior para homens; que a população negra é a que mais sofre com a violência e que o risco de um jovem negro morrer assassinado é 2,6 vezes maior em relação a um branco.
Levando em conta outros indicadores que apresentam uma concentração de mortes na faixa etária que vai dos 14 aos 29 anos, como por exemplo, as mortes de jovens no trânsito, pode-se concluir que nosso país tem uma dívida social enorme para com os adolescentes e jovens. Somente 26% das mortes dos adolescentes são por causas naturais. Os outros 74% das mortes derivam de múltiplos fatores – acidentes, brigas banais, ação policial inadequada, envolvimento com o tráfico de drogas, exclusão social.
Quem pesquisa o tema também tem uma certeza: as políticas públicas de enfrentamento à violência devem ser dirigidas, prioritariamente, à população jovem dos bairros mais pobres. Não há relação direta entre pobreza e criminalidade, mas alguns fatores existentes nestes locais contribuem para o aumento da violência, dentre eles o desemprego, o tráfico de armas e drogas e a falta de políticas públicas nas áreas de educação, saúde, lazer e serviços de apoio às famílias nesses locais.
Há que se registrar que as novas políticas públicas voltadas para a diminuição da violência juvenil, principalmente de prevenção à criminalidade, não devem ratificar o preconceito que rotula os jovens como sendo um problema, pois se eles são os principais autores da violência, também são as principais vítimas.
Os jovens violentos de todas as classes e principalmente das grandes cidades brasileiras enfrentam muitos desafios que os impedem de exercer sua cidadania; portanto, a função das políticas públicas é auxiliá-los para que eles possam vencer os obstáculos e usufruírem plenamente dos seus direitos e responsabilidades de cidadãos.


Fonte : http://www.dzai.com.br/robsonsavio/blog/conversandodireito

Segurança Pública: muitos desafios


Robson
  • Robson Sávio
  • Direitos humanos, cidadania, segurança pública, política e religião


A atual configuração da segurança pública brasileira responsabiliza os estados pela gestão dessa política.

Apesar da importância do governo federal, através da Secretaria Nacional de Segurança Pública – principalmente para induzir (via financiamento e incentivos) as inovações nessa área -, e o crescente papel dos municípios, é o estado que acumula as principais ações de combate e prevenção ao crime.

Tendo em vista as eleições de outubro, apresentamos algumas reflexões sobre os desafios na área da segurança em Minas Gerais.

Antes de tudo, é importante reconhecer os avanços nos últimos anos, que deram nova configuração para a política de segurança.

Quais seriam, na nossa opinião, os principais desafios?

1. Gestão policial e controle das polícias: em Minas há um importante programa em curso com o objetivo de integrar e otimizar as ações policiais, chamado IGESP. Porém, há muita resistência das organizações policiais para sua completa implementação. Outro ponto importante: muitos policiais, de ambas as corporações (militar e civil), estão ocupados com atividades burocráticas, nem sempre exclusivas da ação policial e que poderiam ser realizadas por outros funcionários públicos e, em alguns casos, até em parceria com ONG’ e empresas. Uma gestão dos servidores da segurança precisa romper com os feudos acumulados ao longo dos anos. Aliás, gestão policial eficiente é fundamental para o planejamento das ações de prevenção e repressão do crime. Por outro lado, os mecanismos de controle da ação policial, não obstante alguns avanços conseguidos na nova estrutura da Secretaria de Estado de Defesa Social, ainda são bastante frouxos. A Ouvidoria de Polícia teve seu papel bastante reduzido e o Ministério Público não conta com uma promotoria especializada nessa área. Eficiência e transparência da ação policial: binômio que sintetiza uma polícia moderna.

