Nilo Batista é jurista, foi vice governador e Secretário de Estado do Rio de Janeiro na década de 90, além de ser o fundador do Instituto Carioca de Criminologia. Em entrevista publicada orginalmente na revista Caros Amigos de dezembro deste ano, ele analisa a política de segurança pública carioca. Nilo faz duras críticas às ações policiais, acusa as corporações de mídia de incentivarem a violência e chama a responsabilidade política das ações de extermínio para o governador Sérgio Cabral.
Pode comentar a política de segurança a partir da derrubada do helicóptero e da reação do governo?
Pra ser sincero, eu não reconheço nessas atividades uma política pública na qual eu veja objetivos, métodos, metas. O que eu vejo é uma implacável carnificina no entorno do comércio varejista de drogas. O aproveitamento desse fracasso da política de drogas, cuja única utilidade hoje é facultar as oito bases dos EUA na Colômbia, permitir que o comandante da IV Frota afirme candidamente que o único motivo de sua reativação é o narcotráfico, aí todo mundo fica feliz, não há nenhum olhar crítico sobre isso, não tem nada a ver com o pré-sal, com os acontecimentos econômicos do Atlântico Sul, e sim com o narcotráfico. Então, tá. Aliás, qual é mesmo o narcotráfico entre Brasil e África que tá preocupando?
Qual é o foco, então?
Rosa del Olmo demonstrou como a geopolítica permeia toda a questão das drogas. Internamente, trata-se da contenção da pobreza urbana, que é o problema que a desigualdade obscena da sociedade brasileira coloca. Infelizmente, mesmo entre setores da esquerda, acaba prevalecendo um olhar moral, fruto de um preconceito inercial sobre o lumpesinato, que no capitalismo industrial era completamente explicável, mas no capitalismo sem trabalho, no capitalismo onde predomina o trabalho morto, eu não sei como pode permanecer.
Há uma implacável carnificina no entorno do comércio varejista de drogas
As esquerdas acham que as violências policiais contra os inúteis da economia neoliberal nada tem de político. Os desempregados, os inempregáveis, os irremediavelmente alijados, cujas estratégias de sobrevivência são criminalizadas implacavelmente, seriam eles os vilões da história que não acabou? Atrás das trombetas higienistas do “Choque de Ordem” está a mcdonaldização da orla, a repressão do comércio informal popular, dos cocos, picolés, das quitandeiras do Galo ou do Pavão, que serão substituídas até o grande evento turístico-olímpico por assépticos sanduíches transnacionais.
São políticas apartadoras, isso não acena com nenhum horizonte de integração. Qual a proposta do governo? Privatizar o aeroporto, negócios, empreendimentos… Qual a proposta para o povo pobre?
Como essas propostas privatizantes se ligam com essas políticas repressivas?
No Pan, mataram 60 no Alemão. Aqueles 19 no último dia e antes. Nas Olimpíadas quantos vão ser? O prefeito só fala em “vender o Rio”. Qual a idéia para os favelados? É só essa? Estamos falando de política, do destino da juventude pobre, de um sistema penal que participa intensamente da acumulação capitalista, que descrendencia o debate político pelo tolo debate das representações jurídico-penais do fato político.
Não se discute, por exemplo, toda a economia da pena, que está presente nas penitenciárias privadas (construção e gestão) ou nas tecnologias de segurança – por trás dessa proposta há um precioso nicho de mercado, para usar uma expressão do vocabulário neoliberal. É disso que estamos falando. Então convém que a ficha caia rápido para melhorarmos esse debate.
Eu poderia vir com o argumento técnico, “bom, o helicóptero não tinha que fazer aquilo”. Quando eu tinha responsabilidades de comando sobre as polícias do Rio de Janeiro, delegadas pelo governador Leonel Brizola, ele não fazia isso que hoje se faz: “Eu não tenho nada a ver com isso”. Como não? Como o governador do Estado não tem? Como ele entrega a uma gestão tecnocrática um poder que pode matar 20 pessoas num dia, e que mata pelo menos 1.500 pessoas por ano, da mesma faixa etária e extração social?
Como essa máquina pode não estar sob o controle do primeiro mandatário do Estado, em quem a população confiou? Beltrame é um delegado de polícia. Mas quem votou nele? Não é dele a responsabilidade política por estar um helicóptero a disparar sobre uma população indefesa. Eu aprendi, nos anos que passei na polícia, que, salvo honrosíssimas exceções, a notícia “policiais estavam acuados no morro tal” significa que um entendimento não deu certo. Porque, me explica o que dois, três policiais vão fazer sozinhos numa “boca”?
Já reparou que toda pessoa ferida que a PM leva para um hospital já chega morta? Vai cair a ficha, algum dia, que isto é uma rotina? Ou, estatisticamente, nossa PM seria a instituição mais desafortunada do mundo no campo do socorro a feridos?
