Modesta Contribuição para um Caleidoscópio Mundial
Rizoma Flor da Palavra: modesta contribuição a um caleidoscópio mundial
A Flor da Palavra é a invenção de um rizoma de comunicação e solidariedade, inspirado inicialmente no levante dos povos maias e seu Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), nos movimentos anti-capitalistas simbolizados pela "batalha de Seattle", e tantas outras lutas anti-autoritárias, combatendo não apenas Estados e corporações, mas também os significados, valores e práticas cotidianas que as sustentam. Esta invenção não é o ponto de partida. É um ponto possível de encontros - comunicação e solidariedade - para a revitalização de tradições esquecidas, e a germinação de novas palavras, valores e práticas. É menos um "espaço público" iluminista, com sua transparência e padronização que se pretende universal, e mais a formação de um rizoma, tecedura de mundos, formando o mundo onde caibam muitos. A Flor da Palavra se constrói com arquitetura semelhante à de "favelas": labiríntica, assimétrica, rica de sentidos e surpreendentes passagens, comunicações, conflitos e solidariedades; por isso mesmo, será difícil discipliná-la, controlá-la ou reprimi-la. Não é a formulação de um padrão de luta, mas a arte de enlaçar os existentes em colaboração criativa. Ela se faz por colagens, bricolagens, reciclagens com os lixos urbanos e os adubos dos rios e das florestas. Para conectarmos e reinventarmos os nossos mundos, é preciso caminhar perguntando, escutando e dialogando.
A Flor da Palavra é o encontro das práticas, das lutas reais de cada pessoa e coletividade em seu dia a dia, sobretudo aquelas lutas que sequer chamamos "lutas", e movimentos que não chamamos "movimentos", por não estarem nos manuais e nem nas grandes teorias. Desabrocha na reflexão sobre a prática: mente e corpo em movimento se unificam tal qual a pessoa e sua imagem no espelho. A pessoa e sua imagem revelam-se diversos, invertidos, e desta dança nasce outra pessoa (imaginem a mulher ou o homem diante de um espelho, ao se enfeitarem para a noite). A reflexão sobre a prática não existe para a solidão: ela nasce na palavra falada, na palavra escrita, na palavra cantada. Depois do ensaio diante de nossos espelhos falamos, escrevemos e cantamos entre outras e outros. Desabrocha na colet(d)iv(ers)idade: labirinto de espelhos... nas mãos que tecem, nas pernas que se erguem ou bailam. Também o corpo, quando em comunhão com outros corpos, se faz palavra. O corpo que trabalha uma roça coletiva, a canoa ligando aldeias, uma casa comunitária, a cooperativa manufatureira, um sistema de bicicletas públicas, o banco comum de compartilhamento de sementes, a rádio e a TV livres, o faz inspirado e inspirando outros corpos.
A Flor da Palavra é o baile que parte da humilde vida de cada pessoa, de cada grupo que deseja reencontrar-se com pensamentos e práticas que façam sentido porque ligadas à sua própria história, mas que se multiplicam em mais e mais sentidos, porque se comunicam e se enredam com outras histórias também com seus sentidos. A diversidade de sentidos somente pode existir na fraternidade: a atual Amazônia brasileira em 1500 se fazia com cerca de 700 línguas e infindáveis astronomias, botânicas, sexologias, musicologias, economias, artes, mitologias e assim por diante em vertiginoso caleidoscópio de sentidos. Com as estruturas verticais e colonizadoras que desde então vêm sendo impostas, sobraram 120 línguas, e temos a maior parte da sociedade em processo de simplificação e padronização em uma única língua e parcos saberes limitados a reproduzir relações de mando, repressão e exploração. Somos massificados em indivíduos tão iguais quanto isolados e em ferrenha competição. Quanto mais iguais somos, mais fácil é nos controlar, nos explorar ou nos descartar para um exército de mão de obra de reserva.
