Racionais Mcs : 10 Anos

'Sobrevivendo no inferno', ícone dos Racionais, faz 10 anos


Ao ser lançado, há dez anos, o álbum Sobrevivendo no Inferno pôs o grupo Racionais MC's e o cenário hip-hop em evidência para o grande público. A música mais tocada do álbum a célebre Diário de um Detento, conforme lembra a matéria abaixo, do portal G1.


Capa do álbum: o hip-hop em evidência

O ano de 1997 já estava chegando ao final. São Paulo e o Brasil ainda amargavam títulos como o terceiro maior índice de homicídios das Américas e uma taxa de desemprego entre jovens da periferia que passava dos 30%. Um habitante do bairro paulistano do Capão Redondo chegava a ter 12 vezes mais chances de ser assassinado do que um morador de outra parte da cidade.

Um cenário não muito diferente do que já existia há um bom tempo, mas, em novembro daquele ano, muitos se deram conta do que realmente significavam esses números. Como se com a força de uma explosão, milhões se voltaram para um álbum chamado Sobrevivendo no Inferno, dos Racionais MC's.

O maior nome do hip-hop no Brasil já tinha quase dez anos de existência, estava lançando o seu terceiro disco e era largamente idolatrado na periferia de São Paulo. Mas agora era a grande mídia, acadêmicos, músicos, gente bem-nascida e desavisados que descobriam o que Mano Brown, Edy Rock, Ice Blue e KL Jay tinham para dizer.

Foi preciso o fenômeno de 200 mil discos vendidos em apenas um mês (um número que mais tarde ultrapassaria a barreira de 1 milhão) para ganharem evidência as letras sobre a rotina de violência em bairros pobres da zona sul de São Paulo, vinda da polícia ou do caminho do crime escolhido por alguns jovens dessa região.

Relato sombrio

Não havia uma embalagem bem-feita ou faixas que trariam conforto e alegria ao ouvinte, com intuito de arranjar um espaço no mercado musical de então. A capa, o título e os climas das músicas mostravam um relato sombrio da vida na periferia paulistana.

"Minha palavra vale um tiro / eu tenho muita munição / Na "queta" ou na ascensão / minha atitude vai além / e tem disposição / pro mal e pro bem / talvez eu seja um sádico / ou um anjo ou um mágico / ou juiz ou réu / um bandido do céu", cantava Mano Brown, entre coros de "aleluia" em Capítulo 4, Versículo 3, a faixa de Sobrevivendo no Inferno em que os Racionais, de fato, começavam a disparar o seu discurso.

Logo, o grupo trazia épicos como Tô Ouvindo Alguém me Chamar, com mais de 11 minutos de duração e sua narração em primeira pessoa a respeito de um homem que questiona sua vida no mundo do crime. "Agora é tarde / eu já não podia mais parar com tudo / nem tentar voltar atrás / mas no fundo, mano, eu sabia / que essa porra ia zoar a minha vida / me olhei no espelho e não reconheci / estava enloquecendo / não podia mais dormir."

A música, no entanto, que fisgou quem ainda não tinha parado para escutar os Racionais foi Diário de um Detento. Co-escrita por Josemir Prado, o Jocenir, um ex-detento do Complexo do Carandiru, a faixa conta os dias que antecederam e o próprio momento do massacre dos 111 presos, na época completados cinco anos do ocorrido, sem deixar espaço para o evento entrar em processo de esquecimento. Jocenir depois escreveria um livro sobre a experiência na cadeia.

A base climática e o clima de suspense por trás da narração de Mano Brown em mais de sete minutos de música se tornaram onipresentes em boa parte de 1998 (quando o disco realmente estourou). Mesmo com o sucesso no "mainstream", a periferia abraçou ainda mais os Racionais, e a coisa mais comum era um carro passar com Diário de um Detento no último volume.

Conhecimentos musicais

No auge da onda, o grupo colocou à prova até os conhecimentos musicais de ouvintes. O grupo começava o álbum com a letra de Jorge da Capadócia, de Jorge Ben, sobre a base de Ike's Rap II, da lenda do soul e do funk Isaac Hayes. Jornalistas descolados falavam de boca cheia que os Racionais estavam, vejam só, sampleando o sofisticado e novíssimo grupo inglês Portishead - que, na verdade, só havia usado a mesma Ike's Rap II na música Glory Box.

No resto do disco, KL Jay e o grupo mostraram sua competência em combinar discurso com atmosferas, ao usar passagens brilhantes da música black dos anos 70, com nomes clássicos como War, Edwin Starr (sua Easin' in serviu para dar o clima de Diário de um Detento), Isley Brothers e Curtis Mayfield.

Foi após Sobrevivendo no Inferno que definitivamente os Racionais ganharam exposição. Tocaram em rádios que não dedicavam espaço ao hip hop. Fizeram videoclipe e entraram na parada dos mais vistos da MTV (cuja festa de premiação foi protagonizada pelo grupo, em uma "cena" com Carlinhos Brown). Medalhões da MPB como Caetano Veloso e Chico Buarque discutiram o "fenômeno Racionais". O mercado descobriu que havia um cenário de hip-hop brasileiro e a cultura dos manos.

Hoje Mano Brown pode dizer que "não tem mais um discurso", como revelado em sua recente entrevista ao Roda Viva, da TV Cultura — mas, com Sobrevivendo no Inferno, ele e o grupo deixaram sua marca como uma das mais cortantes visões do cotidiano brasileiro.





Nenhum comentário: