Numa sociedade sem vocação da totalidade e que aposta no fatiamento das especialidades, as crianças têm sido julgadas por padrões de produtividade e submetidas à medicamentação
Por: Inez Lemos*
Acredito ser papel dos intelectuais anunciarem as mazelas de seu tempo, como bem fez Roseli Fishmann, professora da Universidade de São Paulo (USP), ao denunciar os perigos que a “geração Ritalina” está sujeita, tendo em vista o aumento do consumo da medicamentação em substituição a processos educacionais mais plenos – uma solução aparentemente confortável para as famílias, escolas e sociedade. Todo educador deve prevenir os pais ao desconfiar que o caminho apontado como saída coloca a saúde do estudante em risco. Ao debater o uso de Ritalina e congêneres, devemos estender o olhar à cultura a que estamos submetidos, e que reforçamos quando exigimos, de forma obsessiva, que os filhos potencializem o desempenho escolar.
Quais as consequências, na saúde psíquica dos filhos, de pais ansiosos por resultados, e que exigem rendimento escolar a qualquer custo? Muitas crianças estão crescendo entre adultos aflitos e estressados. Sociedade ambiciosa, competitiva, crianças inquietas, irritadas, hiperativas. Pesquisas apontam que o consumo de Ritalina e Concerta aumentou 75% entre crianças e adolescentes. O medicamento, composto de metilfenidato, tem sido indicado no tratamento do Transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH ). Crianças indisciplinadas em casa ou na escola, que manifestam algum incômodo ou desajuste, ou não correspondem às expectativas dos pais ou professores, tornam-se candidatas à “droga da obediência”.
A proposta é alertar pais e educadores para a necessidade de ampliar o olhar sobre o sintoma, questionando diagnósticos apressados. Antes de empurrarmos as crianças ao abismo, lembrar que os efeitos colaterais de tais medicações são tenebrosos. Qual o futuro de uma criança que, desde cedo, é submetida a drogas tarja preta que atuam no sistema nervoso central, gerando dependência física e psíquica?
Vivemos num mundo marcado pela pressa e pelo barulho. Muitas famílias adoram levar os filhos para almoçar, aos domingos, nas praças de alimentação dos shoppings – lugar pouco ameno e tranquilo. Muitas casas acordam com a TV ligada em alto volume. Poucos zelam pelo silêncio – cuidado em proporcionar às crianças clima sereno, propício aos estudos e à reflexão. Geralmente, não gostamos de parar o que estamos fazendo para ouvir o filho, acolhê-lo. Infância é lugar desamparado e povoado de fantasmas. Contudo, o que essas crianças estão querendo dizer com as inquietações? Hiperatividade? Que barulho é esse?
Muitas vezes, a criança chega à escola atravessada por conflitos, angústias, pressões. Entram na vida das cobranças despreparadas, desavisadas. São empurradas, sem defesas, à lógica do custo/benefício. Logo soltam o grito de socorro: “Se com vocês o que interessa é obedecer sem questionar, cabe a nós, descontentes, manifestarmos o protesto – seja pela desobediência ou pela inquietação, importa avisar que assim não rola”. Qual a forma exata que uma criança, insatisfeita e incomodada com a sua vida, deve se comportar? Onde que elas estão aprendendo a ser ansiosas e estressadas? A quem interessa a homogeneização, o silenciamento dos incômodos? Será que a mordaça, que antes era imposta pelos governos autoritários, deslocou-se para os lares e escolas?
Além das controvérsias sobre a medicamentação, muitos especialistas questionam a veracidade dos diagnósticos, denunciando a banalização com que são realizados. Será que estamos sofrendo os efeitos de um saber científico que, motivado por interesses econômicos, conspira contra a saúde da humanidade? Uma rede de serviços, orquestrada por um conjunto de iniciativas, aposta, cada vez mais, na produção de diagnósticos que, outrora, eram desconhecidos. Panicados e transtornados, devemos todos exibir a carterinha, a senha de dependentes de drogas lícitas – candidatos a um futuro morto.
Domar a lucidez em troca de uma falsa felicidade, triunfo diabólico dos psicofármacos. Um elogio à loucura, um retorno à nau dos loucos, pintada por Bosch, ao ilustrar os desajustados encarcerados em navios. Recurso medieval no tratamento dos que extrapolavam, fugiam às regras. Tratar todos sob um mesmo diagnóstico, uma mesma química, sem dar ouvidos à “locura” que cada um de nós carrega, é no mínimo perverso.
