O negro como sujeito e não como substantivo


Por Camila Souza Ramos

Fórum - O tema dessa exposição é “Eu tenho um sonho”. Qual é esse sonho hoje?
Emanoel Araújo - “Eu tenho um sonho” é de um discurso de Martin Luther King, que fala do que ele sonha para os negros americanos, e esse também foi um tema usado pelo Barack Obama na campanha dele, o “We can”, ou “Nós podemos”. A exposição é feita para celebrar a data de 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, e nós pegamos esse tema primeiro por ser Obama o primeiro presidente declaradamente negro na história e isso reflete para toda essa grande sociedade feita a partir da escravidão desde que o negro entrou no novo mundo, na colonização.

Então, nada mais justo do que tomar um tema como esse em um momento em que existe uma série de debates sobre a questão do negro no Brasil. Discute-se a questão da historia da África ser ensinada nos colégios, das ações afirmativas, da igualdade racial, e sobretudo das cotas na universidade. São muito temas que, de uma certa forma, os Estados Unidos resolveram, primeiro porque a abolição americana foi muito cedo, 25 anos antes da do Brasil, e também porque ela foi feita de uma forma menos perversa do que a nossa. Ela estava localizada no sul dos EUA, e a Guerra da Secessão e a Guerra Civil, foram fundamentais para resolver as questões raciais. O que ficou como raiva no sul, de uma certa forma, está sendo resolvido. Coisas que aqui ainda não foram solucionadas, porque aqui se tem uma ideia absolutamente cínica da democracia racial. Essa democracia racial é mentirosa, ela não existe.

Existem todas as prerrogativas perversas de preconceito racial, social, econômico, etc. A exposição é uma alusão a um país que faz parte da diáspora negra e que resolveu essas questões. Resolve-se isso com uma política séria e com uma política do negro como sujeito, e não um substantivo. Desde a época em que o Abraham Lincoln assinou a abolição da escravatura, isso se resolveu inclusive com muitos dos escravos que já tinham fazenda, já tinham emprego, já tinha universidade negra.

Fórum - No Brasil, esse sonho está perto?
Araujo - Eu acho que não. Eu acho que esse sonho está muito longe, primeiro porque é um sonho de Estado, que não se resolve (de uma hora para outra). São políticas públicas que tinham que ser resolvidas. E sobretudo, tem uma comunidade negra que não se mobiliza para mudar tudo isso.

Fórum - Já se mobilizou mais no passado? Por quê?
Araujo - Não, acho que é a falta de orgulho.

Fórum - Por quê essa falta de orgulho?
Araujo - Ainda são resquícios da colonização. O Brasil foi capital do império, então todos estes resquícios permanecem de uma certa forma atuando na sociedade brasileira. A escravidão nunca foi resolvida como deveria ter sido resolvida. Não se resolveu e ficou latente em quem defende a chamada oligarquia brasileira, e fica perversamente perseguindo quem defende os que são afro-brasileiros.

Fórum - Como o museu procura buscar a cultura negra dentro dessa miscigenação cultural que é a cultura brasileira?
Araujo - O Museu AfroBrasil não é um museu de etnologia, nem de antropologia, nenhuma “gia”. É um museu de história, memória, de reflexão sobre a nossa vida, sobre os personagens, a atuação deles, suas vidas, a arte de artistas que foram negros ou não. O museu tem uma reflexão muito mais em cima da sociedade afro-brasileira, mas ele não analisa sob o ponto de vista da antropologia essa questão. A questão é deixar viva certas situações que passam e sirvam como espelho para futuras gerações, de auto-estima, para conhecimento e auto-conhecimento.

Fórum - O público negro vem para o museu? Como o museu faz para se aproximar desse público?
Araujo - O museu tem só cinco anos, é muito jovem. Aos poucos a gente espera que o museu atinja cada vez mais os afro-brasileiros. Muito embora, a gente sente que os afro-brasileiros tem um certo ressentimento com os museus, porque eles estiveram sempre fora deles. Então esse museu é o primeiro em que o negro é o personagem central, mas sob o ponto de vista da contribuição dele à história do Brasil e à identidade nacional. Ele não discute a racialidade de ninguém, ele discute a contribuição cultural dessas pessoas, que foi fundamental para o Brasil, e episódios históricos em que estiveram envolvidos, como a Guerra do Paraguai, a Revolução de 32, a exposição dos holandeses de 1645 de Pernambuco. E também a questão da abolição da escravatura, os artistas do século XVIII, do barroco, a Academia de Belas Artes.