2. Políticas de prevenção: se a repressão qualificada – baseada na eficiência da gestão policial – é importante para o aprimoramento da segurança pública, os programas de prevenção são fundamentais. Em Minas, contamos com programas bem avaliados nessa área, como o Fica Vivo, as Centrais de Penas e Medidas Alternativas e os Núcleos de Mediação de Conflitos. É preciso, porém, que esses programas: (1) sejam integrados a outros programas sociais, como políticas de empregos para os jovens e educação em tempo integral para crianças em áreas vulneráveis e (2) políticas de prevenção ao uso das drogas, articuladas a ações de tratamento e/ou redução de danos para aqueles jovens que já estão envolvidos com os entorpecentes.

3. Sistema prisional: Minas Gerais, nos últimos anos, foi o estado que, proporcionalmente, mais prendeu: levantamento da Secretaria de Estado de Defesa Social aponta que entre dezembro de 2003 e abril de 2010, a população carcerária do Estado passou de 23.118 presos para 48.687. No mesmo período foram criadas 3.038 vagas por ano, em presídios e penitenciárias mineiras. O sistema prisional duplicou. É verdade que investimentos nessa área melhoraram significativamente a execução da pena. Porém, todos os estudos apontam que o aumento das prisões nem sempre significa diminuição dos crimes. Ademais, as prisões – em todo o mundo – são onerosas e de baixíssima eficiência, dado que a reincidência criminal é enorme. Neste sentido, é preciso que os programas de prevenção funcionem – para evitar o adensamento do sistema prisional – e que outros programas sejam fortalecidos, como as penas alternativas. Política de construção desenfreada de prisões redunda em poucos benefícios no presente e um legado desastroso para o futuro. É preciso pensar em outros mecanismos de punição. Por exemplo, grande parte dos infratores é presa por ter praticado crimes como o patrimônio, como roubo. Não oferecem risco social. Será que a melhor solução para esse tipo de infrator é a prisão?

4. Sistema de medidas socioeducativas: os jovens são hoje as principais vítimas e autores dos crimes. Cada vez mais, a população dos centros de internação aumenta, dado o número de adolescentes envolvidos, principalmente, com o tráfico de drogas. Muito foi feito – como a construção de novos centros de internação e investimentos em pessoal qualificado, mas é preciso investir mais nesse sistema, dando condições efetivas para a “ressocialização” desses jovens. As medidas socioeducativas, principalmente aquelas em meio fechado, devem se articular com ações voltadas para as famílias desses adolescentes. Ademais, se na Região Metropolitana de Belo Horizonte temos novos centros de internação, no interior do Estado centenas de jovens estão amontoados em cadeias e outras unidades prisionais, ao arrepio da lei. É preciso atuar firmemente para mudar essa realidade.

5. Integração intergovernamental: as agências do sistema de segurança pública sob responsabilidade do Executivo estadual (polícias, sistemas prisional e de medidas socioeducativas) devem avançar na integração das ações com o Judiciário e com as agências municipais, otimizando recursos e ampliando parcerias. Segurança pública depende de uma série de agências e de atores dos vários níveis de governo que precisam avançar na integração e na articulação. Por outro lado, espera-se do governo federal o cumprimento da sua missão, principalmente liberando os recursos necessários dos fundos nacionais de segurança pública e penitenciário para as ações de segurança nos estados e nos municípios.

6. Focalização: os problemas da segurança pública são muito diversificados. O perfil dos crimes e dos infratores varia muito nas regiões do Estado e no tipo de delito praticado. A situação da RMBH demanda um planejamento especial, envolvendo todos os municípios. Em outras regiões do Estado, bons diagnósticos poderão apontar as melhores maneiras de atuação das várias agências. Públicos específicos, como os jovens, os presos, os adolescentes infratores e os usuários de drogas carecem de política focalizadas, integrando várias ações governamentais.

Manifeste você também opiniões sobre a política de segurança pública.


