A nobreza de Chico Rei


Em meio a festas consagradas a Nossa Senhora do Rosário, em ritmo de congado Ouro Preto revive hoje, com uma peça de teatro, a figura do escravo que comprou sua liberdade.
Por:Gustavo Werneck

Ouro Preto – Outubro traz as festas de devoção a Nossa Senhora do Rosário, as danças ritmadas das guardas de congado e a evocação de um personagem mítico da antiga Vila Rica. Nascido no fim do século 17 no Congo, aprisionado com a família quando era monarca e trazido ao Rio de Janeiro, Galanga se tornou o Chico Rei de Ouro Preto, dono de mina de ouro e respeitado pela sua nobreza e generosidade. Para uns, trata-se de lenda, pela falta de documentação, mas outros garantem que é pura história, pois a tradição oral manteve o nome sempre em alta e há registro de feitos importantes atribuídos a ele e outros negros, como a construção das igrejas de Santa Efigênia e de Nossa Senhora do Rosário do Alto da Cruz, no Centro Histórico de Ouro Preto. Hoje, às 20h, no anexo do Museu da Inconfidência, na Praça Tiradentes, será apresentada a peça (marionetes) Chico Rei pelo grupo Terno Teatro com participação do Congado de Nossa Senhora do Rosário e Santa Efigênia. Em cena, a trajetória do escravo que comprou a sua liberdade.

Gravura de Rugendas reproduz Festa De Nossa Senhora do Rosário, no século 19
“No século 18, em Vila Rica, 90% da população era formada por negros. Os brancos eram comerciantes, artistas e artífices. Dessa época e dessa comunidade, temos um legado cultural muito rico”, diz a promotora cultural do Museu da Inconfidência, a historiadora Margareth Monteiro. No entanto, afirma, muitos documentos se perderam, foram extraviados ou queimados, impedindo que os especialistas pesquisem a fundo a trajetória de Chico Rei. “Ele é citado apenas numa nota de rodapé no livro História antiga de Minas, de 1904, de Diogo de Vasconcelos. Em 1966, o romancista Agripa Vasconcelos escreveu o livro Chico Rei. É fundamental, portanto, que permanentes estudos sejam feitos para traçar, com detalhes, a trajetória de Galanga, do Congo ao Brasil”, diz Margareth.
Tudo começou no início do século 18, no auge do Ciclo do Ouro em Minas, quando os colonizadores portugueses partiram para a África a fim de capturar os negros e fazê-los escravos nas minas, garimpos e aluviões. “Havia escassez de mão de obra na mineração e o comércio se intensificava com o Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia. Os chamados navios negreiros transportavam famílias inteiras e tribos que viajavam no convés”, conta a historiadora. Em 1739, o rei Galanga, sua mulher, a rainha Djalô, e os filhos, Muzinga e Itulo, partiram da terra natal no navio Madalena e, durante uma tempestade, “para aplacar a ira dos deuses do mar que ameaçavam afundar a embarcação”, os negros mais fracos foram lançados ao mar. Nesse grupo, estavam Djalô e a filha, Itulo. Foi assim, em clima de desespero, que Galanga e Muzinga chegaram ao Rio.
No batismo católico, Galanga ganhou o nome de Francisco e foi com ele que chegou a Ouro Preto, ao lado do filho, depois de vendidos num lote de escravos ao major Augusto, proprietário da Mina da Encardideira, no Bairro Antônio Dias. O escravo não esmoreceu, conseguiu juntar seu ouro, migalha a migalha, comprando a sua liberdade e a de Muzinga. Reza a tradição oral que o metal foi juntado de forma bem criativa: Chico Rei e outros escravos escondiam o ouro em pó entre os cabelos e depois os lavavam na pia batismal da igreja, sendo acobertados pelos padres. Depois de liberto, Chico Rei, como já era aclamado devido aos gestos de solidariedade, comprou a Encardideira e ainda alforriou os amigos que vieram com ele no Madalena.