O capitalismo é um grande fantasma. Quase não existe para além de suas conquistas financeiras e materiais. É pobre de sentidos, possuindo uns quantos valores de acumulação e poder. As suas grandes ilusões civilizatórias estão desacreditadas. Na raiz de sua pobreza de sentidos está a expansão do trabalho alienado que separa o trabalho do lazer e produz capatazes e oprimidos. Seu trabalho não produz sentidos, apenas alimenta o círculo vicioso do "dinheiro-mercadoria-mais dinheiro (d-m-d?)", a roda viva que engole os vivos, e que para se manter exige a expansão permanente, colonizando cada vez mais territórios e aspectos da vida cotidiana de cada povo. Na alienação o trabalhador e a trabalhadora não se realizam, não produzem a si mesmos/as e os seus desejos, pois não têm controle sobre os saberes, instrumentos, matérias primas, o tempo, o espaço e o processo de produção. Mesmo as elites encarregadas de controlar os povos pouco controle têm sobre si próprias: são antes capatazes da missão impessoal e universal da acumulação monetária a qualquer custo. O capitalismo produz coisas e cifrões, oprimidos e capatazes, mas não produz pessoas: apenas em suas brechas resistem as pessoas e os seus sentidos. O capitalismo talvez se desvaneça como um castelo de cartas na medida em que as pessoas se enriqueçam de sentidos e perspectivas com práticas não alienadas. O que restar de sua opulência material deverá ser resignificado, reciclado, lixo urbano que é.
Para tanto é preciso cada pessoa reconectar as suas práticas consigo mesma e com as práticas não alienadas das outras. A Flor da Palavra é a arte de buscar o encontro de si, que se faz a partir das próprias tradições e no trabalho artesanal: trabalho ligado ao "eu", que faz sentido e realiza desejos. É também a arte de partir de si ao encontro dos outros e outras, na confluência de histórias e no trabalho colaborativo: trabalho ligando o "eu" à/o "outra/o", produzindo riqueza de sentidos e desejos (o real e o social não se opõem aos desejos quando há arte e colaboração ? o baile). É recriar a floresta de mundos diversos e fraternos que é a nossa natureza. Processo inverso da construção da cidade industrial que se faz contra a natureza, na instauração de um humano sobrenatural, onde trabalho é martírio para a maioria e prazer é luxo separado do trabalho, e "privilégio" de uma minoria. Hierarquia esquizofrênica em que o homem e a mulher se vêm alienados de si, seja porque consumem desejos que não produziram, seja porque produzem, mas não os seus desejos; e se vêm alienados dos outros e outras, porque produzem e consomem sozinhos e sozinhas.
Nascidos e nascidas na pobreza das grandes vitrines (televisões?) capitalistas, somos a um só tempo reprodução e resistência. Há em cada um de nós algum grau do individualismo competitivo das massas padronizadas e consumistas e do elitismo monopolista dos/as capatazes. Por isso, quando nos buscamos nas outras pessoas, não é apenas a esperança que encontramos. Encontramos também nossos monstros. "O sono/sonho da razão produz monstros" (Goya). Nas outras vemos o nosso próprio automatismo reprodutor das agonias do capitalismo, a pobreza de espírito, as nossas próprias fraquezas e a revolta, a ira que, enquanto formos dominados, tende a se voltar contra os/as nossos/as semelhantes. Com nossas divisões, é o capitalismo que governa. Enquanto competimos, as corporações fortalecem os seus monopólios. Diante dos monstros a tolerância, a paciência a perseverança são temperos para a arte de parir afinidades, encontros de aprendizagem mútua, tecedura com retalhos de vidas autênticas, e por isso mesmo sem perfeição ou perdição plenas. Belezas e feiúras pequenas de vidas entrelaçando-se, trocando saberes e dúvidas, somando táticas, de cujos híbridos se fazem novas táticas.
As possibilidades de ação e sentido das táticas e das pessoas se multiplicam quando elas e eles se combinam. Uma horta comunitária e uma rádio livre que se conectam formam algo que não é apenas uma horta e uma rádio, são já algo mais: prenhe de novas táticas. Um pedreiro e uma poetisa, quando aliados, já não são mais apenas um pedreiro e uma poetisa, são já algo além, e assim nascem as novas pessoas de um mundo de colaboração e diversidade autofecundante. A combinatória de pequenas belezas e feiúras, vista de longe, é o caleidoscópio, o arcoíres, a floresta, a beleza suprema da natureza hoje tão negada. A Flor da Palavra é o encontro das lutas cotidianas de cada pessoa e cada grupo, sem ignorar que somos também frutos da cidade sobrenatural. È assumir nossa condição de inserção na formação cultural padronizada por sistemas escolares e a indústria cultural, de controlados no trabalho alienado, dependentes de impulsos consumistas que nos são implantados desde a experiência estética nos espaços urbanos, mas também nos rurais. É reconstruir o "eu" perdido a partir do espelho do passado. É tecer os "nós" perdido na cidade translúcida, através do reflorestamento de espelhos onde cada um se torna muitos, e todos voltam a ser cada um, caminhando o seu e os nossos caminhos. Construir um caleidoscópio.