Fonte : http://www.dzai.com.br/robsonsavio/blog/conversandodireito

Crack: "a pedra da morte"

Robson
  • Robson Sávio
  • Direitos humanos, cidadania, segurança pública, política e religião


Pesquisa recém divulgada pelo Centro de Pesquisas em Segurança Pública (Cepesp) da PUC Minas aponta que o crescimento das ocorrências de homicídios em Belo Horizonte e Região Metropolitana, a partir de 1997, entre jovens de 15 e 24 anos, está diretamente relacionada ao aumento dos conflitos relacionados ao tráfico de drogas, em especial do crack. “No caso dos usuários dessa droga, há um perfil relativo e diversificado, inclusive de pessoas de nível socioeconômico elevado”.

Algumas outras pesquisas corroboram com os dados do Cegesp, mostrando a relação estreita do crack com o aumento dos homicídios juvenis. O Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da UFMG, Crisp, também mostrou essa relação. Justamente no momento no qual há uma escalada da criminalidade violenta em Belo Horizonte, a partir de 1997, detectou-se o incremento do tráfico de drogas em várias regiões da cidade e, posteriormente, a disseminação do crack nessas localidades.

Como se sabe, o crack é derivado da cocaína. E em 17 de junho passado, a ONU (Organização das Nações Unidas) já apontava o Brasil como "principal corredor da cocaína no mundo". No relatório, baseado em dados das apreensões de 2008, o órgão identificou uma rota que vem dos países andinos - Colômbia, Peru e Bolívia - e cujo destino final é a Europa, passando antes por países africanos.

Segundo a ONU, pela América do Sul passaram, em 2008, 212 toneladas de cocaína, sendo que 124 toneladas tinham com destino a Europa. O volume representa R$ 60,7 bilhões (U$ 34 bilhões).

O relatório aponta ainda que os traficantes brasileiros tomaram conta do aumento de produção na Bolívia e no Peru - tradicionais cultivadores da planta de coca que, até então, não tinham grande conhecimento do refino do entorpecente. O crescimento na produção pode ser um reflexo da queda na Colômbia, maior fornecedor de cocaína do mundo.

Uma das consequências de ser um corredor de drogas é que o país se torna, também, um grande consumidor. Nosso país tem o maior número de usuários de cocaína na América do Sul, com aproximadamente um milhão de consumidores - a ONU considera consumidor aquele que faz uso da droga ao menos uma vez no ano.

Como enfrentar essa epidemia?

1. Políticas de repressão, principalmente voltadas para o combate ao tráfico internacional de drogas (atenção especial às fronteiras e à corrupção de agente público) e às redes de tráfico local, com a criação de agências especializadas e cooperação das agências já existentes.

2. Articulação com a saúde pública, visando o tratamentos para os dependentes; utilizando-se de várias metodologias, inclusive a “redução de danos”, para casos mais graves.

3.Políticas voltadas para apoio e proteção familiar, focalizadas em estratos sociais mais vulneráveis.

Fonte : http://www.dzai.com.br/robsonsavio/blog/conversandodireito

Os altíssimos custos sociais da violência


Autor:Robson Sávio


Enganam-se os que pensam que os custos da violência são relacionados somente aos gastos com os sistemas de segurança público e privado.

Os gastos do Sistema Único de Saúde (SUS), por exemplo, com internações por agressão em 2006 foram de R$ 40 milhões. A despesa com as internações das vítimas de acidentes de carro no mesmo ano foi de aproximadamente R$ 117 milhões. Os custos totais com a violência no trânsito foram da ordem de R$ 28 bilhões (2008), segundo o Ministério da Saúde. Os números, no entanto, para tratar essas agressões e acidentes são pelo menos quatro vezes maiores. É o que mostra estudo realizado por pesquisadores do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Mas as conseqüências da violência e da criminalidade não se limitam aos custos tangíveis para a sociedade. Uma pesquisa do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) mostrou custos não computados gerados, por exemplo, para familiares de vítimas de homicídios: insônia, depressão, lembranças de fatos passados vinculados ao crime, estresse - todas estas reações se impõem à vida das pessoas que de certa maneira foram afetadas por crimes. Os custos nesses casos também são altos, com interrupções nas tarefas do trabalho e da educação, dificuldades de convivência, problemas na estrutura familiar e desequilíbrio financeiro, entre outros.

