O movimento negro impulsiona uma luta de classes negra

Escrito por Eduardo Antonio Estevam Santos



No dia 03 de julho, o jornal eletrônico Correio da Cidadania divulgou entrevista realizada com o historiador Mário Maestri, sob o título Estatuto da Igualdade Racial: 'Luta Social ou Luta de Raça?' . A entrevista transcorreu no contexto da aprovação do Estatuto da Igualdade Racial no Senado Federal. Vou resumir minha crítica às posições do historiador em dois pontos: a primeira refere-se à luta antiracista, que, segundo o historiador, o movimento negro teria abandonado, optando pela política de igualdade racial; e o segundo, a equação raça-classe, onde o entrevistado embute a questão racial numa luta mais ampla, contra a exploração em geral (leia-se, contra o capital).



O antiracismo está inserido na luta pela igualdade racial, o que não pressupõe uma igualdade em termos absoluto, e sim uma valoração entre as culturas. Por exemplo, a posição social do candomblé, religião de matriz africana: sua condição é visivelmente de inferioridade em relação às outras religiões, as pessoas a caracterizam pejorativamente de animista, feiticista e diabólica. Esta postura é radicalmente desrespeitosa com os sujeitos que a praticam e essencializa a figura do negro com o mal.



Quanto ao segundo ponto, nota-se que Maestri enxerga na luta geral o caminho para a extinção das explorações, quer seja de classe, sexual ou étnica, equalizando a luta de classes com a luta antiracista. A noção de classe do historiador está presa a uma conceituação ortodoxa eurocêntrica, sem cor e masculina.



Numa formação social estruturalmente racializada como a brasileira, a luta de classes tem cor e se manifesta enquanto tal. Precisamos dar maior importância ao sujeito da classe que nunca foi uniforme e homogêneo, podendo ser negro(a), homossexual, mulher. Nunca existiu uma classe coesa em termos absolutos, pois seus membros não só postulam as normas, princípios e suas resoluções, como também podem postular posições resultantes de suas filiações culturais (étnica, religiosa), de forma que confluem as suas identidades com as organizativas (de classe).



A aprovação do Estatuto não foi festejada por todo o movimento negro. Várias organizações negras se decepcionaram com a não aprovação da demarcação e titulação de terras quilombolas. Esse ponto mexe profundamente com a concentração agrária brasileira, dominada por brancos burgueses. O historiador precisa crer que, na luta pela igualdade racial, pode-se caminhar para uma transição ao socialismo.



Raça, classe e gênero ainda é uma questão-problema para os militantes de esquerda mais herméticos e ortodoxos, que ainda privilegiam o campo econômico como centro da luta. Não se trata de privilegiar a cultura e a identidade em detrimento das questões econômicas, mas de se fazer entender que temos uma sociedade estruturalmente racializada, e que os privilégios de determinados grupos não são apenas de classe, mas também étnicos. A persistência na construção de projetos políticos (de esquerda) universalizantes, uniformes, centralizados, sem atentar para a pluralidade e a diversidade dos sujeitos, só contribui para a manutenção das desigualdades entre os desiguais.



Ao contrário da máxima defendida pelo historiador, a luta pela extinção da sociedade de classe não significa necessariamente o fim do racismo, principalmente partindo-se de concepções mecânicas de classe. Pensa-se que, a um só golpe revolucionário, poderemos pôr fim a um racismo introjetado e arraigado no tecido social, inclusive na mente dos revolucionários e dos intelectuais (muitos ainda duvidam sutilmente da capacidade cognitiva dos negros). O pensamento ortodoxo marxista acredita que as revoluções revolucionam automaticamente a subjetividade, produzindo um novo homem.



A verdade é que os negros não abandonaram a luta de classes. O que fazem os negros(as) no PSOL e no PSTU? O movimento negro é diverso. Os programas políticos "classistas" é que são autoritários e querem nos fazer crer que o racismo é uma mera condição superestrutural. Na visão estruturalista do historiador, a política de cotas é uma estratégia do grande capital. Sua visão pela alto não consegue perceber e visualizar o movimento de democratização dos espaços historicamente reservados aos brancos e às elites que as organizações negras estão promovendo, com as políticas de ações afirmativas.



Privilegia-se a concepção eurocêntrica de luta de classes, deixando-se subjacente a questão racial, enquanto os militantes negros querem fazer entender que a questão racial já existia antes, durante e depois da vigência do capitalismo em países que passaram pela revolução socialista. O malogro da política socialista cubana (socialismo real) veio a público com a divulgação de um relatório (2007), que, para decepção da "comunidade"



negra, revelava que: 68% dos brancos cubanos rejeitavam categoricamente o casamento inter-racial; 58% dos brancos, em 1995, consideravam que os negros eram menos inteligentes que os brancos.



Este abominável resultado estatístico demonstra que a questão racial não é apenas um artifício criado pelo capital. A luta por uma igualdade racial não caracteriza o abandono da luta pelo fim da opressão geral, ela se encaminha em duas frentes a um só tempo: a dos conflitos entre subjetividades e a da luta material. O racismo brasileiro condicionou a forma de organização, produção e participação social. Logo, ele é estrutural e não pode ser dissociado de qualquer forma de luta.



Eduardo Antonio Estevam Santos, coordenador do Núcleo de Estudos Afrodescendentes e Indígenas da PUC-SP, é doutorando em História Social pela PUC-SP. E-mail do autor: eduardoestevame@hotmail.com

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