Redução da idade penal - quem paga, no final das contas?

Dois anos – esta é a diferença que origina a polêmica entre os que defendem a redução da maioridade penal e aqueles que pregam que a idade de início da imputabilidade penal permaneça em 18 anos. Porém, não se trata apenas da simples contagem do tempo: questões muito mais complexas estão envolvidas nesta discussão, que não se esgotaria nem em dois anos de debates.

Recentemente, uma pesquisa encomendada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) Nacional (e cujos resultados foram divulgados no início deste mês) mostrou que a opinião pública está tendendo a defender o rebaixamento da maioridade penal para 16 anos: 89% dos entrevistados querem a redução, de acordo com o levantamento, feito com 1.700 pessoas das classes A, B, C e D em 16 capitais do país, entre os dias 10 e 26 de setembro deste ano. Além disso, 52% das pessoas consultadas se disseram favoráveis à pena de morte para crimes hediondos.

Segundo Karina Sposato, diretora executiva do Ilanud (Instituto Latino-americano das Nações Unidas para Prevenção e Tratamento do Delinqüente), esta alta taxa é decorrente da sensação de insegurança por que passa a maioria da população das grandes cidades. “A sociedade brasileira é vítima de um bombardeio de informações que agravam a sensação de insegurança. Assim, as pessoas tendem a aceitar soluções que parecem - e apenas parecem – resolver o problema rapidamente”, diz a advogada, que é contra a redução da idade penal para os 16 anos. Ela lembra que - de acordo com uma pesquisa conduzida pelo próprio Ilanud em São Paulo, entre junho de 2000 e abril de 2001, com 2.100 adolescentes acusados - apenas 1,6% haviam cometido algum crime contra a vida, como homicídio.

Além disso, do total de crimes cometidos no país, menos de 10% são cometidos por adolescentes, também de acordo com dados do Ilanud. Ou seja, o universo de jovens que cometem crimes é pequeno e, dentro dele, a proporção dos que cometem crimes contra a vida ou hediondos também é pequena. O que ocorre, segundo Karina, é que toda vez que algum adolescente é autor de um crime, a mídia dá ampla cobertura o que, de acordo com a representante do Ilanud, aumenta na sociedade a impressão de que adolescentes cometem muitos crimes.

E, com isso, ganham eco também alguns argumentos a favor do rebaixamento da maioridade penal. Porém, quais são estes argumentos? Para aqueles que defendem essa tese, adolescentes têm cada vez mais cometido crimes hediondos e devem, por isso, ser punidos com mais rigor. Esta é a posição, por exemplo, do presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Francisco Fausto, que defendeu na sexta-feira, dia 14, a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos. Além disso, um argumento fortemente utilizado por quem defende o rebaixamento é o de que jovens de 16 anos de idade saberiam discernir o que estão fazendo, saberiam a gravidade dos crimes que cometem. Foi este o teor de uma polêmica declaração dada pelo Cardeal Arcebispo de Aparecida do Norte (SP), dom Aloísio Lorscheider, na quinta-feira, 13 de novembro. ''Estou de acordo (com a redução da maioridade penal, de 18 para 16 anos), tem que reduzir. Muitos adolescentes sabem o que estão fazendo'', teria dito o Cardeal, segundo notícia do jornal Folha de São Paulo.

ECA x sistema prisional adulto

No entanto, para todos estes argumentos, as entidades que lutam pela garantia dos direitos da criança e do adolescente têm contra-argumentos firmes e numerosos. Um dos mais fortes é o de que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) já prevê sanções adequadas para os crimes cometidos por pessoas entre 12 e 18 anos. Marcus Fuchs, diretor de planejamento da Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi), explica: “O ECA tem mecanismos de responsabilização muito fortes, mais severos inclusive do que o Código Penal aplicado para os adultos. O Estatuto não prevê a impunidade, muito pelo contrário. A Justiça da Infância e da Juventude é mais rápida e eficiente. Por exemplo, se ainda não se tem certeza sobre a culpa ou não de um adolescente, ele fica recolhido por até 45 dias, o que não acontece com os maiores de 18 anos. Faltam à sociedade informações como essa, para que ela possa opinar de forma mais consciente. Se o Brasil respeitasse mais a lei que se tem, acho que as manifestações não seriam tão emocionais, provenientes de raciocínios tão simples”.

