O uso abusivo de álcool vem aumentando, assustadoramente, entre os adolescentes brasileiros. Segundo Salles (1998), uma pesquisa realizada pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid) em 1997 com estudantes de escolas de Ensino Fundamental e Médio de dez capitais brasileiras, revela que o álcool e os solventes são as drogas mais consumidas pelos adolescentes. “O álcool, considerando-se o uso pelo menos uma vez na vida, é a droga mais consumida em todas as faixas etárias, começando entre os dez e os doze anos” (SALLES, 1998, p. 128). Podemos verificar um grande número de estudos sobre essa problemática na área da Psicologia, Medicina, Educação e tantas outras que buscam entender o difícil processo do abuso de drogas e, mais especificamente, do álcool.
O uso abusivo de álcool é caracterizado pelo forte vínculo com essa substância, o que interfere nas relações intra e interpessoais de quem abusa. Inclui a idéia de uso em excesso, descomedimento e uso indevido. É importante ressaltarmos que trabalhamos com o enfoque do uso abusivo de drogas, o que difere do enfoque do uso de drogas. Para esclarecermos a diferença podemos usar como exemplo a questão da prevenção. Quando o enfoque preventivo é em relação ao uso de drogas o objetivo principal é que a pessoa sequer experimente alguma droga, ou seja, a idéia é propor que o adolescente nunca experimente uma bebida alcóolica, em nenhuma ocasião. O trabalho preventivo ao abuso de drogas, por outro lado, apresenta uma estratégia diferente. Neste enfoque o que se pretende é educar o adolescente para que esse não faça uso abusivo de uma droga, como por exemplo, ficar embriagado numa festa.
É sabido que a maioria dos adolescentes não usa drogas ilícitas, como a maconha e a cocaína, e pesquisas brasileiras, como as realizadas pela Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal Paulista (Unifesp), revelam que as drogas legais, como o álcool e o tabaco, são as mais consumidas nesta faixa etária. O departamento de psicologia desta Universidade, ao fazer um levantamento em dez capitais brasileiras no ano de 1997, constatou que o álcool é a droga mais amplamente utilizada entre os estudantes do Ensino Fundamental e Médio, sendo que 65% dos alunos pesquisados já consumiram essa droga pelo menos uma vez.
Ao contrário das drogas ilícitas, o primeiro contato que a maioria dos adolescentes tem com o álcool é dentro de casa, sob o olhar complacente da família, que aceita e tolera esse tipo de substância, passando a imagem de que o álcool, quando “devidamente” utilizado, tem boas funções, como promover o encontro social ou o relaxamento após um dia estafante. O problema é que esse uso nem sempre é devido e o exemplo exibido não é o da taça de champanha para brindar o ano novo ou o de um copo de chope no final de semana, mas de doses diárias para “esquecer” dos problemas ou ficar “um pouco mais alegre”.
A idéia de fazer do álcool um aliado do prazer lícito não é atual, mas data da Antigüidade, mais especificamente visível no Império Romano. Havia, nessa época, uma tendência aos prazeres e excessos, como por exemplo o uso abundante do vinho (ideologia báquica), representando pela figura do deus Baco (da Mitologia Grega), deus do prazer e da sociabilidade. Numa sociedade em que o prazer não era menos legítimo do que a virtude (representada por Hércules), o vinho ocupava um lugar privilegiado, ainda que seus efeitos nocivo já fossem percebidos: “O banho, o vinho e Vênus consomem o corpo, mas são a verdadeira vida” (provérbio espartano). Havia muitas reuniões, inclusive no interior das casas, para se beber em homenagem a essa divindade, o que ritualizava a sociabilidade e o prazer de beber.
