Texto: Laura Giannecchini
"A Organização das Nações Unidas (ONU) admite que entre 1 e 4 milhões de pessoas são traficadas por ano no mundo. Isso é um absurdo! Se pensar bem, é como se todos os habitantes da Grande São Paulo sumissem em cinco anos." O alerta é de Priscila Siqueira, da organização não-governamental (ONG) Serviço à Mulher Marginalizada (SMM).
A jornalista e militante diz que, de acordo com a ONG Mães da Praça da Sé - que tem como missão encontrar crianças desaparecidas na cidade de São Paulo -, somente na capital paulista 25 pessoas desaparecem por semana. Desse total, 20% são encontradas. Geralmente são idosos e pessoas portadoras de deficiência mental, que saem de casa e se perdem. "Mas, e as meninas e as mulheres? Onde estão?", questiona Priscila. Ela acredita que a maior parte seja vítima do tráfico de seres humanos.
Citando outros dados da ONU, a militante diz que, segundo estimativas do órgão, o tráfico de seres humanos movimente cerca de US$ 12 bilhões anuais no mundo. Seria a terceira atividade ilegal que mais gera lucro no mundo, atrás somente do tráfico de armas e de drogas. Priscila conta que, durante um encontro realizado em 2003 em Washington, que reuniu representantes de 114 países, concluiu-se que em quatro ou cinco anos, se a situação não for revertida, o tráfico de seres humanos será a principal e mais rentável atividade ilegal do mundo.
É considerado tráfico de seres humanos o recrutamento, transporte, transferência, alojamento ou acolhimento de pessoas em situação de vulnerabilidade, que se vale de meios criminosos como ameaças, uso da força e outras formas de coação e abuso de autoridade. Mais de 90% dos seres humanos traficados são mulheres jovens e crianças.
Crime organizado oferece vantagens no exterior para aliciar vítimas
Priscila diz que os aliciadores atraem suas vítimas com promessas de contratos de trabalho que oferecem boas remunerações no exterior, casamentos, melhores condições de vida, alojamento garantido, entre outras vantagens. "A técnica é sempre assim, eles pegam a menina e, quando ela chega ao seu destino, eles apreendem seu passaporte. Ela não fala a língua do país e não pode se defender. A União das Congregações Religiosas Femininas da Igreja Católica, junto com ONU, fez um cálculo que mostra que, para pagar a passagem usada daqui para a Europa e as roupas que a menina 'ganha', ela tem que ter 4.500 relações sexuais. Não dá para ser tudo em um dia, não é? Enquanto isso, ela tem que comer, morar... E tudo isso, quem fornece é o dono. Então, ela vai acumulando dívidas e sendo explorada", diz Priscila.
O Brasil é apontado pela ONU como um dos maiores "fornecedores" de mulheres e crianças para o tráfico de seres humanos para fins de exploração do comercial sexual - o maior exportador de mulheres na América Latina. As mulheres brasileiras mais valorizadas no "mercado internacional", segundo Priscila, são as mulatas, bastante requisitadas na Espanha, Portugal, Itália e Suíça. Atualmente, as mulatas já estão também entre as preferidas dos japoneses e norte-americanos.
Segundo o SMM, um relatório divulgado em fevereiro deste ano pela ONU mostra que, em todo o mundo, existem cerca de 241 rotas de tráfico de pessoas. Priscila explica que "o tráfico, inclusive o interno, sempre segue a rota do dinheiro. Ele tem a dinâmica de ir das regiões pobres para as regiões ricas. Por exemplo, as vítimas vão das regiões do interior do Nordeste, para as capitais nordestinas. Depois, vão para São Paulo. Então, seguem para o exterior. Existe um fluxo desse comércio - porque é um comércio, no qual a pessoa se transforma em uma mercadoria - da região pobre para a região rica".
Para ONU, nenhum país no mundo está imune ao tráfico de seres humanos
Segundo informações divulgadas no site da ONU, na última década, "o problema do tráfico de seres humanos ganhou proporções endêmicas. Nenhum país está imune". Acredita-se que na Europa Central e do Leste, e nas repúblicas da ex-União Soviética, o problema venha crescendo velozmente. Na Ásia, o tráfico concentra-se em algumas cidades do Nepal, de Bangladesh, na Tailândia e Filipinas.
