Uma vez um parceiro meu das antigas aqui de Marília me falou uma frase que eu nunca esqueci. Ele disse: “Mano, o ser humano é tipo um diamante, e você ta ligado que o único jeito de se lapidar um diamante é usando outro diamante!”. Depois desse dia sempre levei comigo esse ensinamento para servir de referência nas correrias em prol da construção de um mundo sem explorados e exploradores. (Mas agora eu vou interromper essa idéia do diamante para voltar nela depois).
Nos próximos seis meses estaremos (eu e o Mc Aranha, do grupo Família Atitude) diariamente à frente de um pólo de cultura dentro do projeto Agente Jovem de Cultura, trazido pela Secretaria de Juventude de Marília. O projeto terá 17 pólos. Cada pólo contando com 30 jovens. Segundo a Secretaria, o objetivo do projeto é formar jovens multiplicadores de várias áreas (teatro, audiovisual, capoeira, dança de rua, questões de gênero, música etc). Nosso pólo é o do hip-hop.
Teremos a oportunidade de nos apropriarmos desse espaço e estar por aproximadamente 480 horas lado a lado com uma rapaziada vinda das mais distantes vilas e favelas de Marília. Mas o mais importante nisso tudo é que eu e o Aranha não vamos cair pra lá enquanto professores. Os manos que estarão lá já trarão consigo a luz e o conhecimento que só os guerreiros filhos de trabalhadores constroem na luta do dia a dia. Nossa função vai ser mesmo sistematizar e organizar a parada. Correr atrás dos materiais, pensar as atividades que faremos, os parceiros que levaremos pra somar e os documentários que exibiremos. Tudo isso pensando em estimular os debates e as discussões que teremos sobre o hip-hop e também sobre a sociedade capitalista.
E o Hip Hop permite isso porque nasceu embaixo do rolo compressor do capitalismo. E a burguesia não contava que entre os barracos de madeira amontoados sem água e luz, as ruas de terra e as vielas escuras brotariam a inquietação, a insubmissão, o raciocínio político e a reflexão (e quem faz parte ou tem algum contato com o movimento hip-hop sabe do que eu estou falando). São os manos correndo pra fazer um vídeo sobre a situação da sua quebrada; é o irmão que trampa de servente de pedreiro até de noite e no domingo pega o caderno e escreve suas letras; é o aluno da escola pública que não lembra de nada que a professora falou de manhã na aula, mas sabe de cor as centenas de versos escritos pelo Eduardo do Facção Central; são os jovens que se respeitam como irmãos mesmo sem se conhecerem direito, somente pelo vínculo do Hip Hop. Enfim, o hip-hop é educação. É auto-educação da periferia. É prática política que educa, organiza e forma intelectuais da nossa classe (ou será que o GOG, o Douglas, o Eduardo, o Mano Brown, o Demis Preto, o Aliado G, o MV Bill, o Sabotagem, o Rappin Hood, o Fran, o Sombra, o Jhonny, o Aranha, o Paulinho Loco e outros milhares aprenderam tudo o que sabem dentro da sala de aula?).
Quando a gente ouve a palavra “intelectual” logo pensamos no apresentador do telejornal, no escritor de livros famoso, no político, no colunista da revista e no empresário bem sucedido de maleta e terno com mestrado e doutorado. E pensamos somente nisso porque querem que pensemos somente nisso. Querem que pensemos que existem pessoas que nasceram para pensar e desfrutar da vida e outras que nasceram para cortar metal na indústria e carregar saco nas costas. Qualquer idéia que fuja disso ou dos assistencialismos para a cidadania que eles nos empurram traz pânico para o sistema. Ou então porque será que grande parte dos jovens saem do ensino médio da rede pública sem conseguir ler e escrever direito? É justamente porque o Estado capitalista quebra a resistência na raiz: a capacidade de articulação dos trabalhadores e seus filhos.
Sismado com essa fita, peguei o dicionário e fui ver o que significa a palavra “intelectual”. Para o dicionário Aurélio, o termo “intelectual” se relaciona com inteligência, e pode ser definido como: “[...] pessoa que se ocupa por gosto ou profissão das coisas do espírito.”. Segundo o mesmo dicionário, “a inteligência distingue o homem do animal.”. O loco! Então, se os manos são seres humanos e se o Hip Hop é o espírito de grande parte desses manos, concluo que os manos são intelectuais.
Bom, quero que essa ironia sirva para que nós nunca esqueçamos do potencial intelectual que temos. Todos nós somos intelectuais e devemos buscar desenvolver nosso raciocínio dentro ou fora da escola, por mais difícil que seja. Só assim não deixaremos que outros falem por nós. O conhecimento liberta e encanta. Comecei a trabalhar com 9 anos, ajudando meu pai na venda de frangos e entregando de bicicleta os pães caseiros que minha mãe fazia. Hoje me preocupo em socializar o pouco conhecimento que adquiri e contribuir para a organização política e cultural da rapaziada do nosso lado de cá. E como me identifico com o Hip Hop e também escrevo meus versos, é com satisfação e ansiedade que espero pelo início das atividades do nosso pólo de cultura. Já imaginou poder problematizar a fundo as questões do Hip Hop, de Marília e do mundo num convívio de 4 horas por dia com 30 jovens intelectuais?
Nunca estamos prontos, e não sabemos de tudo, precisamos dos outros para aprender aqui e ensinar ali. Assim como um diamante que só se lapida com outro diamante, cada mano só vai se lapidar lado a lado com outro mano, até o dia em que brilharemos e caminharemos como um bloco unido de diamantes rumo ao tão sonhado mundo sem classes.
Bráulio Roberto Loureiro, vulgo Neto é militante do movimento hip-hop e Mestrando em Ciências Sociais da Unesp de Marília.
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