As imagens báquicas certamente não tinham sentido religioso e místico, mas também não eram decorativas: afirmavam a importância da sociabilidade e do prazer e conferiam-lhe uma garantia sobrenatural; era uma ideologia, uma afirmação de princípio. (ARIÉS, 1990, p. 188)
Esse “princípio” parece permanecer em algumas falas da nossa sociedade e dentro de algumas famílias, ainda que inúmeras transformações tenham ocorrido nesses dois mil anos. É o caso, por exemplo, das propagandas de bebida que exaltam o prazer de beber e as diversas possibilidades que dele se derivam. Parece-nos, no entanto, que a simples proibição da veiculação de propagandas não garante que o álcool deixe de ser usado abusivamente pelos jovens pois, como vimos, isso está arraigado em alguns princípios “herdados” heteronomamente pela sociedade atual. Pensamos que há a necessidade de primeiramente entender o que o jovem pensa sobre o uso abusivo de álcool, qual a sua concepção sobre esse fato, onde está pautado, enfim, tal comportamento.
Os adolescentes que bebem demais enfrentam uma série de riscos, que variam de ferimentos acidentais a morte por envenenamento alcóolico. Um fator importante que pode ser observado entre os adolescentes que usam abusivamente bebidas alcóolicas é o aumento nos comportamentos de risco pessoal e social. Por comportamento de risco pessoal entendemos aquelas práticas que podem causar danos físicos e/ou morais ao adolescente. Por extensão, o risco social são as conseqüências sociais que tais atos podem causar como acidentes, agressões, doenças e até a morte.
Ivankovich (2001) em pesquisa com adolescentes verificou que o uso abusivo de álcool, além de diminuir o prazer sexual, faz com que eles tenham menos cuidado nas relações sexuais. O pesquisador constatou que dos 42% de jovens que mantêm relação sexual depois de beber, 13% não usam a camisinha freqüentemente, expondo-se, assim, aos riscos das DSTs, incluindo a Aids e gravidez não planejada.
Em se tratando de analisar os “prejuízos sociais” que as drogas ocasionam no indivíduo, as pesquisas revelam que o álcool mais uma vez se destaca, comparado ao tabaco, à maconha e à cocaína. Por “prejuízos sociais”, os estudos reconhecem as dificuldades nas relações sociais do indivíduo na família, no trabalho e na escola. (p.33)
Esse mesmo autor afirma, ainda, que estudos têm demonstrado que o álcool é a droga cujo uso prolongado provoca mais problemas de saúde como gastrite, hipertensão arterial, cirrose hepática e distúrbios neurológicos.
Outro fato bastante comum são os acidentes de trânsito, na maioria das vezes envolvendo vítimas, com adolescentes que dirigem embriagados. O uso abusivo de álcool faz o adolescente sentir-se, muitas vezes, onipotente, o que o leva a adotar posturas de risco, como correr excessivamente, dar “cavalos de pau”, derrapar com o carro, tirar “rachas”. As bebidas alcóolicas estimulam a produção de betaendorfinas (dopaminas e analgésicos naturais do organismo), responsáveis pela sensação de euforia, saciedade e poder. Já a embriaguez e a dificuldade de discernimento, que aparecem junto com o quadro de agitação, são conseqüências da depressão do Sistema Nervoso Central, também provocada pelo álcool.
Ao ser metabolizado, o álcool transforma-se em acetaldeído, que tem forte ação sobre os neurotransmissores, prejudica o aproveitamento das proteínas e interfere no DNA, material genético das células. Mas não pára por aí. Compromete, ainda, a coordenação motora e libera emoções reprimidas ao derrubar o superego, nossa censura interna. (TIBA, 1999, p.118)
Os riscos e as conseqüências do uso abusivo de álcool na escola relacionam-se à queda acentuada no desempenho escolar. Adolescentes que bebem demais ausentam-se com maior freqüência das aulas perdendo a totalidade do processo pedagógico. Aqueles que conseguem freqüentar as aulas apresentam sonolência, lentidão e dificuldade para entender o que o professor diz. Algumas pesquisas, ainda não confirmadas mas dignas de atenção, apontam para danos cerebrais (no hipocampo) causados pelo uso abusivo de álcool envolvendo o aprendizado e a memória. Segundo Herculano-Houzel (2002), neurocientista brasileira, o hipocampo é o local do cérebro onde a memória é formada e depois distribuída para o resto do cérebro, onde é guardada. Danos no hipocampo poderiam prejudicar a formação de novas memórias o que atrapalharia muito as novas aprendizagens.