Outro estudo, também do Ipea, mostrou que além dos gastos com os efeitos diretos sobre as vítimas e seus familiares, existe também o dispêndio do Estado, além do sistema de saúde, com os sistemas da Justiça e da previdência social, por exemplo, para aposentadorias e afastamento do trabalho das vítimas da violência.

A violência afeta diretamente a vida das pessoas reduzindo a intensidade das relações sociais. Por serem vítimas de delitos ou conhecerem pessoas que foram vítimas, as pessoas passam a se relacionar menos com as outras pessoas buscando reduzir o risco a que poderiam estar submetidas. Isto gera perdas para o comércio (pois as pessoas circulam menos, por exemplo) e para outros setores da economia, como o Turismo, diretamente afetados pela diminuição dos fluxos em razão de ações criminosas. No setor produtivo empresarial, os gastos se tornam cada vez maiores, não no seu foco de negócio, mas em proteção para evitar perdas.

Alguns dados são surpreendentes. Em 2005 os gastos com seguros atingiram R$14, 561 bilhões, representando 0,69% do Produto Interno Bruto (PIB) e custo per capita de R$ 80,30. Já os gastos com segurança privada atingiram R$ 17,209 bilhões, ou 0,79% do PIB e custo per capita de R$ 81,93. Isto considerando que há uma imensa subnotificação dos crimes. Ou seja, provavelmente os gastos são maiores.

O estudo mostra que em 2004, o custo da violência no Brasil foi de R$ 92,2 bilhões, representando 5,9% do PIB, ou um valor per capita de R$ 519,40. Deste total, R$ 28,7 bilhões correspondem a gastos pelo setor público e R$ 60,3 bilhões são custos tangíveis e intangíveis arcados pelo setor privado.

Outros custos ainda derivados da violência são difíceis de serem mensurados: corrupção, lavagem de dinheiro, contrabandos, só para citar alguns.

Portanto, a violência deveria ser uma das principais pautas dos candidatos nessas eleições. Mas pouco se fala. Afinal, o problema da segurança dos cidadãos, direito humano indispensável à vida saudável em qualquer sociedade, ainda não mobiliza a opinião pública pelo desconhecimento, justamente, dos inúmeros malefícios provocados pela violência.

Fonte : http://www.dzai.com.br/robsonsavio/blog/conversandodireito

As Religiões de Matrizes Africanas e a Família

Autor: Ana Maria Felippe











As Religiões de Matrizes Africanas e a Família

Bem sabemos sobre a vinda do povo negro para as terras do Brasil, a partir de um ponto do extremo oeste no continente africano, em Dacar, capital do Senegal. Foi também a partir da pequena ilha de Gorée que cerca de 15 milhões de homens, mulheres e crianças foram embarcados para as diversas nações escravagistas, cabendo ao Brasil o número aproximado de 1/3 desse total.

A pequena ilha servia como porto comercial para os portugueses, onde o “produto” era alocado em construções especialmente feitas para armazenar, pesar, vender e deportar os negros para os países distantes. Como “mercadoria”, “peça”, muitos morriam ou ficavam tão doentes que não serviam mais para serem comercializados e eram (simplesmente) jogados ao mar. Todos os números são de estimativas e também o número de mortos (na ilha ou nas viagens): em torno de 6 milhões, para mais.

Homens, mulheres e crianças muitas vezes formavam famílias inteiras que tiveram o trajeto até Gorée como última convivência. Negros eram “peças”; por isso nunca foram tratados como “família”, nem mesmo quando, depois, no cativeiro, nas senzalas, se aproximavam por laços de afeto. São inúmeros os relatos (históricos) sobre o estupro de mulheres negras; sobre o uso de homens negros como reprodutores de “escravos”. A tão falada “miscigenação” que temos no País se deve, originalmente, aos filhos “bastardos” dos “senhores” com as mulheres negras escravizadas.

