Conheça a história de crianças que vivem encarceradas com as mães na cadeia
Elas vivem num mundo sem encantos, risos e estímulos; algumas nunca saíram da cadeia
O telefone de brinquedo anda surrado. Juju não se cansa de ligar para amigos que não possui. A todos – com a vozinha típica das crianças de quase 3 anos – relata sua situação: “Oi, tô presa”. Desde que nasceu, a pequena vive encarcerada, com sua mãe, na Penitenciária Feminina de Cariacica.
POR: VILMARA FERNANDES | VFERNANDES@REDEGAZETA.COM.BR
Uma situação semelhante a de outras dez crianças que moram em unidades prisionais capixabas. Cinco delas estão em Cariacica, Grande Vitória – onde há mais duas mulheres grávidas; outras cinco estão no Centro Prisional Feminino de Colatina e uma na Penitenciária Regional de São Mateus, ambos no Norte do Estado. Elas e suas mães estão sendo identificadas com nomes fictícios para serem protegidas, seguindo o que determina o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Foto: Gabriel Lordêllo | GZ
Detentas da Penitenciária Feminina de Cariacica, com suas filhas, que permanecem com as mães, mesmo dentro da prisão
Tristeza
São crianças que vivem em um mundo sem encantos, gargalhadas, risos e estímulos, onde os bebês não fazem os sons típicos de sua idade e muitos só começam a falar aos 2 anos. Lá o único bicho que existe também vive atrás das grades. Um periquito sem nome que há algumas semanas perdeu o companheiro. “Morreu”, conta Juju.
Na primeira vez em que um cachorro visitou a unidade de Cariacica, num projeto de percepção desenvolvido pela diretoria, foi uma festa, conta a diretora da penitenciária, Mônica Tamanini. “Nunca tinham visto ou tocado um cão”.
Elas passam os dias e noites com suas mães no Alojamento Materno Infantil. Nas celas, dispostas ao longo do corredor, há camas, berços, cortinas nas janelas altas e uma brinquedoteca. Tudo limpo e organizado. Mas as grades, as portas de ferro e a presença constante de agentes não as deixam esquecer que estão em um presídio. “Nem sei como ela aguenta”, diz a mãe de Juju.
O único alívio vem dos banhos de sol, em frente à ala infantil. Ou dos agentes, que não resistem aos encantos dos pequenos e os levam em passeios pelo presídio. Foi assim que Juju ficou popular. Vira e mexe é encontrada em vários setores e já conhece as outras presas. Mas as lágrimas descem quando quer passear e não pode. “Às vezes temos que negar, não é fácil”, conta uma agente.
Todas as crianças nasceram atrás das grades. A maior parte delas são filhas de mulheres que se envolveram com o tráfico. Jovens, com menos de 30 anos, que não chegaram a concluir o ensino fundamental. Com elas as crianças ficam até que sejam levadas por parentes, quando existem parentes ou quando aceitam assumir a guarda provisória.
A Lei 11.942, de 2009, diz que os filhos podem permanecer com suas mães, nos presídios, até os 7 anos. No Estado a política adotada é de que fiquem somente até os seis meses. “Esse não é um espaço adequado ao desenvolvimento infantil”, pondera a diretora Mônica Tamanini.
Abandono
Mas há casos, como o de Juju, em que a permanência acaba sendo prolongada. Sua mãe foi presa após se envolver com o tráfico, no interior do Estado. Hoje faz parte do grupo das mulheres punidas ainda com a solidão e o abandono de suas famílias e companheiros. Sem contar aquelas cujo pai de seus filhos também está preso. Situações que podem levar a criança para um abrigo. “Mas cada caso é único”, assinala a diretora.
Quatro meses é o tempo para que a mãe de Juju deva seguir para o regime aberto. “Optamos por mantê-las juntas para evitar o choque da separação”, explica Mônica. Uma situação sempre traumática para mães e filhos e pontuada por muito choro. Telma, grávida de gêmeas e usuária de crack até ser presa, teme o dia em que terá que se separar da filha que sobreviveu. “Minha prima vai ficar com ela”, conta.
Separação
Na cela ao lado ainda vive Suzana, que há um mês entregou seu bebê de nove meses para a avó criar. Uma criança aguardada, que já tinha um quarto pronto e arrumado, quando uma acusação de homicídio levou sua mãe para a cadeia. “Na hora bate um desespero, mas não queria meu filho sendo criado em um presídio”, diz, sem esconder a tristeza da separação.
Um atitude pouco comum entre as presas, como observa a assistente social Lorena Marques. “Ela pensou no filho”. A maioria luta para permanecer ao lado das crianças por temer que a maternidade à distância a faça ser esquecida. “Sem contar que as crianças são um apoio para cumprir a pena”, acrescenta Lorena.
Quando não são privadas da relação com a mãe, as crianças passam a vida em um universo feminino, sem espaço para a individualidade e cheio de limitações. “Aqui tudo é igual, do cheiro ao uniforme”, observa a assistente social. Suas únicas relações são com estranhos que transformam em família. Os avós de Juju são uma agente e um motorista, ambos funcionários da penitenciária.
Uma situação que provoca distorções ainda mais preocupantes, como destaca Lorena. As crianças passam a ter como referência – resultado do convívio –, as cores dos uniformes dos agentes (preto) e das enfermeiras (branco). “Um mundo preto e branco”, pontua a assistente social.
Quem visita essas crianças se surpreende com o olhar atento, sempre alerta, de quem aprendeu cedo a obedecer. Uma delas – um bebê de nove meses que vivia no presídio de Cachoeiro – impressionou a promotora de Justiça Viviane Pioto, coordenadora da Grupo de Trabalho em Execução Penal (Getep). “Bastava falar a palavra ‘procedimento’ que ele abaixava a cabeça e cruzava os bracinhos”, relata.
A promotora se refere às normas de conduta com os presos, chamada de procedimento. Uma rotina que as crianças aprendem com facilidade e rapidez. Ao som da mesma palavra Juju também coloca aos mãozinhas para trás e abaixa a cabeça. Ou avisa à mãe e às demais presas, quando os agentes se aproximam: “Procedimento”, grita.
Ela sabe até os horários de chegada do carro que traz a comida para o presídio. Atitudes que a pequena Sofia, de um ano e dois meses, já está aprendendo. Algo que assusta algumas agentes: “Que memórias essas garotas terão da infância”?
Liberdade
Nas últimas semanas Juju passa os dias pedindo uma vida longe das grades. “Quero sair daqui”, diz para as colegas de cela, deixando apertado o coração de sua mãe. “Apesar da idade, ela tem consciência de que está no presídio”, destaca a diretora Mônica. A cobrança aumentou desde que a mãe teve permissão para passar uma semana fora do presídio, na casa de amigos de um grupo religioso que as acolheu. A pequena agora deseja o que está fora do seu mundo. Sonha com o que nunca teve: liberdade.
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