Sérgio Soares, coordenador da regional sul da Associação de Apoio à Criança e ao Adolescente (Amencar), faz coro. Segundo ele, “o ECA prevê sanções e medidas para os crimes cometidos por adolescentes. O problema é que a lei não é aplicada como deveria ser. As Febems não fazem a ressocialização do jovem, como demanda o estatuto”. O advogado Ariel de Castro Alves, coordenador do grupo de trabalho para a implementação do ECA da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP, defende que o ECA é, sim, eficaz na recuperação dos jovens. “Isso se o Estatuto for aplicado devidamente. É uma mentira achar que o ECA deixa impune. Ele tem um caráter de educação, de re-inclusão do jovem na sociedade e não de punição pura e simples. Nesta discussão, a sociedade, ao invés de defender que as crianças fiquem mais tempo na escola, tem acreditado que é mais fácil mandá-las mais cedo para a prisão”. Karina, do Ilanud, é taxativa: “Precisa-se implementar efetivamente a lei. Enquanto isso não acontecer, não se pode dizer que ela não funciona. Chega a ser injusto com a legislação”.

Outro argumento forte entre quem é contra a redução da maioridade penal é o de que não se deve tentar um problema apostando na abrangência de um modelo sabidamente ineficiente e falho. “A falência do sistema prisional brasileiro parece um dado da realidade. A estratégia para prevenir a reincidência e garantir a ressocialização dos jovens não deve ser inseri-los neste sistema. A escolha dos 18 anos para início da imputabilidade penal é uma opção da política criminal brasileira. O Estado brasileiro fez esta opção, em que as respostas punitivas aos menores de 18 anos podem ser diferentes. Isso pode se traduzir pela convicção de que podemos oferecer algo melhor para adolescentes, que ainda são seres em formação”, diz Karina. “A Constituição Brasileira é tida como a Constituição Cidadã. Ou seja, ela quer formar cidadãos, e não criminosos. O adolescente é uma pessoa em formação. Devemos, assim, dar prioridade à educação, à ressocialização”, opina o Padre Júlio Lanceloti, membro da Pastoral do Menor, regional SP.

“Acho um erro essa opção [de rebaixamento da idade penal], porque vai-se agravar o problema que se deseja exterminar. Vamos resolvê-lo colocando os jovens no sistema carcerário brasileiro, cujo modelo está falido?”, questiona o coordenador da Amencar, complementando logo depois: “Nessa conjuntura, botar jovens junto com os presos adultos seria expô-los a esse caos, que não socializa, não educa. Os adultos poderiam funcionar como verdadeiros “professores” dos adolescentes”. Ariel, da OAB-SP, complementa esta argumentação: “Se fosse feita esta opção de rebaixar para os 16 anos a maioridade penal, a sociedade escolheria por enviar jovens para um sistema falido, promíscuo, que encerra condições desumanas, onde os índices de reincidência são de 60%. Nas Febems de São Paulo, onde a situação do tratamento dispensando aos adolescentes é uma das piores do país, a taxa de reincidência é de 20%. Há estados em que esses percentuais chegam a 5%”.

Ele lembra ainda que muitos dos jovens que cometem crimes são utilizados, manipulados por adultos. “Isso acontece muito no Rio de Janeiro, por exemplo, onde as quadrilhas de tráfico de drogas utilizam crianças e jovens de todas as idades. Assim, se rebaixarmos a imputabilidade penal para 16 anos, adultos vão se utilizar de adolescentes de 15, 14 anos. Se rebaixarmos para os 14 anos a maioridade penal, vão utilizar crianças mais novas ainda. Se seguirmos esse raciocínio, daqui a pouco vamos ser obrigados a ter verdadeiros “berçários-presídios””. Desse modo, o advogado defende que as penas para adultos que utilizam menores para a execução de crimes sejam mais severas. O mesmo prega Fuchs, recordando que já existe um projeto de lei (PL) que contempla este aprofundamento das penas para adultos que manipulem jovens para que cometam crimes. “Um PL elaborado pelo então senador Aloizio Mercadante prevê o endurecimento das penas para adultos que se utilizarem de crianças e adolescentes para a execução de crimes [o PL 118/2003, do Senado]. Proposições como essa é que têm que ser apreciadas e aprovadas. Porque um adulto desses comete duplo crime: primeiro a manipulação do jovem, depois o crime que o induz a cometer”, diz o diretor da Andi.

Fuchs rebate ainda o argumento de que adolescentes de 16 anos devem ser punidos como adultos porque têm discernimento sobre o que fazem. “Se este argumento fosse utilizado, a minha filha, de três anos – que sabe quando está fazendo alguma coisa que não deveria -, também seria incluída. O que é preciso ver é que os adolescentes são pessoas em formação, ainda estão se formando a personalidade adulta, o caráter. Assim, estas peculiaridades devem se respeitadas e deve-se – justamente porque a pessoa ainda está em formação e, portanto, suscetível a receber estímulos que a tornem alguém mais justo, mais correto – promover exatamente nessa idade os valores que levem à sua ressocialização, à re-inclusão na sociedade. Por isso, o prazo para internação do jovem é de três anos: porque nessa idade este período é bem mais significativo do que para um adulto. É um momento em que muitas mudanças podem ser operadas nos adolescentes, mudanças estruturais”, diz o diretor da Andi.