Passando pela “porta do não retorno” (**) ou girando em torno da “árvore do esquecimento” (***), para que não guardasse lembrança de sua terra e de sua identidade cultural, cada criatura era (simplesmente) filho de um par de seres humanos que por sua vez eram igualmente filhos de outros pares, formando a linha da ancestralidade de cada um, de cada uma.

Aqui chegando – despojados de tudo – o que aproximava cada negro, cada negra, era a história comum, inclusive a do despojamento. A solidão de “eu comigo mesmo”, sem pai, mãe, esposa, marido, filho, filha (porque cada um/a foi vendido para um lugar diferente) fez com que a experiência do Supremo fosse resgatada. O Supremo que, em todas as culturas é a referência do significado dos valores e do sentido da vida.

Como bem sabemos, as religiões de matrizes africanas chegam não só às terras do Brasil, mas se multiplicam em todos os lugares para onde o negro escravizado foi deportado: em toda a América Latina, nos países da América Central e do Caribe, na América do Norte.

É na reunião do batuque, dos cantos, das orações que cada negro adquire, novamente, o sentimento de pertença; de pertencer a um grupo; agora, à família religiosa. A nova estrutura familiar de “santo” é um núcleo de parentesco ritual para o resgate do conhecimento; para o acolhimento; para o restabelecimento de elos.

Para os negros fundadores das terras do Brasil e de outras partes do planeta – como também para toda a humanidade que se pauta por alguma religião, alguma crença – a família é constituída e regida pelo modo de professar a crença no Supremo. Nesse sentido e por esse elo, a família religiosa supera a família consanguínea, na medida em que a família religiosa é aquela onde a criatura se encontra com o Supremo; onde reina a compreensão e a ajuda mútua, por força de uma união “escolhida”, fruto da devoção, onde a relação estabelecida é do plano da conexão com o Supremo. Assim é como é; e assim é como precisa ser!

Guiadas pelo Orixá, pelo Guia, pelo Preto-Velho, pelo Caboclo, as criaturas constituem famílias espirituais, onde as funções de pai, mãe, filho, irmão, filho mais velho, dentre outros, se reproduzem no nível religioso, alcançando o nível social quando, para atender a um filho/a, todos se reúnem e resolvem entre si, com base nos valores éticos, espirituais, filosóficos. Esse momento é oportunidade ímpar de vivenciarmos a importância da família cooperando para que possamos sobreviver às adversidades do mundo contemporâneo, tão cheio de altos e baixos!

É muito importante anotar que, para além da família espiritual, está cada um de nós. Cada um, cada uma que, ao mesmo tempo em que constituiu uma família espiritual, tem constituído igualmente uma família consanguínea. Como no provérbio iorubá, “onde quer que um homem vá, seu caráter vai com ele”, ou “onde quer que uma criatura vá; lá ela estará com tudo o que é seu”. Assim, estando em casa, com a família social e biológica, a criatura carrega sua família espiritual; estando na Casa Espiritual, onde a criatura encontra o Supremo, sua família social estará igualmente presente junto com ele. E sabemos como isso é verdade quando rogamos proteção, crescimento e luzes para nossos filhos, filhas e cônjuge.

Nossas religiões afro-brasileiras não colocam qualquer determinação sobre “pregação”, sobre convencimento de outras pessoas, sobre como o homem deve agir em relação à mulher, ou a mulher com relação ao homem, ou em relação aos filhos, filhas e amigos. Diferente das chamadas religiões “reveladas” que possuem um “livro sagrado” (com proposições, pecados e proibições), as religiões de matrizes africanas se pautam pela transmissão oral, pelos mitos e ritos que envolvem e evocam as Entidades. Esses mitos e ritos estão caracterizados nos fenômenos da natureza, onde os Orixás habitam; na realidade histórica que constituiu os Pretos Velhos; na grandeza da preservação da natureza e na superação de limites, por parte de Caboclos, Exus e Pombo-Giras; na pureza inteligente das Crianças.

