Mário Augusto Medeiros da Silva, Doutorando em Sociologia (Unicamp), publicou, entre outros trabalhos,Os Escritores da Guerrilha Urbana: Literatura de Testemunho, Ambivalência e Transição Política (1977-1984), lançamento deste ano pela Annablume & Fapesp.
Trinta e um de dezembro de 2009, noite de virada. As pessoas comemoram, como querem ou como podem, a passagem entre os anos. As imagens são triviais acerca desse evento e compartilhadas, no imaginário coletivo, por quase todos: famílias se reunindo, amigos confraternizando, cidades iluminadas, gente circulando por aí com um sorriso nos lábios. Vez ou outra, pessoas dormindo nas ruas, alguma reportagem sobre os que perderam o rumo de casa (ou que não querem, decididamente, voltar para lá), sobre a solidão nas metrópoles ou sobre aqueles que trabalham nessas datas a que é dado a quase todos o direito de relaxar. O de sempre, quase sempre.
Quem estava diante da televisão, sintonizado na programação aberta, precisamente na Rede Bandeirantes, via a gravação do Jornal da Band, apresentado por Bóris Casoy. Não interessa discutir a falta de opção, gosto ou solidão do telespectador. Inúmeros se encontravam nessa situação. E puderam ver aquele que, de há muito tempo, se embandeirou como um defensor da moralidade pública da classe média, criador e propalador do bordão Isto é uma vergonha!, comentar uma cena trivial, típica de fim de ano: pessoas entrevistadas nas ruas, instadas a desejar um feliz natal, próspero ano novo para a câmera da tevê. Típico.
Uma dupla de garis, vestidos com uniformes laranjas, fazem o que lhe foi pedido. Feliz 2010 etc., dizem, alegres, os companheiros de trabalho, ambos idosos, encerrando aquela parte do bloco. Chamada a vinheta, o âncora do jornal, inadvertido pelo áudio ainda aberto, faz seus comentários sobre a cena: “Que merda, dois lixeiros desejando felicidades...do alto de suas vassouras. Dois lixeiros! O mais baixo da escala do trabalho...”. As imagens correram a internet e podem ser vistas no Youtube (por exemplo, no endereço http://www.youtube.com/watch? v=0H9znNpeFao). No dia seguinte, Casoy, levemente constrangido, afirma no começo do telejornal: “Ontem, durante o intervalo do Jornal da Band, num vazamento de áudio, eu disse uma frase infeliz, que ofendeu os garis. Por isso, quero pedir profundas desculpas aos garis e aos telespectadores do Jornal da Band”. (ver, por exemplo, o endereço http://www.youtube.com/watch?v=_esZYkpcFS8).
Para a emissora e para o jornalista, a história acabava por aí, simples assim. Não para os garis. Ofendidos e humilhados, Francisco Gabriel de Lima e José Domingos de Melo deram entrevista, nos primeiros dias de janeiro, à Folha Online, dizendo como se sentiram ao aparecer na televisão para desejar boa virada no Jornal da Band e como ficaram depois dos comentários de Casoy (ver http://www.youtube.com/watch?v=OoQrkA3oQfQ). A fala de Lima é distintiva: “Fiquei muito feliz de poder falar[...] Pensava que ia fazer uma coisa bonita, falar no Jornal da Band. Prá mim foi uma tragédia”. Os sindicatos que representam os trabalhadores de serviço de limpeza urbana, bem como garis individuais, moveram três ações judiciais contra Casoy e a emissora de televisão, no dia 06/01/2010 (http://entretenimento.r7.com/famosos-e-tv/noticias/garis-movem-tresacoes- contra-boris-casoy-e-band-20100106.html). No dia 03 de março, a ação civil pública foi julgada em São Paulo e ambos, emissora e âncora, foram absolvidos de pagar indenização por danos morais aos garis (http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u701860.shtml). Fim.
As informações acima são notícias velhas. Vejamos outras. Nesta última semana, a Folha de São Paulo divulgou reportagem sobre a garota 23225. A adolescente é uma menina, cuja identidade é preservada nos jornais, em função do Estatuto da Criança e Adolescente, através do número de seu prontuário de internação no Hospital Psiquiátrico Pinel, em São Paulo. Há quatro anos, ela foi levada ali por ser uma garota difícil. 23225 foi considerada “[...] inteligente, agressiva, indisciplinada, sem respeito, fria e calculista”. E por isso, abandonada por 1500 dias (e contando) na instituição (ver: Menina é 'esquecida' no Pinel por 4 anos, Folha de São Paulo, 21/03/2010, Cotidiano, p. C5; http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2103201005.htm). Para acrescentar má sorte ao seu infortúnio, seu caso veio à tona na mesma semana em que se constituiu um júri popular para julgar o caso Nardoni, cuja repercussão ofuscou toda e qualquer outra notícia nos últimos dias – até mesmo de agressões e assassinatos de outras crianças em famílias de classe média.
