Filhos de Cam, filhos do Cão




Escrito por Mário Maestri

Marco Feliciano, do PSC paulista, propôs em sua página no Twitter que os africanos descenderiam de "ancestral amaldiçoado por Noé", conhecendo por isso a África Negra a "maldição do paganismo, ocultismo, doenças", como a aids.

A sina terrível que pesaria sobre os afro-descendentes nasceria do primeiro ato de "homossexualismo da história", praticado por um filho de Noé. Para o deputado federal, pastor e empresário, tais sandices não seriam racismo ou homofobia, mas teologia pura. Suas afirmações desvairadas constituem apoio às declarações do deputado Jair Bolsonaro, que motivaram repúdio nacional.

Na Antiguidade, a escravidão justificou-se, sobretudo, pela lei do mais forte. Mais tarde, Aristóteles inovaria propondo a inferioridade do "escravo" e servidão natural. Na retomada da instituição terrível, quando da luta pela Ibéria, cristãos e muçulmanos escravizaram-se mutuamente, por negarem, uns e outros, a verdadeira fé!

A rejeição da palavra divina mostrou-se justificativa perneta quando os portugueses passaram a levar para Portugal, em 1444, os primeiros cativos negro-africanos. Eles não eram infiéis, pois não negavam a doutrina reta, que desconheciam! No esforço português de racionalização da escravidão negra, muitas justificativas foram abandonadas por serem pouco funcionais. Entre elas, a maldição que pesaria sobre os negro-africanos, por descenderem de Cam. Uma história velha como o Dilúvio!

Conta a legenda bíblica que, após pousar a arca em terra seca, Noé e seus três filhos, Sam, Cam e Jafet, ocuparam o mundo purificado. Ao frutificar a terra, o patriarca cultivou as vinhas e descobriu o vinho. Ao beber o inebriante líquido, protagonizou o primeiro pileque da história, despindo-se "completamente dentro de sua tenda".

Nesse ponto, divergem as versões bíblicas. As mais amenas, propõem que Cam viu o progenitor nu e contou aos irmãos. As mais infamantes, que fez muito mais com o progenitor desprotegido! Ao recuperar-se da esbórnia, Noé amaldiçoara a Canaã, filho de Cam, que nada fizera, mas responsável pelo pecado do pai, na visão da época. Eles e seus descendentes seriam doravante "escravos" dos tios e de seus descendentes.

Em meados do século 15, na célebre Crónica de Guiné, Eanes de Zurara registrou as primeiras capturas de negro-africanos nas costas da África e as tentativas moral-religiosas de justificá-las. O que não foi fácil, os africanos nada haviam feito contra os europeus, não motivando, portanto, sequer uma "guerra justa".

O cronista real refere-se à predestinação bíblica ao cativeiro. Acreditava que os "negros" seriam já escravos dos "mouros", "por causa da maldição que depois do dilúvio lançou Noé sobre seu filho Cam, pela qual o maldisse, que sua geração fosse sujeita (escrava) a todas as outras do mundo".

Sem muito convencimento, lembrava partilharem daquela interpretação o arcebispo dom Rodrigo, de Toledo, "Sosepho, no livro das Antiguidades dos Judeus", "Gualtero" e "outros autores que falaram das gerações de Noé depois do saimento da arca". A maldição justificaria o tratamento como cães dos descendentes de Cam.

A explicação bíblica da escravidão negro-africana foi abandonada pelos primeiros ideólogos portugueses e europeus, por não haver no livro sagrado qualquer ligação entre os filhos de Cam e os negro-africanos.

Ao contrário, a ciência registra que as formas primordiais da espécie humana são velhas de 4 milhões ou mais de anos – não tendo a história da humanidade os 6 mil e pico anos sugeridos pela Bíblia. Propõe também a origem unitária do gênero humano, tendo como berço o Continente Negro. Para horror dos racistas orgulhosos e envergonhados, somos todos irmãos e africanos!

Mario Maestri é historiador e professor de história da UPF.

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