Fórum - A própria cultura negra é muito diversa. Dá para separar hoje em uma cultura negra clássica, descendente direta da cultura africana, e uma cultura negra popular, dos guetos...?
Araujo - A questão é o seguinte: não é que exista diferenças na cultura negra. A cultura negra foi absorvida pela cultura brasileira branca, então às vezes a gente nem sabe que certos sinônimos, por exemplo, são africanos. A gente não sabe que a comida é de origem africana, a gente não sabe as frutas que são de origem africana e isso de tal maneira ficou enraizado na cultura nacional que essas coisas forma absorvidas. Por quê? Pelo simples fato de que perversamente essas coisas todas foram, no século XIX, banidas da expressão “afro-brasileira”. Elas foram absorvidas, mas de certo ponto banidas sob o ponto de vista de sua origem. Então, na cultura, você tem o samba, mas quem é o samba? Samba pode ser Cartola, Vinicius de Morais, Tom Jobim, Carlinhos de Jesus. Genericamente o samba é brasileiro, mas a origem dele é negra. O tango também tem origem negra, o fado também. Mas se você pergunta para o português se o fado é negro, ele vai responder: “não, o fado é português”. Do mesmo jeito se você disser para o argentino que o tango é negro, ele vai dizer que não, que é a milonga que é negra. Assim como aqui tem o samba, a salsa em Cuba. Onde houve essa sociedade negra, tiveram sua contribuição e foram absorvidas. Claro que ainda tem nas festas populares o Rei de Congo, a maculelê, a capoeira, o bumba-meu-boi do Maranhão, que são manifestações populares afro-brasileiras. Algumas, em princípio, eram portuguesas, mas foram absorvidas pela cultura negra, (como) o afroxé, o maracatu de Pernambuco, que é um parceiro do Rei de Congo. Isso é uma manifestação muito antiga, desde o séc XVII. Nesses casos você vê que está muito mais latente essa contribuição negra. Na parte da cultura mais elitista, mais clássica, tem o barroco, tem artistas do barroco que eram negros: escultores, pintores, literatos... A grande poesia brasileira também é negra; o grande escritor brasileiro também é negro, que é Machado de Assis. O primeiro editor brasileiro também é negro, que é o (Francisco de) Paula Britto e faz 200 anos agora. Então, o Brasil está inteiramente crivado por essa cultura negra, ou por personagens negros na história, e que, estranhamente, não estão em nenhum livro da história do Brasil.

Fórum - A história oficial não conta o lado do negro na história...
Araujo -Não conta. Essa é a prova de como o racismo é tão poderoso que consegue minimizar da história do Brasil toda essa contribuição. O museu tem essa função de alertar para essas coisas e guarda essa memória.

Fórum - Os personagens negros da história brasileira imprimiam a identidade negra em suas obras?
Araujo - Não, porque se você pensar que, assim como toda manifestação puramente africana foi banida, qualquer manifestação que tivesse essa (característica) também seria banida. Mas tem coisas muito interessantes. Por exemplo, um pintor negro como o (Mestre) Ataíde pitando uma madona negra no teto da igreja São Francisco de Ouro Preto, que é uma ordem religiosa absolutamente branca. Esta é uma sociedade permissiva, em que o branco pode se dar a esta licença de fazer no teto de uma igreja a imagem de sua mulher como a de Nossa Senhora, e os anjos ao lado, os seus filhos. Mas um negro jamais poderia fazer isso, primeiro porque ele não entraria numa igreja de São Francisco, segundo porque a igreja que o negro pertencia era definida pela Igreja Católica. Ela estabelecia os critério para cada um, então os mulatos eram de uma tal igreja, tal ordem religiosa, os pretos são da igreja dos pretos, os pardos... A sociedade não mesclava as atividades religiosas, muito embora todos os músicos fossem negros.