Cultivamos a Flor da Palavra em nosso dia a dia, priorizando a revitalização e a invenção dos aspectos de nossas vidas que escolhemos e podemos a cada momento e em cada lugar. Mas de tempos em tempos celebramos a fertilidade de nossa arte através da tecedura coletiva de táticas/metáforas que servem de apoio a essas transformações. "Lutar é criar" (EZLN). As táticas podem ser tanto rituais, quando se fazem numa temporalidade própria, quanto locais, quando em espacialidade própria. Poderão um dia ser sistêmicas, conectando de modo dinâmico tempos e lugares diversos?
Uma metáfora é a "Flor da Palavra", expressão zapatista que liga a noção de florescimento ao conceito maia de "palavra": a "palavra verdadeira" é a que vem do coração. "Verdade" não é onisciência, onipresença e eternidade como no cristianismo e na maior parte da filosofia ocidental. "Verdade" é a auto-expressão sincera em seu tempo e espaço próprios. Daí que a Flor da Palavra seja o nome que damos para a rede: referência à tecedura de instantes, lugares e lutas sinceras, tecedura de mundos com sentidos, pois fruto de trabalhos artesanais e colaborativos. Tecedura de uma colcha de retalhos que são os desejos e limites de cada pessoa ou grupo. É ainda o nome que damos à primeira tática/ritual/metáfora que inventamos: os acontecimentos "Flor da Palavra", que podem ser assembléias, seminários, shows, encontros, oficinas, etc, zonas autônomas temporárias em que se conectam pessoas, grupos, e suas histórias, lutas e trabalhos artesanais e colaborativos, com ênfase na comunicação e solidariedade com os grupos oprimidos. Neles são trocadas sementes para o roçado diário de cada um/a. Já aconteceram Flores em Campinas (SP), São Paulo (SP), Tefé (AM), Brasília (DF), Marília (SP), Cidade do México, Curitiba (PR), Maringá (PR), São José dos Pinhais (PR) e Catu (RN).
Uma tática/lugar/metáfora é o "Caracol". Para os/as maias é, originariamente, um instrumento de comunicação. Recentemente foi resignificado pelos/as zapatistas na construção de lugares que servem à comunicação entre comunidades e municípios autônomos de uma região, permitindo a sua autogestão. Ao mesmo tempo, comunica as regiões autônomas com as redes de comunicação e solidariedade do mundo, privilegiando a conexão com os/as oprimidos/as. Transformamos a imagem dos caracóis zapatistas em mais uma tática/metáfora, que significa o estabelecimento de lugares para facilitar a comunicação e a solidariedade entre histórias e lutas de uma localidade, e destas com histórias e lutas de outros lugares. Temos alguns caracóis, mas por enquanto apenas um batizamos desta maneira. Na verdade, batizamos de "Cacacolteua", pois o "primeiro" caracol está localizado na ilha de Caratateua (Belém - PA). Está sendo construído por mãos e mentes locais e de longe, buscando os caminhos tortuosos da comunicação horizontal transformadora e do trabalho colaborativo em meio à opressão que se vive nas margens de Belém.
Há a tática/ritual/metáfora do "Ajuri", palavra amazônica para "mutirão", muito praticada por indígenas e ribeirinhos quando colaboram em trabalhos comunitários. A Flor da Palavra também pratica o ajuri, quando voluntários unem esforços em ações coletivas. Temos, por exemplo, os "ajuris do caracol" realizados para estabelecer e erguer o Caracolteua. Finalmente, existe a tática/ritual/metáfora "Polinização", talvez a mais singela de todas. Ela usa instrumentos simples chamados "Pólens": vídeo, poema, e-mail, zine, bilhete dentro de uma garrafa ou qualquer outra mensagem que possa ser usada em pequenas fecundações espalhadas nas zonas mais desconhecidas e menos "públicas", nas conexões mais imprevisíveis e menos planejadas da rede-rizoma.
Quem sabe, futuramente, não criaremos táticas/sistemas/metáforas, como por exemplo sistemas de transporte colaborativos, comércio solidário, rizomas de comunicação dialógica, ou de escambo de saberes, sistemas de produção científica colaborativa e popular, ou mesmo de autogestão territorial? Outras táticas/metáforas poderão ser inventadas a partir de nossas próprias e outras tradições. A arte nos unirá na horizontal diversidade.
