Em fevereiro do ano passado, um mês depois do terremoto que destruiu o Haiti e a deixou desabrigada, a adolescente Sherlie Christoph, 19 anos, tinha saído de sua barraca para comprar água quando começou a chover.
Ela correu de volta para a tenda, no acampamento de Champs de Mars, no centro de Porto Príncipe, onde morava sozinha desde o terremoto de 12 de janeiro de 2010.
A mãe de Sherlie morreu no tremor, soterrada na casa em que viviam. A garota sobreviveu, mas ficou sozinha.
“Logo depois que entrei na barraca, um homem veio atrás de mim, pedindo abrigo da chuva. Eu disse que não e menti que morava com outras pessoas que logo iriam chegar”, diz.
“Ele entrou mesmo assim, apontou uma arma para mim e me estuprou. Me bateu antes e depois. Sofri de hemorragia durante dois meses”, afirma.
Hoje, quase um ano depois, ela continua vivendo sozinha em uma barraca em Champs de Mars. Sem emprego, sem dinheiro e sem família, passou a trabalhar como prostituta depois do estupro.
Quando questionada sobre o que espera do futuro, ela começa a chorar.
“Quando penso no que aconteceu, em como tudo mudou desde o terremoto, fico imaginando que se minha mãe não tivesse morrido, eu não estaria nessa situação”, diz.
“Talvez se eu tivesse alguém que cuidasse de mim, o estuprador não teria me atacado, e hoje eu não estaria assim.”
“Aumento dramático”
A história de Sherlie Christoph é um exemplo do aumento da violência sexual no Haiti registrado após o terremoto.
Segundo um relatório da Anistia Internacional, o risco de estupro e outras formas de violência sexual aumentou “dramaticamente” desde o tremor, que destruiu os poucos mecanismos de proteção existentes no Haiti.
Não há dados precisos sobre o número de casos. Uma das organizações locais de apoio às vítimas, a Kofaviv (Comissão de Mulheres Vítimas para Vítimas), calcula que recebeu mais de 250 casos de estupro nos primeiros cinco meses após o terremoto.
“De julho até dezembro, registramos outros 178 casos”, disse à BBC Brasil a coordenadora da Kofaviv, Malya Villard-Apollon, 50 anos, ela própria vítima de estupro três vezes.
Acampamentos
Villard-Apollon, assim como muitas das voluntárias da Kofaviv, foi forçada a morar em um acampamento após o terremoto, e diz que as condições nesses locais facilitam a ocorrência dos crimes.
“As mulheres ficaram mais vulneráveis. Antes viviam em uma casa. Agora, é fácil rasgar a lona das barracas com uma faca ou canivete. Qualquer um pode entrar”, afirma.
Ela diz que cerca de metade dos casos de estupro registrados pela Kofaviv em 2010 foram contra crianças. “Muitas crianças ficam sozinhas nas barracas”, afirma.
Villard-Apollon já havia sido estuprada em 1992 e em 2004. Em maio do ano passado, foi estuprada novamente, por um homem armado dentro da barraca em que vive no acampamento de Champs de Mars, em frente a outras pessoas que moram com ela.
Segundo a Anistia Internacional, a falta de policiamento e de iluminação e a superlotação nos acampamentos são fatores que facilitam a ação dos criminosos, geralmente membros de gangues.
Cicatriz
A Anistia Internacional diz ainda que o terremoto destruiu tribunais e delegacias de polícia, além do Ministério de Direitos das Mulheres, tornando mais difícil para as vítimas denunciar a agressão.
A maioria das mulheres entrevistadas para o relatório não reportou o crime, e as poucas que o fizeram não tiveram seus casos levados adiante pela polícia.
“O estupro deixa uma cicatriz moral. Ainda tenho pesadelos. O trabalho na Kofaviv me ajuda a suportar”, diz Villard-Apollon.
A entidade, criada em 2004, é formada por vítimas de violência sexual que promovem ações de apoio a outras vítimas e oferece atendimento médico e psicológico.
"Acompanhamos as vítimas ao hospital e, se quiserem denunciar o agressor, à delegacia", diz a voluntária Helia Sajeunesse, 50 anos.
Ela foi estuprada dentro de casa, em 2004, junto com a filha mais velha, então com 17 anos. Ambas ficaram grávidas do estuprador, e hoje têm duas filhas da mesma idade, seis anos.
No início deste ano, após o terremoto, a neta de Helia também foi vítima de estupro.
"Quando acontece algo assim, você pensa em suicídio. Se não fosse pelo meu trabalho aqui, estaria morta", diz.
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