A cor sumiu


Edson Lopes Cardoso
edsoncardoso@irohin.org.br

Como se trata de raridade, registramos que na segunda-feira (10.05.2010) editorial da “Folha de S. Paulo” fez alusão a diferenças raciais. O assunto tratado no editorial era recente descoberta de pesquisadores alemães, que afirmaram poder concluir, com base em evidências genéticas, que, entre 80 e 50 mil anos atrás, o Homo Sapiens, nossa espécie, teria cruzado com o Homem de Neandertal.

O editorial conclui afirmando que nós, humanos, somos na verdade formados por centenas ou milhares de outros cruzamentos com diferentes tipos ancestrais e que as diferenças raciais seriam apenas marcas de superfície. Sob a aparência de distintos traços fenotípicos, afirma a Folha, somos todos humanos.

Os termos ‘aparência’ e ‘superfície’, em oposição a uma essência profunda definidora da espécie, são, obviamente, termos de menor valor nessa hierarquização, com a qual o editorial da Folha chama nossa atenção para a irrelevância das distinções raciais.

Essas distinções consideradas “irrelevantes” e “superficiais” vêm sendo sistematicamente omitidas pelo noticiário da grande mídia, com raríssimas exceções. O editorialista da Folha talvez tenha considerado o cruzamento com neandertais, extintos há mais de 25 mil anos, uma temática esvaziada de tensões e conflitos, ao menos daqueles que envolvem a luta política pela manutenção de privilégios que caracterizam a realidade brasileira.

Influenciada por essas posições, a reportagem “PMs são presos acusados de matar mais um moboy” (mesma edição da Folha, p. C1) silencia sobre a cor de Alexandre Santos, executado por quatro policiais militares na frente de sua própria casa e na presença de familiares.

Na presença dos corpos negros sacrificados em todo o país, como sustentar uma argumentação que considera a cor da pele uma distinção irrelevante? Como apagar o fato de que “marcas de superfície” decidem o destino das pessoas?

No dia 24 de maio de 2009, Maxwill de Souza dos Santos, jovem negro de 21 anos, foi assassinado por policiais militares em Brás do Pina, Rio de Janeiro. A reportagem de Rubem Berta e Taís Mendes (O Globo, 26.05.2009, p. 13) não fazia alusão à cor de Maxwill. O fotógrafo Ricardo Leoni, porém, registrou imagem da mãe da vítima, com foto do filho numa mão e cápsulas de balas na outra.

Cristiano de Souza, negro, 17 anos, interno do Educandário Santo Expedito, em Bangu, Rio de Janeiro, foi torturado e assassinado, com a participação de diretores da instituição, em 10 de novembro de 2008. A reportagem de Marcos Nunes (O Globo, 31 de março de 2010, p. 21) nada nos diz sobre a cor de Cristiano, mas o fotógrafo Fabiano Rocha registrou foto da mãe da vítima tendo nas mãos a imagem do filho.

Não sabemos até quando os fotógrafos dos grandes jornais continuarão nos informando sobre irrelevantes marcas de superfície. Há, evidentemente, uma censura que alcançou as palavras, mas ainda não cerceou de todo as imagens.

No raciocínio da Folha, o humano é uma essência, de aparência descartável. O problema é que o racismo considera relevante, na definição do que seja humano, exatamente os elementos da aparência. E foi com base nessas distinções de aparência que nos organizamos como Estado e como sociedade de privilégios desumanos. Silenciar sobre a aparência das vítimas é contribuir para negar o papel decisivo da cor nesses crimes de ódio que se multiplicam em todo o país.

O censo de 2010 inclui a questão sobre cor/raça no questionário universal. A Folha considera essa pergunta irrelevante. A Folha é uma das grandes empresas de comunicação do país. Abra o olho.

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