Por que não somos racistas

DE SÃO PAULO

No ensaio a seguir, o jornalista Carlos Alberto Dória mostra como o higienismo do começo do séc. 20 no Brasil e os avanços nos estudos sobre genética e hereditariedade invalidaram as teorias raciais no país. Tudo convergiu para mostrar que o ambiente é que rebaixava os negros e que cabia ao Estado atacar as doenças e a fome para garantir a plena adaptação do homem ao ambiente:

"Entre os brasileiros de hoje, o racismo mais se assemelha a um delito de opinião do que propriamente à tipificação de situações de opressão baseada na cor. Esta forma tênue de esconder contradições mostra o seu viés elitista. Um antidiscurso sobre o negro começa pela etiqueta, na qual figuram como "pessoas de cor".

Entre o povão não é assim. No ano passado, sem muito alarde, o IBGE anunciou que a população negra e "parda" (sic) já era superior a 50% da população total do país. Considerando que o dado é autodeclaratório, isso quer dizer que a maioria da população é ou quer ser negra. Não é pouca coisa, pois enterra a tese de intelectuais sobre o "branqueamento" progressivo da nação, via miscigenação.

Em comparação com os norteamericanos, nem a elite se sente racista, apesar de que, quando a polícia atira, do outro lado caem mortos mais jovens negros do que brancos. Paradoxalmente, mais foi feito pelos negros nos EUA, já no século 19, por meio das emendas à Constituição de número 13 (abolição), 14 (proteção dos direitos civis dos negros) e 15 do que entre nós --visto que a abolição não foi além de uma espécie de "emenda 13", deixando o negro à própria sorte.

Liberais como Joaquim Nabuco se preocupavam com a questão: o que "faremos" dos negros após a abolição? Suas ideias tacanhas sobre reforma agrária eram um ensaio de resposta à tragédia anunciada. Desigualdades de educação e fortuna se perpetuaram em desigualdades de oportunidades, salários etc.

Assim, as discussões sobre raças que ocuparam o último quartel do século 19 e as duas primeiras décadas do 20 visavam, basicamente, esclarecer as elites, pelo recurso à
pseudociência, sobre quais as chances que teríamos como nação, tendo levado tão longe o fardo da escravidão.

DARWINISMO

Por várias razões, o autor que liderou as discussões sobre raça no mundo ocidental de fins do século 19 foi o alemão Ernst Haeckel (1934-1919), um divulgador sui generis do evolucionismo em geral e do darwinismo em particular. Ele, na Alemanha, e Herbert Spencer, na Inglaterra, ocuparam o vazio que se formou depois da morte de Darwin
(1882), período que os historiadores chamam de "eclipse do darwinismo" e que se estende até 1910, quando se dá a popularização da genética de Mendel.

Em parte, o "eclipse do darwinismo" buscou responder às questões que Darwin não resolvera, como a hereditariedade, revisitando teses antigas de Lamarck e conferindo papel primordial à adaptação. Para essa teoria, chamada "neolamarckismo", as espécies ou raças se desenvolvem reagindo ao meio num processo bem mais rápido do que aquele que Darwin havia pensado. Haeckel, em particular, acreditava que umas se desenvolviam mais do que outras e criou uma concepção hierárquica do mundo vivo, inclusive para a espécie humana e suas várias "raças".

NOVA NAÇÃO

Nos moldes do "neolamarckismo" ou "haeckelianismo" lido pelos brasileiros, os negros e mestiços logo poderiam se adaptar ao meio brasileiro, constituindo, ao cabo de certo tempo, um
tipo humano "melhorado" no qual se apoiaria a nova nação. Ao menos esse era o entendimento de Silvio Romero, Euclides da Cunha e tantos outros intelectuais cujas divergências entre si giravam em torno da ideia combinatória de caracteres brancos, negros e índios.

Os haeckelianos pessimistas acreditavam que a miscigenação "piorava" o caráter do povo; outros, otimistas, imaginavam que melhorava pela subtração de caracteres. São ecos dessa discussão o que captamos em "Macunaíma, o Herói sem Nenhum Caráter" (o que queria dizer, rigorosamente, sem caracteres próprios). Depois do início da década de 1910, o debate muda de figura: a genética esclarece como se dá a hereditariedade, e se passa a acreditar que o próprio ambiente (a falta de nutrição e as doenças) é que rebaixava os negros. A nova teoria culpava a omissão das elites, libertando o negro de atavismos.