A Flor da Palavra é a invenção de um rizoma de comunicação e solidariedade, inspirado inicialmente no levante dos povos maias e seu Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), nos movimentos anti-capitalistas simbolizados pela "batalha de Seattle", e tantas outras lutas anti-autoritárias, combatendo não apenas Estados e corporações, mas também os significados, valores e práticas cotidianas que as sustentam. Esta invenção não é o ponto de partida. É um ponto possível de encontros - comunicação e solidariedade - para a revitalização de tradições esquecidas, e a germinação de novas palavras, valores e práticas. É menos um "espaço público" iluminista, com sua transparência e padronização que se pretende universal, e mais a formação de um rizoma, tecedura de mundos, formando o mundo onde caibam muitos. A Flor da Palavra se constrói com arquitetura semelhante à de "favelas": labiríntica, assimétrica, rica de sentidos e surpreendentes passagens, comunicações, conflitos e solidariedades; por isso mesmo, será difícil discipliná-la, controlá-la ou reprimi-la. Não é a formulação de um padrão de luta, mas a arte de enlaçar os existentes em colaboração criativa. Ela se faz por colagens, bricolagens, reciclagens com os lixos urbanos e os adubos dos rios e das florestas. Para conectarmos e reinventarmos os nossos mundos, é preciso caminhar perguntando, escutando e dialogando.
A Flor da Palavra é o encontro das práticas, das lutas reais de cada pessoa e coletividade em seu dia a dia, sobretudo aquelas lutas que sequer chamamos "lutas", e movimentos que não chamamos "movimentos", por não estarem nos manuais e nem nas grandes teorias. Desabrocha na reflexão sobre a prática: mente e corpo em movimento se unificam tal qual a pessoa e sua imagem no espelho. A pessoa e sua imagem revelam-se diversos, invertidos, e desta dança nasce outra pessoa (imaginem a mulher ou o homem diante de um espelho, ao se enfeitarem para a noite). A reflexão sobre a prática não existe para a solidão: ela nasce na palavra falada, na palavra escrita, na palavra cantada. Depois do ensaio diante de nossos espelhos falamos, escrevemos e cantamos entre outras e outros. Desabrocha na colet(d)iv(ers)idade: labirinto de espelhos... nas mãos que tecem, nas pernas que se erguem ou bailam. Também o corpo, quando em comunhão com outros corpos, se faz palavra. O corpo que trabalha uma roça coletiva, a canoa ligando aldeias, uma casa comunitária, a cooperativa manufatureira, um sistema de bicicletas públicas, o banco comum de compartilhamento de sementes, a rádio e a TV livres, o faz inspirado e inspirando outros corpos.
A Flor da Palavra é o baile que parte da humilde vida de cada pessoa, de cada grupo que deseja reencontrar-se com pensamentos e práticas que façam sentido porque ligadas à sua própria história, mas que se multiplicam em mais e mais sentidos, porque se comunicam e se enredam com outras histórias também com seus sentidos. A diversidade de sentidos somente pode existir na fraternidade: a atual Amazônia brasileira em 1500 se fazia com cerca de 700 línguas e infindáveis astronomias, botânicas, sexologias, musicologias, economias, artes, mitologias e assim por diante em vertiginoso caleidoscópio de sentidos. Com as estruturas verticais e colonizadoras que desde então vêm sendo impostas, sobraram 120 línguas, e temos a maior parte da sociedade em processo de simplificação e padronização em uma única língua e parcos saberes limitados a reproduzir relações de mando, repressão e exploração. Somos massificados em indivíduos tão iguais quanto isolados e em ferrenha competição. Quanto mais iguais somos, mais fácil é nos controlar, nos explorar ou nos descartar para um exército de mão de obra de reserva.
