As Religiões de Matrizes Africanas e a Família

Autor: Ana Maria Felippe











As Religiões de Matrizes Africanas e a Família

Bem sabemos sobre a vinda do povo negro para as terras do Brasil, a partir de um ponto do extremo oeste no continente africano, em Dacar, capital do Senegal. Foi também a partir da pequena ilha de Gorée que cerca de 15 milhões de homens, mulheres e crianças foram embarcados para as diversas nações escravagistas, cabendo ao Brasil o número aproximado de 1/3 desse total.

A pequena ilha servia como porto comercial para os portugueses, onde o “produto” era alocado em construções especialmente feitas para armazenar, pesar, vender e deportar os negros para os países distantes. Como “mercadoria”, “peça”, muitos morriam ou ficavam tão doentes que não serviam mais para serem comercializados e eram (simplesmente) jogados ao mar. Todos os números são de estimativas e também o número de mortos (na ilha ou nas viagens): em torno de 6 milhões, para mais.

Homens, mulheres e crianças muitas vezes formavam famílias inteiras que tiveram o trajeto até Gorée como última convivência. Negros eram “peças”; por isso nunca foram tratados como “família”, nem mesmo quando, depois, no cativeiro, nas senzalas, se aproximavam por laços de afeto. São inúmeros os relatos (históricos) sobre o estupro de mulheres negras; sobre o uso de homens negros como reprodutores de “escravos”. A tão falada “miscigenação” que temos no País se deve, originalmente, aos filhos “bastardos” dos “senhores” com as mulheres negras escravizadas.

Passando pela “porta do não retorno” (**) ou girando em torno da “árvore do esquecimento” (***), para que não guardasse lembrança de sua terra e de sua identidade cultural, cada criatura era (simplesmente) filho de um par de seres humanos que por sua vez eram igualmente filhos de outros pares, formando a linha da ancestralidade de cada um, de cada uma.

Aqui chegando – despojados de tudo – o que aproximava cada negro, cada negra, era a história comum, inclusive a do despojamento. A solidão de “eu comigo mesmo”, sem pai, mãe, esposa, marido, filho, filha (porque cada um/a foi vendido para um lugar diferente) fez com que a experiência do Supremo fosse resgatada. O Supremo que, em todas as culturas é a referência do significado dos valores e do sentido da vida.

Como bem sabemos, as religiões de matrizes africanas chegam não só às terras do Brasil, mas se multiplicam em todos os lugares para onde o negro escravizado foi deportado: em toda a América Latina, nos países da América Central e do Caribe, na América do Norte.

É na reunião do batuque, dos cantos, das orações que cada negro adquire, novamente, o sentimento de pertença; de pertencer a um grupo; agora, à família religiosa. A nova estrutura familiar de “santo” é um núcleo de parentesco ritual para o resgate do conhecimento; para o acolhimento; para o restabelecimento de elos.

Para os negros fundadores das terras do Brasil e de outras partes do planeta – como também para toda a humanidade que se pauta por alguma religião, alguma crença – a família é constituída e regida pelo modo de professar a crença no Supremo. Nesse sentido e por esse elo, a família religiosa supera a família consanguínea, na medida em que a família religiosa é aquela onde a criatura se encontra com o Supremo; onde reina a compreensão e a ajuda mútua, por força de uma união “escolhida”, fruto da devoção, onde a relação estabelecida é do plano da conexão com o Supremo. Assim é como é; e assim é como precisa ser!

Guiadas pelo Orixá, pelo Guia, pelo Preto-Velho, pelo Caboclo, as criaturas constituem famílias espirituais, onde as funções de pai, mãe, filho, irmão, filho mais velho, dentre outros, se reproduzem no nível religioso, alcançando o nível social quando, para atender a um filho/a, todos se reúnem e resolvem entre si, com base nos valores éticos, espirituais, filosóficos. Esse momento é oportunidade ímpar de vivenciarmos a importância da família cooperando para que possamos sobreviver às adversidades do mundo contemporâneo, tão cheio de altos e baixos!

É muito importante anotar que, para além da família espiritual, está cada um de nós. Cada um, cada uma que, ao mesmo tempo em que constituiu uma família espiritual, tem constituído igualmente uma família consanguínea. Como no provérbio iorubá, “onde quer que um homem vá, seu caráter vai com ele”, ou “onde quer que uma criatura vá; lá ela estará com tudo o que é seu”. Assim, estando em casa, com a família social e biológica, a criatura carrega sua família espiritual; estando na Casa Espiritual, onde a criatura encontra o Supremo, sua família social estará igualmente presente junto com ele. E sabemos como isso é verdade quando rogamos proteção, crescimento e luzes para nossos filhos, filhas e cônjuge.

Nossas religiões afro-brasileiras não colocam qualquer determinação sobre “pregação”, sobre convencimento de outras pessoas, sobre como o homem deve agir em relação à mulher, ou a mulher com relação ao homem, ou em relação aos filhos, filhas e amigos. Diferente das chamadas religiões “reveladas” que possuem um “livro sagrado” (com proposições, pecados e proibições), as religiões de matrizes africanas se pautam pela transmissão oral, pelos mitos e ritos que envolvem e evocam as Entidades. Esses mitos e ritos estão caracterizados nos fenômenos da natureza, onde os Orixás habitam; na realidade histórica que constituiu os Pretos Velhos; na grandeza da preservação da natureza e na superação de limites, por parte de Caboclos, Exus e Pombo-Giras; na pureza inteligente das Crianças.

As religiões de matrizes africanas nada proíbem; nada impõem! Assim, caberá a cada criatura, filho de Fé, a escolha harmonizada com o que ela construiu; com o que ela constituiu: escolha Harmonizada com a família social biológica, de sua responsabilidade e, ao mesmo tempo, escolha Harmonizada com a família espiritual, de sua devoção.

A possibilidade “eu - minha família social biológica – minha família espiritual” me acompanha em todos os momentos de minha vida; onde quer que eu esteja. Assim, eu, família social e família espiritual devemos estabelecer um diálogo de liberdade e confiança, mesmo quando minha família social biológica participa da mesma devoção junto à família espiritual, onde todos compomos a família espiritual na Casa.

Quando os componentes de uma família social biológica trilham caminhos diferentes na busca para a descoberta do Supremo, o que deve ser preservado é o próprio equilíbrio (para o equilíbrio de cada um/a), fazendo frente às responsabilidades que foram constituídas e assumidas. Nessa situação, “eu” sou o elo do diálogo da família a que estou unido/a pelo amor e da família que tenho como devoção, onde uma e outra vão buscar o que for de melhor para o “nosso” equilíbrio, para o equilíbrio de todos, amparados na liberdade e na confiança.


*Ana Maria Felippe é carioca, graduada em Filosofia (UERJ); pós-graduada em Filosofia da Ciência (UFRJ), Coordenadora de Memória Lélia Gonzalez, atual presidente da SEAF – Sociedade de Estudos e Atividades Filosóficos. Contato: anafelippe@leliagonzalez.org.br

(**) na ilha de Gorée.
(***) em Ouidah, na atual República do Benin. Plantada pelo rei Agadja, em 1727.

Imagem: Instalação "Árvore do Esquecimento" no Museu Afro Brasil (São Paulo), desde 09/07/2008 em domínio público, em Wikimedia Commons. Verbete Museu Afro Brasil, em http://pt.wikipedia.org

Autor: Ana Maria Felippe

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