Menos pobres, mais crimes


capitalismoOs dados até aqui apresentados sustentam o diagnóstico de que a dinâmica temporal da violência urbana no Brasil está dissociada da dinâmica da pobreza e da exclusão social. Outros fatores devem ser considerados na explicação do processo de deterioração da ordem pública que nos assola. E o principal deles é a crescente participação dos jovens no tráfico de drogas.
Por: Luis Flávio Sapori

Em um passado recente, quando eram dramáticos os indicadores brasileiros de desemprego e desigualdade na distribuição de renda, igualmente elevados eram os índices de violência. Porém, como em um passe de mágica, acreditava-se que, com a redução da pobreza, a violência também diminuiria, na mesma proporção, pois uma parcela dos brasileiros trocaria o mundo do crime por um emprego e um salário. Porém, o que menos se esperava acabou acontecendo: houve redução da miséria e melhoria do emprego. Mas a violência, em vez de cair, aumentou. O sociólogo Luis Flavio Sapori explica as razões desse paradoxo.
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A sociedade brasileira tem vivenciado, desde o início dos anos 2000, duas nítidas tendências, quais sejam, uma significativa inclusão social e um expressivo crescimento da violência urbana. Contrariamente à percepção de senso comum, menos pobreza, mais empregos, mais saúde e educação, maior acesso ao mercado de consumo não têm desestimulado o ingresso de indivíduos em atividades criminosas.
Os avanços sociais e econômicos alcançados pelo Brasil são bastante expressivos. O PIB trimestral saltou do patamar de R$ 318 bilhões para algo em torno de R$ 1 trilhão, colocando-nos em posição de destaque no cenário internacional. A expansão da atividade econômica refletiu-se diretamente na taxa de desemprego, que despencou a ponto de nos aproximarmos da situação de pleno emprego. Além disso, a informalidade no mercado de trabalho caiu de 56% para quase 49%, comparando-se o período 2000-2010.
A proporção de brasileiros com renda domiciliar per capita abaixo da linha de pobreza também sofreu redução significativa. Em 1999, eram 35% da população e, em 2009, 21%. O fenômeno atingiu as diversas regiões brasileiras, com destaque para o Nordeste. Outro importante indicador social é o coeficiente de Gini, que mede a desigualdade na distribuição de renda. Por mais de três décadas, o coeficiente brasileiro permaneceu acima de 0,6, caracterizando elevada desigualdade social. Desde 2002, entretanto, a trajetória desse indicador tem sido descendente, revelando que tem melhorado, aos poucos, a distribuição de renda no Brasil.
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A vida média dos brasileiros ao nascer, de 1999 para 2009, obteve um incremento de 3,1 anos, passando de 70 anos para 73,1 anos. Esse patamar nos coloca em posição respeitável no cenário internacional. A mortalidade infantil, por sua vez, teve declínio de 29% no período, passando de 31,7 para 22,5 por mil nascimentos. A melhoria das condições de habitação, particularmente o aumento relativo do número de domicílios com saneamento básico adequado, vem contribuindo para reduzir as mortes infantis. O país apresentou crescimento de 9% no total de domicílios urbanos com serviços de saneamento entre 1999 e 2009, o que significa domicílios com abastecimento de água por rede geral, esgotamento sanitário por rede geral e lixo coletado diretamente.
Os avanços são também notórios nos indicadores de educação. A começar da taxa de analfabetismo das pessoas de 15 anos ou mais de idade, que baixou de 13,3%, em 1999, para 9,7%, em 2009. Houve, paralelamente, o aumento dos níveis de escolaridade da população, garantindo-lhe maiores oportunidades no mercado de trabalho. Indicador relevante nesse sentido é verificar se as pessoas economicamente ativas têm uma escolaridade de pelo menos 11 anos de estudo completos, equivalente ao ensino médio, nível que atualmente é exigido para praticamente todos os postos de trabalho no mercado formal. Observa-se que, de 1999 para 2009, a proporção das pessoas economicamente ativas de 18 a 24 anos de idade com 11 anos de estudo quase dobrou, passando de 21,7% para 40,7%.
Nossos indicadores sociais ainda são vergonhosos se comparados aos dos países da Europa ou mesmo de vizinhos na América do Sul. Entretanto, não há como negar que a sociedade brasileira está trilhando um caminho virtuoso no sentido do enfrentamento de suas históricas mazelas sociais, mesmo que a passos módicos.
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Enquanto isso, a violência urbana…
No que diz respeito aos indicadores da violência urbana, a situação se deteriorou consideravelmente. As taxas de homicídios oscilaram ao longo da década, crescendo em um primeiro momento, com leve reversão a seguir e estabilizando-se nos últimos anos. Deve-se considerar, entretanto, que a dinâmica do fenômeno foi muito afetada pela performance do estado de São Paulo. Este foi o único estado brasileiro que, entre 2001 e 2010, apresentou queda contínua da taxa de homicídios, superior a 60%. Analisando-se a taxa de homicídios do Brasil desconsiderando os números de São Paulo, inclusive a população, obtém-se evidência contundente do que realmente ocorreu no país em termos de recrudescimento da violência urbana. A taxa de homicídios apresentou crescimento contínuo de 46% entre o final dos anos 1990 e o ano de 2010. Ela saltou do patamar de 21 homicídios por 100 mil habitantes para 31 homicídios por 100 mil habitantes. Referenciando-se em parâmetros internacionais, pode-se afirmar que a taxa de homicídios no Brasil é bastante elevada. Cerca de 40% dos países têm taxas inferiores a três homicídios por 100 mil habitantes, ao passo que 17% dos países manifestam taxas superiores a 20 homicídios por 100 mil habitantes.