As religiões de matrizes africanas nada proíbem; nada impõem! Assim, caberá a cada criatura, filho de Fé, a escolha harmonizada com o que ela construiu; com o que ela constituiu: escolha Harmonizada com a família social biológica, de sua responsabilidade e, ao mesmo tempo, escolha Harmonizada com a família espiritual, de sua devoção.

A possibilidade “eu - minha família social biológica – minha família espiritual” me acompanha em todos os momentos de minha vida; onde quer que eu esteja. Assim, eu, família social e família espiritual devemos estabelecer um diálogo de liberdade e confiança, mesmo quando minha família social biológica participa da mesma devoção junto à família espiritual, onde todos compomos a família espiritual na Casa.

Quando os componentes de uma família social biológica trilham caminhos diferentes na busca para a descoberta do Supremo, o que deve ser preservado é o próprio equilíbrio (para o equilíbrio de cada um/a), fazendo frente às responsabilidades que foram constituídas e assumidas. Nessa situação, “eu” sou o elo do diálogo da família a que estou unido/a pelo amor e da família que tenho como devoção, onde uma e outra vão buscar o que for de melhor para o “nosso” equilíbrio, para o equilíbrio de todos, amparados na liberdade e na confiança.


*Ana Maria Felippe é carioca, graduada em Filosofia (UERJ); pós-graduada em Filosofia da Ciência (UFRJ), Coordenadora de Memória Lélia Gonzalez, atual presidente da SEAF – Sociedade de Estudos e Atividades Filosóficos. Contato: anafelippe@leliagonzalez.org.br

(**) na ilha de Gorée.
(***) em Ouidah, na atual República do Benin. Plantada pelo rei Agadja, em 1727.

Imagem: Instalação "Árvore do Esquecimento" no Museu Afro Brasil (São Paulo), desde 09/07/2008 em domínio público, em Wikimedia Commons. Verbete Museu Afro Brasil, em http://pt.wikipedia.org

Autor: Ana Maria Felippe

Governo de SP é condenado por racismo em sala de aula



Um aluno de sete anos teve problemas depois de uma atividade aplicada pela professora em que o vilão da história era preto

Jorge Américo

O governo de São Paulo foi condenado pela prática de racismo cometido por uma professora da rede estadual. O caso ocorreu no ano de 2002 na escola Francisco de Assis, no bairro do Ipiranga em São Paulo (SP). Na ocasião, um estudante negro, de sete anos de idade, teve problemas psicológicos e precisou ser transferido de escola. Conforme a sentença da 5ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo, a família do estudante receberá uma indenização por danos morais no valor de R$ 20,4 mil.


O estudante, hoje com quinze anos, teve fobia ao ambiente, problemas de relacionamento e queda na produtividade escolar. O motivo foi a realização de uma atividade baseada no texto “Uma família colorida”. A narrativa contava a história na qual a mãe era vermelha, o pai azul e os filhos cor-de-rosa. O vilão da história era um homem preto, que aparecia para roubar as crianças.


O juiz responsável pela sentença considerou que a atividade aplicada pela professora é incompatível com o princípio constitucional de repúdio ao racismo. O educador Adriano Rodrigues considera difícil o combate a essa prática, pois os professores não recebem formação para lidar com a diversidade.


“Se nós não temos uma política pública de combate ao racismo, é quase natural que isso se espalhe na sala de aula. O professor não vai ser preparado para o combate ao racismo, nem na faculdade, nem no seu local de trabalho e ele vai reproduzir as situações racistas em sala de aula. A ação pedagógica poderia contribuir, mas acaba servindo de instrumento de reprodução das relações sociais que aí estão e, principalmente, as relações raciais.”


O nome da professora não foi revelado, embora o processo não corra em segredo de Justiça. A Procuradoria Geral do Estado ainda não informou se irá recorrer da decisão.