Monteiro Lobato:Muito além do politicamente correto


Quem foi criado em meio aos livros, e entre eles os de Monteiro Lobato, pôde aprender duas coisas: quem não vê bem uma palavra não pode ver bem uma alma e aqueles que queimam livros acabam cedo ou tarde por queimar homens.
Por: Vera Lopes da Silva


Monteiro Lobato é autor de livros infantis que atravessaram gerações, como Caçadas de Pedrinho, no qual um dos personagens é a empregada negra Tia Nastácia, pivô da polêmica envolvendo a obra do escritor (Casa de Monteiro Lobato/Taubaté SP)
Monteiro Lobato é autor de livros infantis que atravessaram gerações, como Caçadas de Pedrinho, no qual um dos personagens é a empregada negra Tia Nastácia, pivô da polêmica envolvendo a obra do escritor
Depois do mensalão, STF deve apreciar ação que considera parte da obra do escritor Monteiro Lobato como tendo conteúdo racista. A professora da PUC Minas Vera Lopes da Silva analisa os trechos que as entidades defensoras dos direitos dos negros questionam. Para ela, trata-se de uma injustiça com o escritor
Quem foi criado em meio aos livros, e entre eles os de Monteiro Lobato, pôde aprender duas coisas: quem não vê bem uma palavra não pode ver bem uma alma e aqueles que queimam livros acabam cedo ou tarde por queimar homens.
Ambas as frases, a primeira atribuída ao nosso poeta português Fernando Pessoa, a segunda, ao poeta alemão Heinrich Heine, vêm a calhar quando se põem no banco dos réus Caçadas de Pedrinho e Negrinha, de Monteiro Lobato, pelo entendimento de que apresentam conteúdo racista.
Comecemos por Pessoa: parece-nos que os autores da ação não veem bem, não leem bem a palavra que está nas obras. Consequentemente, não podem ver bem a alma das obras. Vamos, então, às palavras, pois, cremos, elas se defendem.
Para que as julguemos racistas ou não, é preciso lê-las com perspicácia, analisar seu modo de construção, pois a leitura da literatura exige ações de des-cobrir, de des-nudar.
Nas páginas de Caçadas de Pedrinho (edição do Círculo do Livro), temos uma maravilhosa história de aventuras, protagonizada por personagens infantis – Pedrinho, Narizinho, Marquês de Rabicó, Visconde de Sabugosa e a impertinente boneca Emília – envolvidos na caça de uma onça e em uma consequente vingança dos animais. O espaço da narrativa é um sítio que toma ares de floresta, com todas as figurações que isso implica: as figuras, por exemplo, se associam ao mundo da bicharada, inclusive no que se refere a personagens, humanos ou não. Então, Rabicó, assustado, fica, segundo Pedrinho, “com cara de Marquês que viu onça… Pedrinho, sob o olhar de Narizinho, é valente “como galo garnisé”; em apuros pela proximidade da onça, todos são comparados, pelo narrador, a macacos: “Cada qual tratou de si e, como se houvessem virado macacos, todos procuraram a salvação nas árvores”; e, quando da chegada apavorante dos animais, Tia Nastácia, em desespero, “trepou que nem uma macaca de carvão pelo mastro de São Pedro acima”.
Esse último trecho, um dos que comprovariam o caráter racista da obra, facilmente é desenquadrado dessa desqualificação, pois traz uma símile igual às outras: a comparação “que nem macaca” não difere daquela associada à agilidade do mamífero (“como se houvessem virado macacos”), rapidez motivada pelo medo que sentem dos bichos. Quanto ao termo de carvão, ele constitui uma óbvia associação entre a cor da personagem, negra, e o mineral, também negro. Não há tom pejorativo nisso, apenas associação entre tons.
A trama continua, com a vingança dos bichos sendo preparada. Tendo conhecimento de tudo o que há de vir, Emília, ansiosa e sensacionalista, afirma: “É guerra das boas. Não vai escapar ninguém, nem Tia Nastácia, que tem carne preta. As onças estão preparando as goelas para devorar todos os bípedes do sítio, exceto os de pena”. Também esse trecho estaria sendo alvo da ação contra a obra, e sua defesa também se faz a partir da análise dos discursos, neste caso, do de Emília. Não se pode deixar de levar em conta como é a deliciosa personagem: atrevida, filosofante, capaz de tiradas e de associações ligadas ao maravilhoso, com perfil de criança no que tange à franqueza e ausência de constrangimentos. E esse perfil está nesta sua fala: realmente Tia Nastácia é a única negra entre os personagens humanos e os bichos daquele grupo? ressalte-se, todos igualados em bípedes? que tem pele negra. E não há nenhum motivo para Emília se sentir constrangida em dizer isso, porque ela vê exatamente e simplesmente isto: Tia Nastácia é o único ser, em meio a todos os bípedes, cuja pele apresenta essa tonalidade. Dessa forma ela expressa o ponto a que chegará a guerra: não sobrará ninguém, não haverá salvação, nem para os comuns nem para qualquer diferente entre todos aqueles bípedes que ali se encontram, caso de Tia Nastácia.
Assim como nos trechos acima, outros podem ser lidos sem o olhar inquisidor, mas com o da livre expressão. O leitor pode perceber o tratamento de igualdade dado às personagens Tia Nastácia e Vovó Benta, irmanadas nesses dois títulos, tia e avó. Não é difícil ouvir o tom carinhoso e aconchegante com que o vocábulo tia é pronunciado, particularmente pelo narrador. Vejam que interessante: não apenas as crianças chamam a personagem de tia, mas também o narrador, onisciente, de fora da narrativa… Traduzindo: esse tratamento é uma bela forma de ilustração de que a personagem faz parte da família; de que não é preterida nem nos afetos das crianças nem nas ironias da boneca (todos dela são alvo, até nas ironias afetivas), nem pelo foco que dirige a trama.
O leitor também pode ouvir vozes chamando, igualmente, Vovó Benta e Tia Nastácia de velhas. Tratava-se de vocábulo usual, em uma época em que velhice não era problema, mas uma etapa da existência visível no físico (cabelos brancos, rugas, cansaço do corpo, etc.). Não havia problema no uso desse adjetivo, digamos metonímico, forma de caracterizar as personagens, não de discriminá-las. Velhice e cor – nada mais do que constatações, sem demérito, menosprezo ou discriminação.
No caso da obra Negrinha, o estranhamento é ainda maior: ler essa obra como de cunho racista exige malabarismos mentais, pois é evidente a denúncia contra o racismo, conforme ilustram os parágrafos iniciais.
“Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos assustados.
Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos vivera-os pelos cantos escuros da cozinha, sobre velha esteira e trapos imundos. Sempre escondida, que a patroa não gostava de crianças.