A discussão muda de foco

Fuchs toca em um ponto que tem sido objeto dos mais recentes debates sobre o tema: o prazo de internação. Como o rebaixamento da idade penal, para ser concretizado, teria que ser alvo de uma ampla discussão no Congresso Nacional – “é cláusula pétrea da Constituição Federal; para mudar, seria necessário convocar uma nova Assembléia Constituinte”, lembra Ariel – a alteração no ECA, que é a lei determinante do prazo de internação dos adolescentes, é vista por aqueles que defendem a redução da maioridade penal como uma das soluções para punir mais severamente.

O próprio governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, apresentou nesta quarta-feira, 19 de novembro, ao presidente da Câmara do Deputados, João Paulo Cunha, três propostas de alteração do Estatuto da Criança e do Adolescente. Uma delas é a de aumentar de três para oito anos a punição para o adolescente que comete crimes graves, como homicídio. No caso de reincidência, esse período subiria para dez anos. O governador não incluiu a redução da maioridade penal no projeto. Uma avaliação seria feita quando o jovem completasse 18 anos. Se estivesse recuperado, cumpriria a sanção em regime semi-aberto; caso contrário, iria para uma penitenciária de adultos, em ala especial.

“Isso que se discute agora, de aumentar o tempo da medida socioeducativa, é um outro modo de promover o rebaixamento da maioridade penal. Tem que haver critérios para isso, os quais ainda não estão definidos. E para isso teriam que ser amplamente discutidos”, defende o padre Júlio Lanceloti. “Acho interessante que o governador de São Paulo – o estado que mais viola o ECA – é quem apresenta esta proposta”, aponta Ariel, da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP. “Acho uma demagogia, um oportunismo. Mas, de qualquer forma, estamos abertos a discutir o tempo de internação e, para isso, estamos convocando as pessoas interessadas para participarem de um debate sobre o assunto nessa sexta, 21 de novembro, às 18h30, na OAB paulista. Adaptações, alterações no ECA até podem acontecer, mas têm que ser amplamente discutidas por especialistas, magistrados e pessoas que atuam diretamente com o assunto”, diz o advogado.

O oportunismo a que ele se refere é o mesmo motivo que muito provavelmente levou o governador Geraldo Alckmin a apresentar sua proposta: o crime bárbaro ocorrido na região de Embu-Guaçu (SP), no início de novembro, no qual dois adolescentes foram assassinados – Felipe Caffé, de 19 anos, e Liana Friedenbach, de 16 anos. A menina foi mantida em cativeiro por três dias, sendo violentada e torturada. O mentor confesso foi o adolescente Champinha, de 16 anos, que executou os crimes com a cumplicidade de mais quatro adultos. O crime – grave e hediondo, sem dúvida – despertou na opinião pública novamente o debate sobre o rebaixamento da idade penal, que, em momentos de surpresa e consternação como este, aparece como a solução simples para um problema complexo. E o fato, mais uma vez, gerou na sociedade a sensação de insegurança sobre a qual comentou Karina, aumentada pela cobertura intensa da mídia.

“Não podemos resolver as coisas de maneira casuística. Essas famílias estão sofrendo muito. Nós temos que ser solidários com esses pais, mas começarmos a procurar e aceitar soluções que parecem rápidas e fáceis é um erro”, diz o padre Júlio Lanceloti. Como as próprias estatísticas indicam, adolescentes criminosos com os requintes de crueldade de Champinha são exceção. Porém, mesmo para eles o ECA prevê sanções e medidas que gerem a punição e a reeducação do jovem.

“A sociedade não conhece direito a legislação prevista para jovens que cometeram crimes e, mesmo assim, pede rebaixamento da maioridade penal. Desconhece que a lei é dura e rápida. Por que a sociedade não se mobiliza para cobrar do Estado educação de qualidade? Criação de espaços de lazer? Por que a sociedade não se indigna com a carência de equipamentos de lazer, saúde, cultura para o período não-escolar das crianças? De acordo com o artigo 227 da Constituição, as crianças e adolescentes devem ser prioridade. Por que as pessoas não cobram, portanto, que elas sejam priorizadas?”, questiona Marcus Fuchs. Perguntas como essas – assim como a polêmica – vão continuar no ar, e só serão resolvidas quando a sociedade der atenção mais aprofundada ao assunto, compreender que punição é mais custosa e menos eficaz do que a prevenção e que não é se cobrando medidas paliativas que vai se resolver um problema estrutural. (Fonte: Revista Terceiro Setor)

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