As outras armas de Flávio Renegado

Não quero ser o que esperam que eu seja. Só quero ser eu.

Sabe aquele rapper mal-encarado que só fala em crime? Esquece, esse não é Flávio Renegado. Esse tem sorriso fácil. E foi sorrindo que chegou e andou pelas ruas de Heliópolis, a maior favela de São Paulo. “Aprendi que às vezes um sorriso atinge mais que uma agressão”, explica.
O sorriso só sumia do rosto quando passava por um carro com porta-malas aberto, tocando funk. E lamentava que o rap tenha perdido espaço para o ritmo carioca em São Paulo. Mas logo voltava ao bom humor e a matar as saudades de casa, reparando as semelhanças entre Heliópolis e Vera Cruz, na região metropolitana de Belo Horizonte. “Viver na favela é complicado. Não tem privacidade, você ouve tudo que está acontecendo no vizinho. E é esse barulho, esse monte de gente, o tempo todo.” E abre de novo o sorriso: “Favela é igual mulher. Se você a tratar bem, ela te trata bem.” A felicidade se completa ao dar a primeira dentada no sanduíche mais famoso do local, o Mac Favela. E com muita mostarda. Não tem medo da acidez. Depois da nutrição, um pulo no Cine Favela, na associação cultural. Domingo passado não teve sessão, foi ensaio do grupo de teatro. Próximo pico: Samba da Laje, na Vila Santa Catarina, também na zona sul.

Renegado faz questão de ficar próximo aos músicos da roda. Observa, diverte-se com as rimas de improviso. Identifica-se com a malandragem. Os bambas o reconhecem, cumprimentam-se. Conversa com Chapinha, compositor do Samba da Vela e de sucessos do Quinteto em Branco e Preto. Cai a noite e a chuva, que o céu prometia, não cai. Ele grava um vídeo com o celular para abastecer as redes sociais.
Aos 28 anos, o mineiro do Alto Vera Cruz, comunidade com cerca de 40 mil moradores da periferia de Belo Horizonte, tem se divido entre Minas Gerais e SP para investir na carreira e no lançamento do segundo CD, Minha Tribo É o Mundo. O álbum tem produção de Plínio Profeta, bases do DJ Spider e participações especiais de Edu Krieger e Thiago Delegado nos violões, Donatinho na programação e Marcos Suzano na percussão. E patrocínio do programa Natura Musical nos lançamentos em São Paulo, Rio, Belo Horizonte e interior de Minas. O trabalho também será lançado em vinil em Londres e Nova York, sem patrocínio. “Falta incentivo para o artista brasileiro ser embaixador da nossa música lá fora.”

O CD, na opinião do próprio, soa mais pop que o primeiro. O resultado se deve, em grande parte, à mudança de produtor musical, que agora é Daniel Ganjaman. Do Oiapoque a Nova York traz reggae, samba, cantiga de orixá e até uma salsa nas bases das rimas de Renegado. A diversidade rítmica, entretanto, não chega às letras, que versam sobre um único tema: o próprio autor. Narcisismo? Não, verdade. Autobiografia, talvez. “É o disco de um cara que queria conhecer o mundo. Em Minha Tribo é o mundo, quis fazer uma música mais companheira das pessoas.” Com o CD de estreia – que tem participações especiais de Aline Calixto, Julia Ribas, Max BO, Funk Buia, Cubanito e Alayo (ambos cubanos) e Meninas de Sinhá – ele rodou o País e ainda viajou para Venezuela, Cuba, França, Espanha, Inglaterra, Holanda e Austrália. Nada mal para um artista independente, que banca a própria produção. E depois corre atrás com shows, palestras e um programa de rádio.
Flávio conta que tudo começou aos 11 anos, na escola, quando viu uma apresentação de um grupo de capoeira. Aprendeu a tocar berimbau e pandeiro e fortaleceu a identidade racial. Com o dinheiro da rescisão do primeiro emprego, de office-boy, aos 18 anos, comprou um violão e hoje compõe seus raps com a ajuda do instrumento. A música de Flávio Renegado não tem um público específico. “Sempre quis fazer uma música sem fronteiras. Se ela atinge preto, branco, pobre, rico, tô feliz.” Até a mãe, dona Regina, virou fã. “Antes, não gostava muito, não. Hoje, ela acha da hora.” E já pensa no próximo CD. “Do primeiro pro segundo, quis mudar tudo. Ninguém imaginou que faria uma coisa mais pop. O próximo vou produzir sozinho.” Mas vai ser de rap? Ri: “Boa pergunta. Não sei. Não quero ser o que esperam que eu seja. Só quero ser eu.”

Por:CINTHIA GOMES – O Estado de S.Paulo
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