O secretário José Mariano Beltrame dizia que esse é um problema de médio a longo prazo, que só vai ser resolvido a partir da instalação de mais UPPs.
Quer dizer que ele vai resolver com UPPs. Olha aqui, a coisa precursora das UPPs era chamada PPC – Posto de Policialmente Comunitário. O que a experiência comprovou é que, se você bota o PPC ali, ele vai ter que dialogar, e se estamos falando de uma atividade econômica importante para aquela comunidade, ou o PPC se incorpora ou ele vai ter que fechar o olho, não vai ter jeito.
As dez famílias que no Brasil detêm o monopólio do discurso adoram matadores
Se a idéia é como ocupação colocar permanentemente uma força nessas comunidades, a proposta é completamente autoritária. Você quer acabar com a infância dessas crianças? Elas moram num país, numa cidade ocupada? É uma experiência que não está avaliada, que sempre começa muito mal, sempre de maneira sangrenta, porque a Pacificação começa com os óbitos, e depois fica aquela coisa de fachada, a capitã boazinha…
Até quando vamos apostar em soluções policiais? Quando foi, onde foi que soluções policiais resolveram problemas? Havia, nos anos 1930, nos EUA, uma enorme crise de segurança pública. Foi uma solução policial ou foi a legalização da droga ilícita que deu uma acalmada?
Esse discurso do Beltrame é muito parecido com o do Cabral no início do governo, em 2007, quando dizia que era preciso passar um tempo de estresse, efeitos colaterais, mas só assim pra resolver o problema.
Estamos caminhando para o final do governo e foi assim o tempo todo; ele gosta de dizer estresse, em vez de genocídio, matança, extermínio… Foi muito, muito estresse! Mas estão bem. Porque matadores estão sempre bem com a grande mídia. As dez famílias que no Brasil detêm o monopólio do discurso público adoram matadores. E eu não estou falando isso para o Beltrame, a responsabilidade política não é dele.
Então, essa declaração de que a queda do helicóptero foi nosso 11 de setembro…
Dá uma idéia disso que estou falando. Totalmente despropositada.
Parte da direita costuma usar muito o exemplo o Tolerância Zero, de Nova York.
Quem dá esse exemplo é um ignorante. Nos EUA todos houve estabilização dos indicadores criminais nos anos noventa graças a cinco fatores: pleno emprego, redução demográfica da população de 15 a 24 anos… Os outros estão explicados em Loic Wacquant, quem quiser é só pegar pra ler. Isso foi nos EUA todo, só em Nova York o Giuliani ficava falando em Tolerância Zero. O único efeito comprovadamente ligado a essa bobagem do Tolerância Zero foi o aumento do controle e da violência policial contra os pobres.
Vi uma reportagem na TV Record mostrando uma arma de um policial que falhou, ele pedia ajuda, e a câmera filmando tudo. Quando voltou para os apresentadores, eles comentavam o absurdo de armas obsoletas, que situação a da polícia, e o poder dos traficantes cada vez maior, até derrubaram um helicóptero. Levando a crer que os traficantes varejistas tem um poder muito maior que a polícia.
Esse discurso é tão velho… Eu já ouvi mais de cem vezes. É uma maneira de chamar mais violência contra as classes populares, essa coisa de dizer que os grupos são mais armados que a polícia. Isso não é verdade, nunca foi. O problema é que eles conhecem mais o terreno, eles tem mais a simpatia da população – nem sempre, mas majoritariamente. Mas até no Alemão, se o Bope quiser ele entra. O resultado vai ser um grande número de crianças mortas, velhos mortos, mas entra. Agora, a Constituição, no seu artigo 144, determina o compromisso da polícia com a vida, e não com a morte. Aquele pessoal que se reuniu em 1988: “A segurança pública é exercida para a preservação da ordem pública e para a incolumidade das pessoas”. Não é pra matar, não. É pra salvar. Só que no Rio de Janeiro parece que vigora a Constituição de outro país.
Por que esse debate sobre as facções não está nas corporações de mídia?
Porque esclareceria tudo, ajudaria a análise. É preciso estudar essas organizações populares ilícitas. Em São Paulo, a academia está estudando o PCC, que tem responsabilidade direta no decréscimo dos homicídios. Não é tudo igual. O fato de disputarem o mesmo negócio ilícito não significa que sejam todas a mesma coisa. A coisa que mais me surpreendeu, quando eu tava no governo, foi descobrir quem é o cara que decidia: “agora a polícia vai nesse morro”. Qual o critério? Procurei estabelecer critérios objetivos. Que resistência… Que resistência. Tem que ter critérios objetivos. Caso contrário, sequer compreenderemos os conflitos em curso.
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