Diony Maria, jornalista e especialista em Antropologia Social (RS)
Nos Estados Unidos e em Cuba, a média de vida das pessoas com Anemia Falciforme é de 56 anos. Em Cuba, não há registros de mortalidade infantil por causa da doença. Na Jamaica, um estudo realizado em 1997, apontou que 80% dos jovens de até 21 anos e doentes falciformes já haviam completado o ensino médio. Nesses países, as políticas públicas eficazes de tratamento da doença tiveram início há quase três décadas.
No Brasil, ainda não foi implantado, de fato, um programa nacional para a Anemia Falciforme. Os dados garimpados por profissionais da área da saúde dedicados ao estudo da doença são dramáticos: as taxas de mortalidade de crianças falcêmicas menores de cinco anos são altíssimas; a expectativa de vida dos doentes oscila de 18 a 21 anos; dos que sobrevivem e heroicamente ultrapassam esta faixa etária, apenas 8,5% conseguem completar o ensino médio.
A Anemia Falciforme é uma doença genética, hereditária e incurável que afeta a hemoglobina fazendo com que os glóbulos vermelhos percam sua elasticidade, tornando-se rígidos e com formato de foice. Dessa maneira, estes glóbulos agregam-se e obstruem a passagem do sangue nos pequenos vasos, causando microenfartos em diferentes partes do corpo. Entre os sinais e sintomas, destacam-se as crises dolorosas nos ossos, músculos e articulações, o cansaço, a icterícia (amarelão) e as úlceras (feridas) nas pernas. Em bebês, pode haver inchaço muito doloroso nas mãos e pés.
Este tipo de anemia incide em pessoas afro-descendentes não importando se, pela aparência (fenótipo), elas se considerem negras (pretas ou pardas) ou não negras (brancas).
Há anos, o discurso de ativistas da área da saúde, em especial da saúde da população negra, soa como um mantra: a Anemia Falciforme é uma questão de saúde pública. Certamente, os governos que entram e saem já sabem disso. O que prova que, também neste caso, o racismo anda de mãos dadas com o descaso e a falta de uma efetiva vontade política.
Programas para inglês ver
Em meados de agosto do ano passado, o ministro da Saúde, Humberto Costa, esteve no Rio Grande do Sul para participar do I Seminário Nacional sobre Anemia Falciforme e lançar oficialmente o Programa de Políticas Nacionais para o Combate à Anemia Falciforme. Participaram deste seminário, entre outros, secretários estaduais e municipais de saúde, representantes do Congresso Nacional (Senado Federal e Câmara dos Deputados), da Assembléia Legislativa (RS), da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, da Sociedade Brasileira de Pediatria, da Sociedade Brasileira de Hematologia, da Associação Gaúcha de Doença Falciforme (Agafal) e do Ministério Público.
Até agora, o máximo que o evento conseguiu render foi a produção de uma cartilha publicada “para informar a população sobre a Anemia Falciforme”. A cartilha, produzida pela Comissão de Participação Legislativa Popular, da Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, foi lançada em novembro do ano passado, dentro das atividades da Semana da Consciência Negra.
Também em 2004, o Ministério da Saúde organizou várias reuniões em Porto Alegre e convidou profissionais da área da saúde, incluindo médicos hematologistas dos principais hospitais da capital gaúcha, representantes de organizações não governamentais que atuam na área da saúde, portadores de Anemia Falciforme e familiares destes.
Consta na ata da Agafal que o objetivo dessas reuniões era alicerçar projeto piloto do Programa Nacional de Atenção Integral aos Pacientes Portadores de Hemoglobinopatias – Anemia Falciforme e Talassemia, pelo qual os novos casos de Anemia Falciforme seriam tratados nos hemocentros, significando a centralização do atendimento e da distribuição de medicamentos.
Ainda segundo a ata, “o objetivo [do programa] é promover uma mudança na história natural das hemoglobinopatias no Brasil, reduzindo a morbidade em concordância com a portaria do MS 822 de junho de 2001.” O projeto piloto contempla seis capitais do país: Belém, Belo Horizonte, Campo Grande, Porto Alegre, Recife e Salvador.
“A última reunião aconteceu no dia 19 de outubro de 2004. Já se passaram seis meses e nunca mais se ouviu nada sobre o assunto”, sintetiza a diretora da Agafal, Neusa Maria da Rocha Carvalho, que, semanalmente, se reúne com os médicos que também integram a diretoria da Agafal e chefiam o Serviço de Hematologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, um dos centros de referência de tratamento de pacientes portadores de Anemia Falciforme no Rio Grande do Sul.
Inusitadamente, até o final do mês de abril, os integrantes da Agafal ainda não haviam sido informados de que o projeto piloto que contempla Porto Alegre foi lançado oficialmente pelo Ministério da Saúde, no último dia 21 de março. Aliás, neste dia, a coordenadora do Programa Nacional de Atenção Integral aos Pacientes Portadores de Hemoglobinopatias – Anemia Falciforme e Talassemia, Joice Aragão, declarou à Agência Brasil: “o projeto tenta levar a questão de uma política de atenção integral ao paciente. Vamos organizar uma rede de assistência para que o atendimento fique mais próximo. Vamos ver o perfil dos funcionários que vão atender esses pacientes, qual atenção deve ser dada a eles. A idéia é a gente trabalhar integralmente com esses pacientes dentro das estruturas locais.”
