Aos 25 anos, Emicida inaugura o rap brasileiro com autocrítica


Rapper paulista lança sua segunda mixtape, "Emicídio", e vai contra a corrente do discurso negativo do rap

Pedro Alexandre Sanches, repórter especial do iG Cultura

Foto: Augusto Gomes

Emicida em seu estúdio na Zona Norte de São Paulo

O rap brasileiro encara suas próprias contradições e protagoniza uma nova movimentação, desta vez no coração do bairro de Santana, na zona norte de São Paulo. Ali funciona, num imóvel alugado, o Laboratório Fantasma, mistura de estúdio, gravadora e produtora do rapper paulistano Leandro Roque de Oliveira, de 25 anos, que tem conquistado notoriedade crescente sob a alcunha de Emicida.

Nestes dias, ele e seu irmão mais novo, Evandro “Fióti”, consomem grande parte do tempo no Laboratório produzindo artesanalmente centenas de cópias do disco "Emicídio". Esse novo trabalho significa, nas palavras de Leandro, “a morte e o renascimento do Emicida, com outra visão”.

Nascido no Jardim Fontales, na periferia norte da capital paulista, Emicida, “matador de MCs”, é um exímio improvisador, ligado por laços indiretos à histórica tradição dos repentistas nordestinos. Adquiriu notoriedade nas chamadas batalhas de freestyle, em que os MCs (mestres de cerimônia) do hip-hop se enfrentam em desafios de rimas formuladas na hora.

Em 2009, o também caseiro "Pra Quem Já Mordeu um Cachorro por Comida, Até Que Eu Cheguei Longe…" atravessou obstáculos, alastrou-se da periferia para o centro, disseminou o incômodo nome “Emicida” na mídia, ajudou o jovem artista a ganhar prêmios e se apresentar Brasil afora.

Foto: Augusto Gomes

Rapper acaba de lançar sua segunda mixtape

Com 18 faixas, "Emicídio" é sua segunda mixtape, como ele denomina – Leandro considera que não produziu, ainda, seu álbum de estreia. “Os ‘beatmakers’ me mandam as batidas e em cima eu faço as rimas. Um álbum é um trabalho mais complexo que isso”, explica. “Tanto os ‘beatmakers’ como eu sofremos uma influência muito forte da América do Norte, e isso começa a me parecer repetitivo. No meu primeiro álbum quero dar continuidade à música brasileira. Musicalmente, a gente pode dar muitos passos ainda”, ele se autoanalisa.

A segunda mixtape prossegue a saga de Emicida, pela via da desconstrução, mais ou menos inédita no rap nacional. O artista discorda, acima de tudo, do predomínio do discurso negativo no nosso hip-hop. “Não dá para eu ir tocar pra criançada com discurso de sofrimento e ser tão sincero quanto fui quando chorava. Não é mais a minha realidade. Os CDs de rap vendem, os shows dão dinheiro, e isso não está sendo retratado. Fica o mesmo discurso de 20 anos atrás, que vicia os moleques numa depressão, faz acreditar que o mundo não é feito pra gente.”

Não é que o protesto se dilua na esteira do sucesso e do assédio midiático, ao contrário. A vida de privação numa favela não é mais o cotidiano de Leandro, mas ainda há muito a dizer em "Emicídio". O CD fala muito sobre racismo e discriminação, enfrenta o tabu de inserir raps de amor, tece considerações sobre como às vezes é difícil estar num palco, identifica-se com o dia-a-dia das prostitutas da rua Augusta.

Em "Cê Lá Faz Ideia", por exemplo, Emicida narra os constrangimentos que um cidadão tem de enfrentar cotidianamente por ser negro. “Os pretos na sociedade são vistos como se fossem ratos. Tem vários ratos famosos, Mickey Mouse, Jerry do Tom & Jerry, mas quem vê um rato na rua só pensa em matar e sair de perto. Ouvem Jimi Hendrix em casa, mas quando encontram um preto na rua só querem atravessar pro outro lado”, afirma. “Me sinto muito mal de ir à avenida Faria Lima, ter de entrar no banco e o segurança perguntar o que eu fui fazer lá. Eu já vou logo causando: ‘Não vou roubar essa porra, não’.”

Põe-se a narrar um conflito que teve com um taxista na rodoviária de São Paulo: “Minha mina deu uma nota de R$ 50 para pagar, ele achou que era falsa, não queria aceitar. Me chamou de macaco. Eu causei uma dor de cabeça pra ele, mano. Fomos pra delegacia, mas a polícia é foda. Quer tudo, menos um boletim de ocorrência de racismo. Foi registrado como injúria, não como racismo. O velho se ajoelhava pra mim, chorava, dizia: ‘Eu tenho um sobrinho mais escuro de você’. Podia ser avô de Zumbi dos Palmares, não faz diferença. Perdi o show daquele dia, mas fiz o B.O. ‘Hoje eu aprendi uma lição’, ele disse no final. Se tiver chance, eu faço isso”.