Fórum - O que é uma contradição muito grande, porque hoje as próprias religiões se cruzam. Tem católico que frequenta o candomblé, por exemplo...
Araujo - Mais ou menos. Hoje começa a ter uma situação muito desagradável de perseguição religiosa por parte dos protestantes.

Fórum - Que tipo de perseguição? O senhor já presenciou?
Araujo - Tem tido perseguição, como eventos na própria televisão que mostram um filho de santo recebendo o diabo. Toda uma encenação absolutamente perversa para recolher essa pessoa da sua religião. Porque não existe diabo de verdade ali, ninguém está possuído por ele. Na religião africana não existe o diabo, não existe o mau no sentido judaico-cristão, e também não existe o pecado, o auto-fragelo. Os orixás estão muito mais ligados à vida, à natureza, ao amor, os deuses tiveram filhos... São pessoas que viveram na terra, ou estão ligados à natureza. Na Bahia, tem uma história de transformar o acarajé, que é uma comida para Iençã, em um “bolinho de Jesus”. Isso já é muito antigo, porque já no século XVII, o Padre Antonio Vieira dizia para as negras: “tirem essas contas que trazeis nos peitos do Rosário”. Ele estava atribuindo um uso de um fetiche de um orixá a Nossa Senhora do Rosário.

Fórum - Ao mesmo tempo em que tem esse rechaço à cultura negra, também tem os brancos que passam a se comportar como negros, seja pela roupa, usando trancinha... por que esse desejo de parte da população branca em imitar os negros?
Araujo - Se você pensar que o Brasil é um país mestiço, é natural... sobretudo um país que, sendo mestiço, é muito fácil se tornar branco. Tem gente que tem avô negro e o netos já nasceu branco. Essa relação de cor ela é diferente dos EUA, onde até a oitava geração é negro. Essa racialidade os brasileiros tem, porque na realidade a ascensão social do Brasil se faz pela cor. Era uma tradição tipicamente brasileira em uma família mestiça, olhar se a criança tem na bunda marcas de Jenipapo, que é uma mancha, para ver o quanto ele tem de sangue negro no corpo.

Fórum - Existe algum aspecto dentro das manifestações cultuais dos negros que é mais sonegado?
Araujo -Em todas. Um país que vai ter em 2012 a maioria negra, veja como ainda não tem escolaridade, acesso à universidade, não tem professor negro na USP, o homem negro ganhando menos que o homem branco, nas novelas as empregadas sendo sempre negras. Quando não tem um personagem que não é empregado doméstico, o ator já sai a questão negra. Ainda são resquícios muito graves de uma escravidão que não foi resolvida. A pessoa diz que não é preconceituosa, mas a empregada é preta. E pergunte se a filha dele pode casar com um negro. A própria televisão já fez enquete: “qual atriz negra poderia beijar um ator branco”, ou qual ator negro poderia beijar uma atriz branca?”. Esse tipo de coisa, aparentemente não existe, mas está aí latente.

Fórum - O senhor fala que o racismo no Brasil está longe de ser resolvido, mas nos Estados Unidos isso já foi resolvido?
Araujo - Não é que já foi resolvido, isso não vai resolver nunca, porque há sempre uma diferença entre um ser humano e outro, mas a questão é das oportunidades e da igualdade. Ou seja, o maior salário da televisão americana é de uma negra, a Oprah (Winfrey). Os Estados Unidos é um país que investe no sucesso. Essa questão está resolvida de muito tempo. Lá tem universidades negras. O Sili College, que foi fundada pelos judeus, e que hoje é inteiramente negra. A Howart University é do século XIX, em plena escravidão já existia universidade. Já existia gente formada como doutores por Harward. Tinha escravos negros com salários, com suas fazendas. É diferente. Tinha um sul escravocrata e o norte não. Houve uma Guerra da Secessão que era para resolver a questão separatista e porque o sul queria continuar sendo escravocrata, porque precisava de alguém para tomar conta da lavoura de algodão. Essa questão do preconceito vai sempre existir, mas vai resolver com a universidade, a educação, com a possibilidade de emprego, e não por pessoas na periferia e nas favelas e com baixos salários.


Camila Souza Ramos

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