Mas quem é 23225? De acordo com Laura Capriglione, responsável pela matéria da Folha, é hoje uma garota com quinze anos, cuja mãe, dependente de crack, se encontra condenada a prisão por sete anos, em função de tráfico de drogas. Sobre seu pai, nada consta. A avó materna, responsável pela menor desde a prisão da mãe, não a quer. Desde os quatro anos, a avó já a havia colocado num abrigo para crianças de famílias desestruturadas. Ela afirma não ter condições de cuidar de 23225, pelos motivos que se encontram em seu prontuário. E também por agora ter conseguido um emprego de auxiliar de serviços gerais, que paga R$480,00 e tem carteira assinada. A senhora é categórica: “Não vou pôr a perder por causa dela”. O julgamento moral sobre esta senhora é o que menos importa aqui. Amor filial não é automático. E, ao que parece, um salário mínimo com carteira assinada e benefícios, neste caso, faz toda diferença na balança dos afetos.
Sobrou, então, para o Pinel. Desde 2005, data da internação, é diagnosticado que a menina não possui problema algum que justifique sua entrada ali na sua Clínica de Infância e Adolescência. Segundo o diretor da instituição, o psiquiatra Eduardo Guilherme Guidolin, tem sido feito um périplo através de diversos abrigos municipais para menores, para a acolhida de 23225. Várias instituições de São Paulo e arredores se negaram a recebê-la, onde teria um lugar para morar, possibilidade de estudar e receber atenção psicológica. As alegações são: ou não há vagas ou não é de bom tom receber alguém com “passagem pelo Pinel”. A máquina pública negando a si própria. Em 10 de novembro de 2009, o diretor do Pinel encaminhou ofício ao Ministério Público Federal sobre a situação de 23225, bem como de outros menores que se encontram na mesma situação que ela.
Como sempre pode piorar, no dia 24/03/2010, Laura Capriglione escreve a matéria: “Polícia apura estupro de menina do Pinel” (http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff2403201007.htm). O crime teria sido cometido em fevereiro, por funcionário de segurança, contratado por firma terceirizada, dentro do Hospital Psiquiátrico. Depois de flagrado, o acusado fugiu. E agora o caso corre em segredo de Justiça. Desde então, nada mais foi publicado sobre 23225.
Em que ponto as duas histórias se cruzam? A meu ver, há elementos muito significativos em ambas sobre a maneira como lidamos com as classes baixas, desprovidos, lúmpens, pobres etc. Não é necessário matá-los, fisicamente (como nas maternidades e presídios públicos, que ocuparam os jornais recentemente). Retirar o direito à voz, a possibilidade de se manifestar, humilhar numa exceção permanente, já é um começo bastante eficaz. O objetivo final é sempre dizer: “Você não é humano. Pelo menos, não um humano como nós”. Porque a questão de ser ou não cidadão, nesses casos, é uma balela e nem está em questão. Eles não são. Significam nada, não chegam a esse grau de sofisticação. Antes de tudo, tratam-se os pobres e desvalidos ora como máquinas que limpam dejetos, máquinas que executam tarefas; ora como coisas humanóides (que possuem a nossa imagem e semelhança, mas não são iguais a nós) e podem ser manipuladas ao bel prazer. Alguns, descartáveis desde o nascimento. Outros, ao longo disso que se chama vida. Viver é uma tragédia, um pesadelo desperto numa sociedade que equaliza lixo e vida humana.
