Pintura inédita de spray com efeitos tridimensionais encanta fiéis. Ex-pichador, artista se mira em Portinari.
Fiéis da Paróquia dos Sagrados Corações, mais conhecida como Igreja do Padre Eustáquio, tiveram uma surpresa na celebração da Páscoa, no sábado de aleluia. No momento em que se abriram as cortinas do altar, em meio à fumaça e aos refletores, surgiu a imagem de Jesus Cristo ressuscitado dentro de um céu azul celeste, realçado por efeito tridimensional criado pelo jogo de luzes e tintas. Segundo paroquianos, muitos não conseguiram segurar a emoção e chegaram às lágrimas diante da beleza da nova pintura do altar-mor.
Nem todos, porém, perceberam que se tratava de pintura em grafite ou arte de rua, de grandes proporções (10m de largura por 12m de altura), maior do que a maioria das figuras estampadas em muros e viadutos da capital. “Não há em BH nenhuma igreja com um Jesus tão glorioso no alto do céu. É um verdadeiro paraíso. Eu poderia ficar o dia inteiro contemplando esta pintura”, afirma o comerciário aposentado Omar Pereira Rosa, de 64 anos, frequentador diário das missas na Igreja do Padre Eustáquio, nascido e criado no bairro.
Ao ser informado que a pintura era de autoria de um grafiteiro, Omar simplesmente se recusa a acreditar: “Não é grafiteiro não. É preciso ser uma pessoa especializada para fazer esse tipo de trabalho. Grafite é uma coisa rústica, popular. O padre jamais deixaria fazer um grafite em um altar sagrado.”
O grafiteiro Rafael Martins da Costa, de 28, gastou 45 tubos de spray e sete dias para fazer o trabalho. “Fiz este altar não só para a igreja, mas também para honrar Deus por Ele ter aberto para mim as portas da sua casa. Só assim a sociedade vai passar a me ver não com o olhar marginal, mas com o olhar artístico. Antes disso, eu era só um grafiteiro e agora posso me intitular artista”, afirmou o designer gráfico.
Tradição
A iniciativa, inédita, de contratação de um grafiteiro para pintar o altar de uma das igrejas mais importantes de Belo Horizonte, partiu do próprio padre Nelson Severino de Souza, de 50, há um ano à frente da paróquia, desde que chegou de Tóquio, no Japão, onde esteve em missão por três anos. “No Japão, as poucas igrejas católicas são extremamente tradicionais, porque a grande maioria da população é adepta do budismo e taoísmo. Os católicos não ultrapassam 1,2%”, explica o padre.
Mais difícil do que executar o trabalho foi derrubar preconceitos que existiam tanto do padre quanto do grafiteiro. De início, a pintura seria feita por uma paroquiana, mas, segundo o padre, ela se mostrou insegura em cobrir toda a superfície com pintura a óleo. Na loja Nacional Tintas, patrocinadora do grafiteiro, padre Nelson recebeu a indicação de um jovem talentoso capaz de fazer o trabalho sem titubear. Inseguro, o padre caprichou nas instruções: “Disse a ele que queria a nuvem em forma de nuvem e o céu com jeito de céu. Penso que ele conseguiu dar exatamente o sentido que a gente queria do Cristo que se aproxima do povo. Não sei se existe a expressão grafite artístico, mas penso que Rafael conseguiu fazer uma obra de arte”, elogia. Até os últimos minutos, padre Nelson pensou que seria feita uma pintura tradicional. “Só me dei conta de que se tratava de um grafite quando ele me pediu para comprar os sprays. Graças a Deus, deu certo.”
Rafael Costa custou a acreditar que estava recebendo o convite de uma igreja católica. “Nem eu nem nenhum grafiteiro espera algum dia no mundo receber um convite desses. O grafiteiro é um povo marginalizado. Ter a aceitação de um intelectual como o padre Nelson, que em princípio não estava aberto à arte contemporânea e popular, é uma vitória”, afirma. Rafael sentiu-se tão tocado pela experiência que decidiu abandonar a assinatura de Nev, alcunha que usava nas ruas como a abreviatura de never (nunca, em inglês). Assumiu o nome de batismo, por inteiro. Nem se lembrou que Rafael foi um dos três maiores nomes do Renascimento, ao lado de Michelângelo e Leonardo da Vinci. “É bem verdade que os maiores artistas do mundo tiveram seus trabalhos relacionados à Igreja”, recordou o jovem, sem modéstia. Rafael Costa faz o gênero free style, que no grafite significa livre, sem amarras.
Caligrafia das ruas
O Dicionário Houaiss define grafite como rabisco ou desenho com marcas do autor feito com aerosol de tinta nas paredes, muros e monumentos de uma cidade. Na enciclopédia aberta Wikipédia, da internet, grafite (que vem do italiano grafito) é nome dado à caligrafada ou desenho pintado ou gravado sobre suporte não previsto para esta finalidade. Por muito tempo visto como assunto irrelevante ou mera contravenção, o grafite já é considerado forma de expressão das artes visuais, mais especificamente da street art ou arte urbana, em que o artista aproveita os espaços públicos, criando linguagem para interferir na cidade. Mas há quem não concorde, comparando grafite com a pichação.
Passado de constrangimento
Mais impressionado com o convite da igreja, Rafael recebeu como um sinal divino a missão de retocar com spray o lema de Padre Eustáquio: “Saúde e paz”. “Tem a ver com o momento que estou atravessando na vida. Passei quatro dias pensando na pintura e testando as cores no computador. Depois, executei o trabalho em um dia e meio. Assim que terminei, recebi a ligação do meu médico me dando alta. Foi como se recebesse um sinal da existência de Deus, independentemente de credo”, revelou, emocionado, Rafael, criado conforme a religião da avó, evangélica. Por enquanto, não frequenta missas nem cultos.
Em outubro, o grafiteiro sofreu um acidente de moto na BR-151, na Bahia, onde morava com a mulher, a vendedora Katiane. Segundo ele, ao ser ultrapassado por um caminhão, o deslocamento de ar jogou a moto longe e arremessou Rafael no asfalto. Ele ficou um mês em coma e três internado. Perdeu parte do crânio, mas saiu do acidente, por milagre, sem sequelas no cérebro e no corpo. Permanece, porém, com um afundamento no lado esquerdo da cabeça, onde parte do osso foi retirada.
Proteção
Ele aguarda na fila do SUS por uma cranioplastia para recompor as feições originais. “Já me acostumei com todo mundo me olhando, mas fico muito desprotegido, como se tivesse a moleira de um bebê. Já me sinto agradecido, porque nasci de novo”, afirma Rafael, que voltou a morar provisoriamente com os pais em BH, até se recuperar totalmente. “O trabalho para a igreja me salvou, porque me avisou que estava bem e me ajudou financeiramente. Estava precisando das duas coisas”, completa.
Além de participar da Cow Parade, em 2006, devido à sua habilidade com aerografia, entre outros trabalhos, ele fez uma releitura da obra Menino morto, do pintor brasileiro Cândido Portinari. “O muro da casa estava marginalizado com pichação e desenhei por cima uma mãe carregando o filho no colo, no sertão. Quero divulgar Portinari, pois as pessoas da minha geração só sabem que foi ele quem pintou a igrejinha da Pampulha”, afirma Rafael, que se diz constrangido com o próprio passado como pichador, que evoluiu para o grafite, como chance de obter reconhecimento e recursos financeiros. O trabalho inspirado em Portinari ainda está visível no cruzamento das ruas João Correia e Eduardo Lopes, no Bairro Santo André.
Por:Sandra Kiefer
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