O site da ONU ainda esclarece que o tráfico de seres humanos não se restringe à exploração sexual comercial, mas que muitas crianças são forçadas a trabalhar em serviços árduos e que os homens traficados vão atuar em empregos "sujos, difíceis e perigosos".
A militante da SMM afirma que a prática ganhou a amplitude que tem hoje com o fenômeno da globalização. "O tráfico de crianças e mulheres sempre existiu, assim como o de drogas e de armamento. As famosas polacas, do final do século XIX e começo do século passado, eram judias do leste europeu traficadas. Foram elas que 'atenderam' a elite paulista da época. Só que o tráfico não era tão difundido como hoje. O que a gente diz é que, com a globalização, o tráfico de seres humanos se 'empresariou'. É uma atividade que dá muito lucro. A gente também percebe que existe um envolvimento grande entre o tráfico de seres humanos, de drogas e de armas. Por exemplo, na Venezuela, algumas ONGs dizem que a mesma rota usada para o tráfico da droga é usada para o tráfico de crianças e mulheres".
O tripé "oferta, demanda e impunidade" explica o tráfico de seres humanos, de acordo com Priscila. A militante diz que a miséria, a fome, a falta de educação e de condições de trabalho fazem com que um país oferte sua população para o tráfico de seres humanos.
O problema recai, segundo ela, principalmente sobre as mulheres, por causa de uma questão cultural. Na sua opinião, a mulher ainda é considerada um ser de segunda categoria; sua cidadania ainda não foi alcançada. "Então, são duas as causas fundamentais da oferta: a econômico-social e a cultural", afirma Priscila.
Em relação à demanda, ela diz que o grande "consumidor" das mulheres em situação de vulnerabilidade é o homem. E a legislação pouco rígida para o crime também contribui para o crescimento do tráfico de seres humanos. "O tráfico é uma questão policial porque tem que ter leis, punições severas. Mas não é só isso. Senão, você transforma um problema social em policial. A questão é muito mais ampla. É econômica, cultural e de legislação", acrescenta.
Assunto preocupa governo e sociedade
A discussão sobre o tráfico de seres humanos vem ganhando espaço na sociedade brasileira. Priscila lembra que, há alguns anos, quando deu uma de suas primeiras entrevistas sobre o tema para uma rádio, um dos ouvintes ligou dizendo que ela estava delirando, que o tráfico de seres humanos não existia. "Quando você acha que não existe o problema, não dá pra fazer nada", diz.
Priscila recorda que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no início de seu mandato, declarou-se contrário à prostituição infantil. "Politicamente, o termo que ele usou é incorreto, porque a criança não é 'prostituta', é explorada sexual e comercialmente. Mas isso não importa. O Lula disse, então abriu-se a possibilidade de discussão", ressalta.
Outros pontos positivos citados pela militante são a mídia ter aberto espaço para essa questão; algumas pesquisas terem sido realizadas sobre o tema, como a do Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes (Cecria); o Ministério da Justiça ter criado uma Comissão Parlamentar de Inquérito Mista para investigar casos de exploração sexual no qual haja indícios de envolvimento com crime organizado e ter-se firmado um convênio entre o Ministério da Justiça, a Secretaria de Justiça e de Defesa da Cidadania de São Paulo e a ONU para se instalar um escritório do Programa Global Contra o Tráfico de Seres Humanos da ONU em São Paulo.
São Paulo terá serviço para combater o tráfico de seres humanos
Para Ingrid Cyfer Chambouleyron, coordenadora do futuro Escritório de Combate e Prevenção ao Tráfico de Pessoas para Fins de Exploração Sexual, que deve começar a funcionar em São Paulo até o fim deste semestre, as principais ações do novo serviço será o atendimento às vítimas do tráfico de seres humanos e de seus familiares. De acordo com ela, será montada uma equipe multidisciplinar para prestar atendimentos jurídicos, psicológicos e sociais às vítimas. Além disso, o Escritório irá desenvolver pesquisas sobre o tráfico de pessoas, o que deverá facilitar o trabalho de investigação da Polícia e a formação de profissionais da área.
O serviço, que segundo Ingrid irá contribuir para a diminuição do tráfico de seres humanos, vai contar com o apoio do Consulado dos Estados Unidos e de diversas ONGs. (Fonte: http://www.setor3.com.br/)
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