Tia Nastácia era a empregada negra do Sítio do Picapau Amarelo (Ilustração de Paulo Borges para o livro Sítio do picapau amarelo/Ed. Globo)
Tia Nastácia era a empregada negra do Sítio do Picapau Amarelo
Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo, amimada dos padres, com lugar certo na igreja e camarote de luxo reservado no céu. Entaladas as banhas no trono (uma cadeira de balanço na sala de jantar), ali bordava, recebia as amigas e o vigário, dando audiências, discutindo o tempo. Uma virtuosa senhora em suma – ‘dama de grandes virtudes apostólicas, esteio da religião e da moral’, dizia o reverendo.
Ótima, a dona Inácia.”
Esse início se faz por antíteses entre a miserabilidade da criança e a opulência da patroa. A já ausência de nome de Negrinha é a primeira denúncia: sem nome, sem identidade, ninguém. A patroa, alguém nomeado, alguém que é dona, Dona Inácia.
A descrição das duas as enfeia, mas em sentidos distintos: para Negrinha, não é a cor que faz evidenciar a feiura, mas os maus tratamentos que recebe: a impossibilidade de se cuidar, de se produzir como pessoa e, consequentemente, como alguém de beleza, o que resulta na falta de embelezamento dos seus cabelos, tornados ruços, e nos olhos sem encantamento porque tomados pelo medo, pela falta de amor.
Por sua vez a patroa torna-se feia pelas ironias com que é descrita, sem piedade, pelo narrador: o excesso de adjetivos que promovem tom hiperbólico, a vinculação da personagem com a Igreja (o que realçará seu mau comportamento, anticristão, manifesto nas suas ações extremamente perversas, presentes no decorrer da narrativa).
Não é difícil também enxergar o espaço oposto em que se instalam: Negrinha, “pelos cantos escuros da cozinha, sobre velha esteira e trapos imundos”; a patroa, em um trono, desdenhado pelo narrador na real cadeira de balanço em uma reles sala de jantar.
É reluzentemente explícito o tom depreciativo com que o narrador trata a patroa, bem como o tom de com-paixão com que trata Negrinha, nesse diminutivo que, esteticamente, evidencia a fragilidade da personagem-criança e a pequenez imposta.
Racistas essas construções artísticas?!
Entretanto, mesmo que essas duas obras brevemente analisadas não tivessem o tom aqui exposto, mesmo que elas tivessem deveras caráter racista, ainda assim nossa proposta seria a de que, sob nenhuma condição, fossem objeto de notas de rodapé ou de censura plena.
A literatura é arte, e sua função é a de pôr a nu o mundo, o homem, a vida, em toda contradição e harmonia, em seu caos e em seu cosmo. Ela elucida como a vida é e não deveria ser; como não é e deveria ser. E isso não se dá pelo simples conteúdo, mas pelo tratamento dado à forma, pelos arranjos, pelo modo literário de dizer, escancarando algo que, paradoxalmente, está submerso. E o leitor, caminhante das entrelinhas, desvenda essa forma secreta e a captura.
Notas de rodapé explicativas sobre racismo, ecologia, época ou outra consideração dita politicamente correta dirigem o pensamento. São, portanto, um atentado à inteligência sensível do leitor e um (mal!) disfarçado e ardiloso ato de censura, pois nada mais são que a queima de trechos e, portanto, de pensamentos de personagens, de metáforas, de estratégias: pequenos passos para a queima de todo o livro, o banimento da obra.
Ficamos, como Heine, assombrados, temerosos: aqueles que queimam livros acabam cedo ou tarde por queimar homens. O banimento das obras de Monteiro Lobato queimará, decerto, não o autor.
Por:Vera Lopes da Silva é mestre em Literaturas de Expressão Portuguesa e professora do curso de Letras da PUC Minas
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