Cinco Maracanãs versus toda a cidade de São Paulo
A apresentação dos números e as comparações concretas dispensam maiores comentários. No final de 2004, relatório divulgado pelo Unaids, programa das Nações Unidas de Combate à AIDS, informou que o Brasil tinha 600 mil pessoas infectadas pelo HIV ou 0,34 da população total do país. Segundo o mesmo relatório, 150 mil portadores do vírus já desenvolveram a doença e estão em tratamento.
Fica mais fácil visualizar o que significam estes números, se levarmos em conta a capacidade oficial e o recorde de público do Maracanã, respectivamente, 122.268 pessoas e 183.341 pessoas (no jogo Brasil 1 x Paraguai 0, em 1969). Os portadores do HIV lotariam cinco Maracanãs, sendo que os doentes que já desenvolveram a doença estariam num número menor do que o recorde de público do estádio. Sem dúvida, um quadro dramático.
A AIDS, como também o câncer, recebem do Ministério da Saúde a classificação de doença com tratamento de alta complexidade. O que significa, entre outras atenções, o pronto abastecimento do estoque dos medicamentos gratuitos fornecidos pelas farmácias do Sistema Único de Saúde (SUS).
Onze milhões - O gene da Anemia Falciforme (HbS) afeta 6% da população brasileira ou pouco mais de 11 milhões de pessoas. (É isso mesmo, onze milhões.) Quando se consideram apenas os negros (pretos e pardos), esse percentual pode atingir 10% desta população ou pouco mais de oito milhões de pessoas. Assim, na comparação, o HbS corresponderia ao número total da população da cidade de São Paulo ou, se preferir, ao público suficiente para lotar aproximadamente cem (100) Maracanãs.
A diferença fundamental entre o vírus HIV e gene HbS é que o primeiro, sendo um vírus, pode entrar no organismo de qualquer pessoa a qualquer momento. Já o segundo, sendo um gene, só poderá causar efetivamente a doença falciforme se encontrar outro gene igual na concepção. Ou seja, os filhos de uma pessoa que possua um gene normal e outro alterado (Traço Falciforme) com outra pessoa que também possua um gene normal e outro alterado (Traço Falciforme) podem nascer com os dois genes alterados (Anemia Falciforme). Matematicamente, se existem 11 milhões de brasileiros portadores do Traço Falciforme é bastante provável que muitos deles possam se encontrar e possam gerar filhos com Anemia Falciforme. Como não existe no país um rastreamento da incidência do Traço Falciforme, as pessoas só sabem da carga genética quando o traço ou a doença se manifestam.
A Anemia Falciforme é uma doença grave, mas se diagnosticada em tenra idade e tratada corretamente pode permitir que os doentes tenham um padrão de qualidade de vida razoável. É o que atestam os já citados números dos EUA, de Cuba e da Jamaica. Tal tratamento exige uma atenção integral ao paciente durante toda a sua vida, uma vez que toda a saúde fica comprometida.
Remédios caros - No Brasil, os preços dos remédios utilizados no tratamento da Anemia Falciforme são proibitivos. Em Porto Alegre, por exemplo, uma caixa com cem compridos de Hidroxiuréia dura um mês e custa em torno de R$ 250,00. (Isso mesmo, duzentos e cinqüenta reais). A Hidroxiuréia é fundamental no tratamento porque penetra dentro dos glóbulos vermelhos e consegue amolecer a hemoglobina endurecida.
Uma caixa com dez ampolas de Desferal, que evita o acúmulo de ferro no sangue, sai por R$ 200. A bomba de infusão de uso caseiro, equipamento que fica acoplado ao corpo do paciente durante aproximadamente oito horas para retirar o excesso de ferro já acumulado no organismo, custa aproximadamente R$ 2 mil e 600 (dois mil e seiscentos reais). Já a bomba de uso hospitalar custa em torno de R$ 6 mil (seis mil reais). A vantagem é que esta leva somente uma hora para retirar o excesso de ferro e, evidentemente, poderá ser utilizada por várias pessoas em um mesmo dia.
Para as feridas crônicas, que normalmente aparecem nos tornozelos dos doentes, uma bisnaga com 50 gramas da pomada Iruxol custa por volta de R$ 54,00 e dura somente uma semana. A rede pública fornece a pomada Nebacetin que não faz a limpeza necessária e não é eficaz na cicatrização. Na prática, os postos de saúde costumam disponibilizar somente o curativo Bota de Ulna (feito com óxido de zinco). Os profissionais de saúde dizem que este curativo produz uma melhora, mas está longe de ser o ideal.
Os pacientes ainda precisam tomar diariamente vitaminas do Complexo B. Receber doses de penicilina mensalmente. Vacinar-se regularmente. A Anemia Falciforme ainda não foi incluída pelo Ministério da Saúde do Brasil no rol das doenças de tratamento de alta complexidade..
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