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A incidência de homicídios no Brasil cresceu em ritmo mais acentuado nas regiões Norte e Nordeste. A única exceção é o estado de Pernambuco, que, desde 2007, vem apresentando taxas de homicídios decrescentes. Em ambas as regiões, a taxa de homicídios saltou de 15 para mais de 35 homicídios por 100 mil habitantes, ou seja, crescimento superior a 100% entre 1999 e 2010. Esse dado é importante porque revela uma mudança na dinâmica espacial do fenômeno na sociedade brasileira, sendo que na década de 1990 o Sudeste capitaneou boa parte do recrudescimento da violência urbana.
Para um contingente considerável de jovens, houve melhoria da oferta de emprego e oportunidades de estudo. Porém, apenas políticas sociais não seguraram a criminalidade. Por isso, é preciso uma ação mais enérgica e coordenada do poder público nessa área
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Menos pobres, mais crimes
Os dados até aqui apresentados sustentam o diagnóstico de que a dinâmica temporal da violência urbana no Brasil está dissociada da dinâmica da pobreza e da exclusão social. Outros fatores devem ser considerados na explicação do processo de deterioração da ordem pública que nos assola. E o principal deles é a crescente participação dos jovens no tráfico de drogas.
Os territórios urbanos com maior vulnerabilidade social tornaram-se o locus privilegiado da venda de drogas ilícitas estruturado em redes de bocas, mobilizando contingentes expressivos de jovens que se aglutinam em grupos e gangues rivais, caracterizando um mercado ilícito bastante conflitivo. As disputas por pontos de venda e os acertos de contas mediante o recurso à violência, através da arma de fogo, acabaram por instituir um padrão de imposição da ordem no varejo do tráfico. O ingresso do crack nesse mercado acentuou ainda mais essa violência. Participar do tráfico de drogas pode significar para o jovem tanto a possibilidade da realização de seus desejos de consumo quanto a possibilidade de alcançar respeito, proteção, autoestima, visibilidade perante os outros.
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A outra face desse processo de crescente disseminação da violência é a fragilidade do sistema de Justiça criminal. Se, por um lado, produzimos em maior intensidade indivíduos motivados para o crime, por outro lado, as oportunidades para a efetivação destas motivações permaneceram elevadas ou mesmo foram se ampliando. O contexto de oportunidades da ação criminosa permaneceu favorável considerando a limitação do poder público em impôr limites e custos aos atores motivados para o crime. Pode-se afirmar, em outras palavras, que os níveis de impunidade na sociedade brasileira, se não foram acentuados, pelo menos permaneceram em patamares bastante elevados, impunidade entendida como baixo grau de certeza da punição e não propriamente baixa severidade da punição. Os dados disponíveis indicam que: (a) a proporção de crimes contra o patrimônio não relatados à polícia supera 50%; (b) a taxa de esclarecimento dos homicídios pela polícia não passa de 20%; (c) o tempo médio transcorrido entre a data de ocorrência do homicídio e a data da sentença definida pelo tribunal do juri é de quatro anos.
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Além disso, as políticas de segurança pública têm se caracterizado pela improvisação e pela ineficiência. Planejamento e gasto eficiente dos recursos financeiros não têm constituído procedimentos usuais nas ações de combate à criminalidade. Referir-se a uma história das políticas de segurança pública na sociedade brasileira nas duas últimas décadas, sob este ponto de vista, significa explicitar uma série de intervenções governamentais espasmódicas, meramente reativas, direcionadas para a solução imediata de ocorrências criminais que mobilizam a opinião pública. Tem prevalecido, portanto, a racionalidade do gerenciamento de crises.
Concluindo
O Brasil está perdendo uma oportunidade histórica no sentido da contenção da violência urbana. Os avanços em curso no mercado de trabalho, na distribuição da renda e na redução da pobreza constituem contribuição importante, porém insuficiente, para a efetiva construção de uma cultura de paz na sociedade brasileira.
A consolidação de nossas instituições democráticas e de uma efetiva justiça social depende de nossa capacidade em controlar a criminalidade que vitimiza amplos segmentos da população, em especial os mais pobres. Não há qualidade de vida em uma sociedade que todos os anos coleciona mais de 50 mil vítimas de assassinatos.
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A mudança desse triste quadro exige que a sociedade brasileira transforme a segurança pública em verdadeira prioridade política. Não se trata apenas de alocação de mais recursos públicos para o setor. A tarefa que se apresenta é a reforma do arranjo institucional da segurança pública previsto na Constituição Federal, que se mostra anacrônico diante da realidade atual. Necessitamos de um esforço coletivo similar àquele empreendido para o controle da inflação em meados da década de 1990.

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Luis_Flavio_Sapori_medLuis Flávio Sapori é doutor em sociologia e coordenador do Centro de Pesquisas em Segurança Pública da PUC Minas







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