Episódios como esses, em que Leandro se impõe sobre o racismo, são cruciais para a autoafirmação do cidadão, e também para a autoconfiança do artista. “Nós não falamos o que as pessoas querem ouvir. Esteticamente, a nossa aparência não é aquela que o Brasil compra. A gente tem que ser muito foda e confiar muito no nosso taco. Se tem que fazer dez vezes mais para alcançar alguma coisa, burro é você se fizer só oito”.

O rapper Emicida no sofá de seu estúdio em Santana, Zona Norte de São Paulo
Foto: Augusto Gomes

O rapper Emicida no sofá de seu estúdio em Santana, Zona Norte de São Paulo

Jacira, a mãe de Leandro e Evandro, chega ao Laboratório Fantasma e se integra à entrevista. É dela o painel meticulosamente construído com retalhos, sementes, miçangas, búzios, conchas, fitas, madeira e sucata que está pregado à porta do estúdio, para dar proteção aos filhos. O estandarte retrata os orixás do candomblé, decifra um alfabeto africano e transcreve a letra de um samba de Clara Nunes.

Viúva e em dificuldades financeiras antes de se casar novamente (com um agente funerário que ajudou a criar os meninos), ela levava os filhos pequenos ao culto evangélico, mais para alimentá-los do que pela religião em si, como Emicida lembra dando risada. “Fui empregada doméstica, vivia morando na casa dos outros, mal empregada. Armei barraca na feira, tive 500 profissões, ou mais. Aliás, não é profissão, é função”, conta. “Depois voltei para a escola, concluí o fundamental.”


Ela lembra que Leandro, quando criança, cantava repetidas vezes o verso bossanovista “o barquinho vai, a tardinha cai”. E se mostra tão sensível quanto o filho às questões raciais: “Quando mudei para cá, com cinco anos, esta região da Serra da Cantareira tinha muito japonês. Minha referência eram festas japonesas, e as filhas dos portugueses eram nossas professoras, que foram marcando em mim a ideia de que a nossa cor não é boa. Até três anos atrás eu estava cega, não sabia que sou afrodescendente, negra e brasileira. Se soubesse antes ninguém ia poder comigo”.

Jacira fala criticamente de seus heróis de infância nas histórias em quadrinhos, Tarzan e Fantasma. “Estudando, vi que Tarzan é o algoz, o herói branco que adentra a África e se comunica com os animais. Acabaram com a minha fantasia”, ri. E relata as aflições que sentia por ter um filho rapper. “Tinha medo de a música não dar certo, pensava: ‘Esse menino é preguiçoso demais, não carrega tijolo’. Achava que ele tinha que ser um bom servente de pedreiro”, admite. “Ela não me incentivava, mas um dia chegou em casa com um teclado”, lembra o filho.

O hip-hop de Emicida é incomum também porque ele aprecia desafiar a misoginia comum em tantos raps do passado. “Muitos ainda chamam as minas de vadias. Os rappers criticam o funk carioca, que chama as minas de cachorras, mas fazem a mesma coisa.” A lírica faixa "Rua Augusta" é o melhor exemplo dessa vertente em Emicídio: “Conheço várias minas que são putas, sei os bastidores da coisa. Passo ali e vejo não como quem come a puta, mas penso nos filhos que ela tem para criar, se está com frio. Ninguém decide ser prostituta com 8 anos de idade”.

Casado e pai de Estela, hoje com sete meses, Emicida avança no tema dos preconceitos e toca em outro tema quase sempre evitado pelo rap (e pela sociedade), a homofobia: “Pelos estereótipos, puta dá, veado é promíscuo e preto rouba. Se é alguém próximo, você tenta cuidar, mas se não… Tenho um primo gay, a mãe dele fala que é deficiente mental, dá calmante, trata. Ele é normal, todo mundo vê que é gay só a mãe tem receio de assumir isso para o mundo”.

Mãe e filho divergem sutilmente quando o assunto é eleição. “Eu não gosto do Serra antes de qualquer coisa. Não tenho afeto pelo PSDB”, afirma Emicida, colocando sentimento na política. “Não achei maneiro a TV Cultura acabar com o Manos & Minas, porque o novo diretor (João Sayad) não conhecia o programa. Não se brinca com essas coisas. Foi o que repercutiu de modo mais negativo na campanha do Serra para mim”.

Diz Jacira: “O PSDB vem de longa data fechando instituições que lidam com a cultura, circos-escola, centros de juventude, sem dar a menor satisfação. Eu fui petista desde que me vi consciente, trabalhei próxima de Marta e Lula. Mas a gota d’água para mim foi quando Lula ficou contra o fim da CPMF. Não voto em ninguém, nem vou lá.”

Leandro diz que pretende votar, mas ainda está indeciso. “Me identifico talvez com a Marina. E gosto muito do Lula, por isso acabo me identificando com a Dilma também. Lula é uma ofensa para muita gente, e eu me considero também uma ofensa para muita gente”, compara. Quanto ao próprio Emicida, é difícil crer que alguém possa se ofender com o modo maduro e autocrítico como ele e a nova geração do rap brasileiro têm lutado por se expressar.


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