O capitalismo é um grande fantasma. Quase não existe para além de suas conquistas financeiras e materiais. É pobre de sentidos, possuindo uns quantos valores de acumulação e poder. As suas grandes ilusões civilizatórias estão desacreditadas. Na raiz de sua pobreza de sentidos está a expansão do trabalho alienado que separa o trabalho do lazer e produz capatazes e oprimidos. Seu trabalho não produz sentidos, apenas alimenta o círculo vicioso do "dinheiro-mercadoria-mais dinheiro (d-m-d?)", a roda viva que engole os vivos, e que para se manter exige a expansão permanente, colonizando cada vez mais territórios e aspectos da vida cotidiana de cada povo. Na alienação o trabalhador e a trabalhadora não se realizam, não produzem a si mesmos/as e os seus desejos, pois não têm controle sobre os saberes, instrumentos, matérias primas, o tempo, o espaço e o processo de produção. Mesmo as elites encarregadas de controlar os povos pouco controle têm sobre si próprias: são antes capatazes da missão impessoal e universal da acumulação monetária a qualquer custo. O capitalismo produz coisas e cifrões, oprimidos e capatazes, mas não produz pessoas: apenas em suas brechas resistem as pessoas e os seus sentidos. O capitalismo talvez se desvaneça como um castelo de cartas na medida em que as pessoas se enriqueçam de sentidos e perspectivas com práticas não alienadas. O que restar de sua opulência material deverá ser resignificado, reciclado, lixo urbano que é.
Para tanto é preciso cada pessoa reconectar as suas práticas consigo mesma e com as práticas não alienadas das outras. A Flor da Palavra é a arte de buscar o encontro de si, que se faz a partir das próprias tradições e no trabalho artesanal: trabalho ligado ao "eu", que faz sentido e realiza desejos. É também a arte de partir de si ao encontro dos outros e outras, na confluência de histórias e no trabalho colaborativo: trabalho ligando o "eu" à/o "outra/o", produzindo riqueza de sentidos e desejos (o real e o social não se opõem aos desejos quando há arte e colaboração ? o baile). É recriar a floresta de mundos diversos e fraternos que é a nossa natureza. Processo inverso da construção da cidade industrial que se faz contra a natureza, na instauração de um humano sobrenatural, onde trabalho é martírio para a maioria e prazer é luxo separado do trabalho, e "privilégio" de uma minoria. Hierarquia esquizofrênica em que o homem e a mulher se vêm alienados de si, seja porque consumem desejos que não produziram, seja porque produzem, mas não os seus desejos; e se vêm alienados dos outros e outras, porque produzem e consomem sozinhos e sozinhas.
Nascidos e nascidas na pobreza das grandes vitrines (televisões?) capitalistas, somos a um só tempo reprodução e resistência. Há em cada um de nós algum grau do individualismo competitivo das massas padronizadas e consumistas e do elitismo monopolista dos/as capatazes. Por isso, quando nos buscamos nas outras pessoas, não é apenas a esperança que encontramos. Encontramos também nossos monstros. "O sono/sonho da razão produz monstros" (Goya). Nas outras vemos o nosso próprio automatismo reprodutor das agonias do capitalismo, a pobreza de espírito, as nossas próprias fraquezas e a revolta, a ira que, enquanto formos dominados, tende a se voltar contra os/as nossos/as semelhantes. Com nossas divisões, é o capitalismo que governa. Enquanto competimos, as corporações fortalecem os seus monopólios. Diante dos monstros a tolerância, a paciência a perseverança são temperos para a arte de parir afinidades, encontros de aprendizagem mútua, tecedura com retalhos de vidas autênticas, e por isso mesmo sem perfeição ou perdição plenas. Belezas e feiúras pequenas de vidas entrelaçando-se, trocando saberes e dúvidas, somando táticas, de cujos híbridos se fazem novas táticas.
As possibilidades de ação e sentido das táticas e das pessoas se multiplicam quando elas e eles se combinam. Uma horta comunitária e uma rádio livre que se conectam formam algo que não é apenas uma horta e uma rádio, são já algo mais: prenhe de novas táticas. Um pedreiro e uma poetisa, quando aliados, já não são mais apenas um pedreiro e uma poetisa, são já algo além, e assim nascem as novas pessoas de um mundo de colaboração e diversidade autofecundante. A combinatória de pequenas belezas e feiúras, vista de longe, é o caleidoscópio, o arcoíres, a floresta, a beleza suprema da natureza hoje tão negada. A Flor da Palavra é o encontro das lutas cotidianas de cada pessoa e cada grupo, sem ignorar que somos também frutos da cidade sobrenatural. È assumir nossa condição de inserção na formação cultural padronizada por sistemas escolares e a indústria cultural, de controlados no trabalho alienado, dependentes de impulsos consumistas que nos são implantados desde a experiência estética nos espaços urbanos, mas também nos rurais. É reconstruir o "eu" perdido a partir do espelho do passado. É tecer os "nós" perdido na cidade translúcida, através do reflorestamento de espelhos onde cada um se torna muitos, e todos voltam a ser cada um, caminhando o seu e os nossos caminhos. Construir um caleidoscópio.