Da ótica "melhorista", as pesquisas nacionais sobre saúde, que tomaram impulso a partir da experiência bem-sucedida de Oswaldo Cruz no Rio de Janeiro, revelaram um mundo rural que mais se assemelhava a um "imenso hospital" cuja personificação dramática foi o Jeca Tatu de Monteiro Lobato. Para os sanitaristas e higienistas, males como o alcoolismo contribuíam "poderosamente para a decadência do povo, para a desmoralização da política e para a degeneração da raça".

Contrario sensu, o antropólogo Franz Boas havia feito, nos EUA, estudos para o Congresso norteamericano, entre 1908 e 1910, sobre a assimilação dos imigrantes. Tais estudos mostraram, naquele novo meio, o maior desenvolvimento físico dos filhos de imigrantes em relação aos seus pais. Portanto, tratava-se de melhorar o meio em que viviam negros e pobres.

LOBATO

Como trincheira para a nova luta, Monteiro Lobato lançou a sua "Revista do Brasil", onde reuniu em torno de si, durante a década de 1910, uma série de médicos sanitaristas. A sua visão sobre o problema era muito clara, conforme escreveu em 1918:

"A higiene é a defesa artificial que o civilizado criou em substituição da defesa natural que perdeu. Ela permite ao inglês na Índia uma vida próspera, exuberante de saúde, no meio de nativos derreados de lezeira [...]. O nosso estado profundo de degenerescência física e decadência moral provém exclusivamente disso: desaparelhamento de defesa higiênica. O nosso povo, transplante europeu [...] foi invadido pela microvida tropical, e verminado intensamente, sem que nunca percebesse a extensão da mazela. Só agora se faz o diagnóstico seguro da doença, e surge uma orientação científica para a solução do problema da nossa nacionalidade, ameaçada de desbaratamento pelo acúmulo excessivo de males curáveis [...]. Sanear o país deve ser a nossa obsessão de todos os momentos. É a grande fórmula do patriotismo".

Ainda que alguns analistas entendam que o "higienismo" foi uma forma disfarçada de racismo, este é um problema apenas intelectual. O fato é que ele, na crença de que o homem expressa o meio, colocou o Estado como principal agente a promover a adaptação do homem ao ambiente. As teorias raciais caíram em total descrédito e o racismo perdeu qualquer substrato intelectual para se alimentar.

OLIVEIRA VIANNA

É curioso ver como ecos distantes e isolados das velhas teorias --como o livro tardio de Oliveira Vianna, intitulado "Raça e Assimilação" (1932), no qual afirma que "a raça é, em última análise, um fator determinante das atividades e dos destinos dos grupos humanos"-- foram violentamente rechaçadas por intelectuais e por servidores públicos.

Na crítica de Manoel Bomfim a Oliveira Vianna, esse é apresentado como "etnólogo oficial" --afinal era um funcionário público, do Tribunal de Contas-- e, portanto, não poderia expor suas ideias como se fossem meramente pessoais, visto que o Estado tem que promover a convergência da população, não a sua divisão. Na mesma época, Bomfim dirá em "O Brasil na América" (1929) que "nas sociedades misturadas, muita gente conservará as suas repugnâncias carnais. Nada há que discutir, ou condenar. Serão esses, como muitos outros aspectos, que só dizem com a sensibilidade pessoal". Em outras palavras, enquanto os valores envolvidos nas relações interraciais forem privados nada há a objetar publicamente.

FAMÍLIA

A ideia de democracia racial, que se difunde especialmente a partir dos anos 1930, é fruto desse tipo de concepção em que as relações raciais não foram transpostas para a esfera pública e em que a desigualdade permanece encapsulada na família ou na casa-grande, sem assomar como fator precípuo de dominação de classe. Estabelecem-se laços de família entre negros e brancos nos moldes expressos no poema de Carlos Drummond de Andrade ("Retrato de família"):

"Já não distingo os que se foram dos que restaram. Percebo apenas a estranha ideia de família viajando através da carne."

Talvez por essa familiaridade entre negros e brancos --que responde pelo crescimento da população que quer ser negra-- se tenha produzido uma legislação antirracista tão tímida entre nós. A tão celebrada Lei Afonso Arinos, de 1951 (que tipifica como crime a "recusa, por parte de estabelecimento comercial ou de ensino de qualquer natureza, de hospedar, servir, atender ou receber cliente, comprador ou aluno, por preconceito de raça ou de cor"), trata o negro basicamente como consumidor. Seria essa a velha esperança de Joaquim Nabuco quanto à integração do negro na nação?"

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