Indesculpável


Edson Lopes Cardoso
edsoncardoso@irohin.org.br

Os promotores Maurício Lopes e Marcelo Rovere encaminharam denúncia à Justiça contra quatro soldados da PM paulista que assassinaram Alexandre Menezes dos Santos, no dia 8 de maio. Os promotores argumentam que não se pode dissociar o crime de suas circunstâncias agravantes que envolvem preconceito racial. A denúncia foi aceita por juíza da 1ª Vara do Tribunal do Júri.

Os quatro militares interrogados (Carlos Magno dos Santos Diniz, Ricardo José Manso Monteiro, Márcio Barra da Rocha e Alex Sandro Soares Machado) não souberam precisar o motivo que teria justificado a abordagem violenta e brutal. “Talvez”, declararam os promotores, “pela única circunstância de se tratar de pessoa negra e pobre”. Uma nota de rodapé no texto da denúncia dos promotores explica que o Boletim de Ocorrência registrou a vítima como parda.

Afonso Benites, da equipe de reportagem da “Folha de S. Paulo” (edição de 18 de maio, p. C7) reproduziu importante fragmento da argumentação dos promotores, quando estes chamam a atenção da Justiça para a ausência de registro de abordagem violentamente discriminatória da polícia militar em bairro nobre da cidade de São Paulo. “Aquele” (aquela pessoa branca e rica dirigindo um famoso carro de luxo)pode dispensar placas e nunca será incomodado pela PM:

“Não se tem notícia de que abordagem semelhante se faça por policiais militares no Jardim Europa com aquele que trafegue em uma Lamborghini sem placas. A ação, além de desastrosa, foi movida por preconceito racial e social”.

O fragmento acima foi transcrito da Folha. Na denúncia dos promotores, a última frase é: “A ação, além de desastrosa, foi movida indesculpavelmente por preconceito racial e social.” A diferença é o advérbio (‘indesculpavelmente’) que a “Folha” julgou talvez irrelevante e dispensou.

O ato que não merece desculpa é aquele que não merece perdão, indulgência, absolvição – nem escusa, nem justificação. Está assim no dicionário. A ausência do advérbio, portanto, modifica o sentido de toda a frase dos promotores. Os assassinos de negros em todo o país, com raríssimas exceções, permanecem impunes.

A pele negra, estigmatizada, motivou a abordagem e tudo o mais que se seguiu. Abdias do Nascimento disse isso em carta aberta ao chefe de Polícia do Rio de Janeiro, em 1949: “Dir-se-ia que a polícia considera o homem de cor um delinqüente nato, e está criando o delito de ser negro”. Foi esse o delito, podemos dispensar o “talvez” dos promotores.

Mas você não precisa de uma Lamborghini para circular no Jardim Europa, basta ligar a TV. O que entre nós confronta para valer o processo de desumanização das pessoas não-brancas? A escola? A propaganda? O mercado de trabalho? Os partidos políticos? A polícia, afinal, extrai significados surpreendentes e inusitados da pele negra ou eles circulam livremente em todo lugar?Além de punir severamente os assassinos fardados, devemos refletir sobre as conexões racistas que aproximam diferentes aspectos da vida social brasileira.

Uma última observação sobre muletas inadequadas e portanto dispensáveis, para que não se perca ou dilua o essencial. Algumas expressões utilizadas pelos promotores na denúncia, tais como “preconceito racial e social”, “pessoa negra e pobre”, “jovem pardo, pobre, periférico”, ao invés de agravar acabam por atenuar.

A informação transmitida pela cor negra da pele, ninguém se iluda, é a de que se pode dispor, quem assim queira, quem assim o desejar, da vida desse ser inferior que exibe tão acintosa e provocativamente as marcas de sua inferioridade. Contrariamente, o tipo de relação que se acaba por estabelecer com as muletas indicadas é de outra natureza: bastaria então não ser pobre para ficar livre dos constrangimentos raciais. Ledo engano.

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