Cultivamos a Flor da Palavra em nosso dia a dia, priorizando a revitalização e a invenção dos aspectos de nossas vidas que escolhemos e podemos a cada momento e em cada lugar. Mas de tempos em tempos celebramos a fertilidade de nossa arte através da tecedura coletiva de táticas/metáforas que servem de apoio a essas transformações. "Lutar é criar" (EZLN). As táticas podem ser tanto rituais, quando se fazem numa temporalidade própria, quanto locais, quando em espacialidade própria. Poderão um dia ser sistêmicas, conectando de modo dinâmico tempos e lugares diversos?
Uma metáfora é a "Flor da Palavra", expressão zapatista que liga a noção de florescimento ao conceito maia de "palavra": a "palavra verdadeira" é a que vem do coração. "Verdade" não é onisciência, onipresença e eternidade como no cristianismo e na maior parte da filosofia ocidental. "Verdade" é a auto-expressão sincera em seu tempo e espaço próprios. Daí que a Flor da Palavra seja o nome que damos para a rede: referência à tecedura de instantes, lugares e lutas sinceras, tecedura de mundos com sentidos, pois fruto de trabalhos artesanais e colaborativos. Tecedura de uma colcha de retalhos que são os desejos e limites de cada pessoa ou grupo. É ainda o nome que damos à primeira tática/ritual/metáfora que inventamos: os acontecimentos "Flor da Palavra", que podem ser assembléias, seminários, shows, encontros, oficinas, etc, zonas autônomas temporárias em que se conectam pessoas, grupos, e suas histórias, lutas e trabalhos artesanais e colaborativos, com ênfase na comunicação e solidariedade com os grupos oprimidos. Neles são trocadas sementes para o roçado diário de cada um/a. Já aconteceram Flores em Campinas (SP), São Paulo (SP), Tefé (AM), Brasília (DF), Marília (SP), Cidade do México, Curitiba (PR), Maringá (PR), São José dos Pinhais (PR) e Catu (RN).
Uma tática/lugar/metáfora é o "Caracol". Para os/as maias é, originariamente, um instrumento de comunicação. Recentemente foi resignificado pelos/as zapatistas na construção de lugares que servem à comunicação entre comunidades e municípios autônomos de uma região, permitindo a sua autogestão. Ao mesmo tempo, comunica as regiões autônomas com as redes de comunicação e solidariedade do mundo, privilegiando a conexão com os/as oprimidos/as. Transformamos a imagem dos caracóis zapatistas em mais uma tática/metáfora, que significa o estabelecimento de lugares para facilitar a comunicação e a solidariedade entre histórias e lutas de uma localidade, e destas com histórias e lutas de outros lugares. Temos alguns caracóis, mas por enquanto apenas um batizamos desta maneira. Na verdade, batizamos de "Cacacolteua", pois o "primeiro" caracol está localizado na ilha de Caratateua (Belém - PA). Está sendo construído por mãos e mentes locais e de longe, buscando os caminhos tortuosos da comunicação horizontal transformadora e do trabalho colaborativo em meio à opressão que se vive nas margens de Belém.
Há a tática/ritual/metáfora do "Ajuri", palavra amazônica para "mutirão", muito praticada por indígenas e ribeirinhos quando colaboram em trabalhos comunitários. A Flor da Palavra também pratica o ajuri, quando voluntários unem esforços em ações coletivas. Temos, por exemplo, os "ajuris do caracol" realizados para estabelecer e erguer o Caracolteua. Finalmente, existe a tática/ritual/metáfora "Polinização", talvez a mais singela de todas. Ela usa instrumentos simples chamados "Pólens": vídeo, poema, e-mail, zine, bilhete dentro de uma garrafa ou qualquer outra mensagem que possa ser usada em pequenas fecundações espalhadas nas zonas mais desconhecidas e menos "públicas", nas conexões mais imprevisíveis e menos planejadas da rede-rizoma.
Quem sabe, futuramente, não criaremos táticas/sistemas/metáforas, como por exemplo sistemas de transporte colaborativos, comércio solidário, rizomas de comunicação dialógica, ou de escambo de saberes, sistemas de produção científica colaborativa e popular, ou mesmo de autogestão territorial? Outras táticas/metáforas poderão ser inventadas a partir de nossas próprias e outras tradições. A arte nos unirá na horizontal diversidade.
Flor da Palavra e Rock na Rua de Tefé
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A palavra sustenta a flor, ou a flor sustenta a palavra?
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