Quem nos diferencia, nos singulariza, é o sintoma. Ele diz do sujeito – seus anseios, fantasias, frustrações. Sinal, alerta que o corpo emite tentando dizer daquilo que não vai bem. Ele é salvação quando enfrentado com sabedoria e investigadas as razões – diferente de tamponá-lo com medicamentos. “A loucura não está mais à espreita do homem pelos quatro cantos do mundo. Ela se insinua nele, ou melhor, é ela um sutil relacionamento que o homem mantém consigo mesmo.” Assim, Foucault, em História da loucura, rompe o mistério, o obscurantismo que rondava a loucura, tratando-a como manifestação subjetiva. O importante é que investiguemos as doenças e suas metáforas, o que elas representam no mundo atual.
O verdadeiro espetáculo advém dos delírios, quando deitamos e deixamos o pensamento voar, fantasiar. O renascimento rompe com as leis, os dogmas irracionais do teocentrismo. Hoje, contudo, quando o homem é tratado como coisa, não estão nos garantindo grandes vantagens. O poder de manipulação se apresenta em nova roupagem, nova nosografia. O mal não é o fracasso da criança diante do que se espera dela, mas impedir que ela participe do tratamento, entenda o processo, apreenda as fases da vida. Tratar – falar, desvelar a verdade sobre si mesmo. O saber científico produz discursos com efeito de verdade, drogas com promessas de cura. Delegamos à medicina a saúde das crianças – a ela cabe normatizar nossas vidas. Estamos governando os afetos e as emoções como se fossem um fígado, um rim. O olhar técnico impõe sua lógica. Desterritorializados dos sentimentos, ingressamos numa existência artificial.
Discurso médico Será que existe uma ordem maldita na qual devemos nos espelhar ao educar os filhos? Ao incorporar o discurso médico sem questioná-lo, validamos as práticas irresponsáveis do mercado. Zelar pela saúde dos filhos é trabalhoso – demanda dedicação, paciência e esforço. É estender o olhar sobre a família e a sociedade. Desresponsabilizar a cultura – pais, escola, práticas sociais, é, no mínimo, leviandade. Onde há grito e sofrimento, devem-se levar atenção e cuidado. Educar exige implicação na dor do outro, senão transformaremos sintomas em transtornos, doenças crônicas.
Interessa chamar a atenção dos pais e educadores para o fenômeno. Propor que, antes de optar pela medicamentação, que esgotem outros caminhos. Oferecer às crianças oportunidades, espaços onde possam entrar em contato consigo mesmas. Apostar nas múltiplas facetas do ser humano – carregamos uma multidão de interesses e habilidades a serem exploradas. No lugar de posturas desumanas, vivências intensas, consistentes e que honram a aventura humana. O contato com as entranhas, com o âmago, propicia êxtase. Vontade de gostar da vida. Ao acariciar o temor que espreita a infância, aplacamos a insegurança e promovemos apaziguamento. Interpretar os berros com ternura silencia a alma inquieta. Convoca as divindades necessárias, diante do desafio de educar uma criança. Já o barulho promove estresse, inquietação, agressão.
Estamos nos pautando pelo discurso de uma ciência erigida na rentabilidade e que reduz o homem num ser biológico. Fugimos do mal-estar, optamos por tratamentos em que não somos convocados, não participamos do processo de cura. Transferimos aos filhos a mesma postura irresponsável diante das manifestações de sofrimento. Devemos refazer o olhar, inundá-lo de poesia, reformulando posturas e expectativas. Dar tempo às demandas internas. Vida louca, chata, sem sentido. Crianças aborrecidas, rebeldes. Pressa, pressão. O mundo moderno desabou sobre nós murchando o sonho de vida feliz, enfraquecendo a autoridade dos pais e ampliando os focos de violência e epidemias.
Com a sacralização das especialidades, perdemos o elo da totalidade, o gancho com o estranho mundo dos sentimentos. Não há sintoma fora de contexto, pensamento isolado, escolas desconectadas da cultura. A dança é complexa e exige interação de seus pares. Pais, lembrem-se de que a maior conquista do homem é cunhar sua liberdade e autonomia. Com coragem, recusar a barbárie, o olimpo dos tolos – os preguiçosos que seguem pegadas alhures, estranhas. Educar é abrir o coração ao filho, prepará-lo para o salto à cultura, à expansão do mundo. Desobstruir estradas, desmatar veredas. Esperança é crença boa, é escutar a vontade que chega de dentro, conquista necessária.
*Inez Lemos é psicanalista. E-mail: mils@gold.com.br
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