No batismo católico, Galanga ganhou o nome de Francisco
IRMANDADE A vida religiosa, representada pela devoção a Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e Santa Efigênia, esteve presente na vida do ex-monarca africano em Ouro Preto. Margareth conta que, junto com outros negros, ele construiu, em 1785, a igreja dedicada às santas no Bairro Alto da Cruz. Nessa mesma época, foi criada a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e de Santa Efigênia, a maior de Minas nos tempos coloniais. Coroado rei no templo católico, Galanga se considerou vingado pela morte de Djalô e da filha Itulo. Até então, diz a historiadora, os negros não podiam ser enterrados nos cemitérios católicos, que ficavam dentro ou no entorno das igrejas. Esse era um direito exclusivo dos brancos. Então, o novo templo ganhou espaço para o sepultamento dos ex-cativos. “Dessa forma, eles poderiam ter o corpo repousando eternamente como um ser humano, ser um cidadão”, explica a historiadora.

Chico Rei e outros escravos escondiam o ouro em pó entre os cabelos e depois os lavavam na pia batismal da igreja, sendo acobertados pelos padres.
A edificação da igreja permitiu ainda que os negros realizassem as suas festas, com as danças e cantos em louvor às santas protetoras. No fim do século 18, aos 72 anos, Galanga morreu em Vila Rica de hepatite, mas seu filho herdou o posto de rei do congado. “A tradição é tão viva,, que é impossível que tudo isso não tenha sido verdade”, diz Margareth. Atual rei da guarda de congado de Ouro Preto, Geraldo Bonifácio de Freitas acredita piamente na trajetória de Galanga e lamenta que grande parte da documentação tenha se perdido ao longo dos anos.

Mina da Encardideira, no Bairro Antônio Dias.
SAIBA MAIS: MINAS DE ALUVIÃO
Em Vila Rica – hoje Ouro Preto –, os escravos trabalhavam nas minas de ouro, no garimpo dos rios e “mundéis”. A historiadora Margareth Monteiro explica que mundéis eram depósitos localizados no pé das serras, em pontos estratégicos. Tanques recolhiam a água da chuva que descia das encostas. “Quando o barro assentava, as pepitas ficavam por cima, sendo recolhidas e levadas para a casa de fundição. Um quinto do ouro ia para a coroa portuguesa”, explica. Vila Rica tinha em abundância o raro ouro preto ou podre, que eram as pepitas em forma de seixos rolados, arredondadas e cobertas por uma camada espessa formada por minério de ferro, bauxita e paládio. Por isso mesmo, os olhares de cobiça do mundo se voltaram para a região que mantém um conjunto arquitetônico e monumentos que atraem visitantes de todos os cantos. Ouro de aluvião era o mais fácil de ser garimpado, ficava nas encostas dos rios ou dos mundéis. Por isso, normalmente, não eram levados pela correnteza.

LINHA DO TEMPO
Fim do século 17 – Galanga, futuro Chico Rei, nasce no Congo, onde é monarca, guerreiro e sacerdote do deus Zambi-Apungo
Início do século 18 – Portugueses formam caravanas para ir à África buscar escravos a fim de suprir a demanda de mão de obra na região das minas
Década de 1730 – Navios negreiros saem do Congo em direção ao Brasil transportando famílias inteiras e tribos. Galanga, a mulher Djalô e os filhos Muzinga e Itulo viajam no navio Madalena
1740 – Galanga e Muzinga chegam a Vila Rica, depois de vendidos como escravos no Rio de Janeiro. No Rio, o pai é batizado e recebe o nome de Francisco
1745 –Galanga compra a alforria dele e do filho. Nas festas de Nossa Senhora do Rosário, é coroado rei do congado e se torna conhecido como Chico Rei
1750/1760 – Galanga compra a Mina da Encardideira, onde trabalhou, localizada no Bairro de Antônio Dias, em Vila Rica. O local, redescoberto em 1946, é atualmente conhecido como Mina de Chico Rei
1785 – Escravos constroem a Igreja de Santa Efigênia, no Bairro Alto da Cruz, em Vila Rica, atual Ouro Preto
Fim do século 18 – Chico Rei morre de hepatite, em Vila Rica e seu filho é coroado o novo rei do congado

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