A história de Francisco Lima e José Melo é exemplar. Publicamente, nosso defensor da classe média, que desde o começo dos anos 1990 tacha de vergonhosa a vida política e costumeira nacional, expressou o que a grande maioria de nós sentimos ao vermos esses homens e mulheres varrendo as ruas, recolhendo nossos lixos, uniformizados. Há alguns poucos anos, um jovem psicólogo social fez um experimento para sua tese de doutoramento na Universidade de São Paulo. Vestido como gari da USP, durante o dia, varria as ruas do entorno da faculdade onde há anos era aluno. Professores e colegas seus não o reconheciam de uniforme. Ou nem lhe devolviam um bom dia. Quando publicou sua tese e esse aspecto dela veio aos jornais, virou um escândalo. Mas por quê o alarme? É tão desagradável assim escancarar o quotidiano? Se fosse, a emissora de televisão teria demitido Bóris Casoy no dia seguinte, no ar, emitindo uma nota pública em que repudiasse as opiniões do jornalista, que não expressariam as da cúpula da Rede Bandeirantes e seus funcionários. Não o fez. Limitou-se a pedir que ele afirmasse, lendo o teleprompter, que expressou comentário infeliz. Suponho que com alguma recomendação para demonstrar constrangimento, leve. Constituiu advogado junto ao âncora para que se defendesse das ações dos sindicatos e dos garis. E estamos conversados. Abalou a credibilidade de Casoy e do jornal? Não. Porque esse bem, tão perseguido e ostentado por diversos jornalistas e veículos de informação – mesmo quando nunca o possuíram – ao que parece, se baseia em dizer... a verdade, acima de tudo, antes de qualquer coisa, custe o que custar. O raciocínio é simplório, admito: Se Casoy não foi demitido e a rede de televisão não tomou nenhuma outra atitude, ele disse a verdade. Ele tem credibilidade. Que merda, então, dois lixeiros... etc.
O problema é o uniforme, essa roupa de controle, de identificação, inclusive, dos grupos perigosos e que reduz a identidade a cores e tecidos? Não creio. O caso de 23225 pode ser considerado como clássico para qualquer leitor de Michel Foucault ou Erving Goffman, autores de História da Loucura e Manicômios, Asilos e Prisões (ambos publicados pela Editora Perspectiva). Ou qualquer pesquisador/curioso que, estando em São Paulo, um dia vá ao Arquivo Público do Estado e solicite ler qualquer prontuário dos internos do Juqueri, arquivados ali perto da Estação Portuguesa-Tietê do Metrô.
O problema é: o caso 23225 não é literatura das ciências sociais. E, pelo visto nos jornais, não temos hoje intelectuais como Foucault, capazes de liderar movimentos contra as prisões psiquiátricas francesas. Ou uma Nise da Silveira, criadora do Museu do Imaginário. Ou médicos engajados, como na década de 1980, que se dedicaram a promover, no Brasil, a descolonização de internos dos hospitais psiquiátricos (como o Juqueri, por exemplo). 23225 é a atualização do nosso momento presente. Atualização, claro, para pior. Opinião pública (ela existe?) e intelectuais rebaixados. É um número de prontuário, perdido na burocracia do Estado, num jogo de empurraempurra entre a Prefeitura, o Ministério Público, os pareceres médico-legais, abrigos e hospitais. Os únicos posicionamentos claros até agora foram de sua família (que não a quer e não pode assumi-la) e do Pinel (que não possui razões para tê-la sob sua guarda. Presta-lhe, então, deve-se concluir, um favor). Para brincar com os leitores de Foucault, autor de Isto não é um cachimbo, 23225 não é um número. O desafio está lançado.
Pobres e sem fala, oriundos e atolados desde há várias gerações nos patamares mais baixos da sociedade (ou, para lembrar Casoy, nos degraus mais baixos da escala do trabalho) são considerados incapazes. Organismos-máquinas, que a nossa imagem e semelhança estão por aí, executando tarefas. Mas longe de ser como nós. Vez ou outra espanam e se dão ao luxo de pensar, falar, desejar, denunciar. Como podem? Como pôde 23225 querer ser inteligente e insubordinada, demandar afeto e invejar outras crianças que recebiam beijos e abraços de avó e mãe? Como pôde ela, ao ser pega em flagrante na guarita do segurança terceirizado do Pinel, dizer: “Vai, tio, conta que a gente teve relação”. Ela que, para conter seus “distúrbios”, segundo a reportagem de Caprigilione (jornalista, aliás, admirável), é medicada com haloperidol, cujos efeitos colaterais são sonolência, letargia e torpor. Ou seja: a todo tempo, 23225 é mantida fora da realidade. Como pôde ter algum momento de lucidez? Como puderam os garis expressar sentimentos que não combinam com seus uniformes?
Todo e qualquer chavão crítico das ciências sociais, nesses casos, me parece pouco e ineficaz. Todos eles estarão certos e não provocarão nada. Aliás, diria Itamar Assumpção numa de suas canções, que chavão só serve para abrir porta grande. Coisa que nem os garis e nem 23225 conseguirão. De favor, já fizemos muito de deixá-los falar. Não abriremos nenhuma outra porta para eles que não seja de uma outra instituição, outro abrigo ou de uma fila de hospital, segurodesemprego. As portas do cemitério, talvez. Ou de um aterro municipal.
Campinas, 30 de março de 2009
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