Acreditamos que a entrada (e permanência) no mundo das drogas não é uma questão que se dá ao acaso, ao contrário, é produzida de alguma maneira, diariamente, talvez pela ordem social vigente (que adota uma visão simplista do adolescente como consumidor), pelos modelos sociais, pela construção da moralidade prejudicada por uma sociedade consumista e individualista ou uma mistura desses fatores.
Um grande número de teorias atuais sobre o uso abusivo de álcool por adolescentes acredita que a maioria dos adolescentes que se iniciam no uso de álcool o fazem por pressões externas, pressões estas vindas do próprio grupo que podem ser diretas, através de frases, ameaças, ironias ou de forma indireta, através de sutilezas como olhares reprovadores, escassez de convites para participar das atividades do grupo, preconceitos.
Segundo Bossa (1998), nos grupos
Ocorre um processo de superidentificação maciça, onde todos se identificam com cada um. Estas afiliações estão a serviço da segurança emocional e, por isso, o grupo adolescente pode ser facilmente induzido a identificar-se com promessas mágicas de valor e continuidade, e ser manipulado dentro de contextos eticamente duvidosos. (BOSSA, 1989, p. 270)
A mídia é um bom exemplo de pressão externa no que se refere a manipulação da opinião dos adolescentes. Fica claro que a veiculação atual das empresas de bebidas alcóolicas, sobretudo as cervejarias, tem como foco principal o público adolescente. A estratégia tem sido a de promover eventos culturais, esportivos e musicais a fim de relacionar a cerveja aos jovens; além de tentar vender uma imagem positiva dessa bebida chamando a atenção para o “baixo índice” de teor alcóolico na sua constituição (em torno de 6%).
Segundo um estudo realizado pelo Cebrid (Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas) em 1999, ao lado das propagandas de bebidas alcóolicas, os principais fatores que levam o adolescente a beber abusivamente são o incentivo da sociedade e dos grupos para que as pessoas bebam em situações sociais e a facilidade de menores adquirirem bebidas em supermercados e lojas.
No entanto, o fato da mídia desse setor ser apelativa, não justifica isoladamente o uso abusivo de álcool pelos adolescentes. Apesar de todos os fatores que possam levar os jovens ao abuso, não é possível atribuir única e exclusivamente aos fatores externos a responsabilidade pelo problema, pois estaríamos subestimando a capacidade do adolescente de decidir sobre si mesmo.
O que normalmente acontece é que o adolescente pode encontrar nas drogas, e mais especificamente no álcool, a identidade que busca nesse período da vida. Os grupos acabam se formando levando em conta algumas condições: aqueles que transam e aqueles que não transam, os que estudam e os que não estudam, os que fazem uso de bebidas alcóolicas e os que não fazem e assim por diante. Segundo Blackson e Tarter (1994), o uso de álcool e outras drogas acaba sendo o fator determinante na identificação e união dos adolescentes em grupos.
Fazer uso abusivo de bebidas alcóolicas representa, muitas vezes, a entrada no mundo dos adultos. Dessa forma, beber, fumar, transar, funcionam como referências aos adolescentes que estão passando por um período de confusão de papéis.
Segundo Erikson (1972) essa confusão está relacionada a definição da identidade que se configura em três áreas básicas: a identidade sexual, a profissional e a ideológica. Dentre essas áreas, a ideológica é a que está mais diretamente relacionada ao nosso estudo, ainda que não possamos pensar nesses itens isoladamente no comportamento do adolescente, uma vez que esse é uma pessoa integral. No entanto, a identidade ideológica refere-se aos posicionamentos que o adolescente, em permanente reconstrução interna, deve tomar frente ao mundo. A construção da identidade envolve diversos fatores como a personalidade individual, a consciência subjetiva, as relações sociais e os fatores externos. Dessa forma, o adolescente se autodefinirá através da interação entre esses fatores, sendo todos igualmente importantes para posteriores decisões. É justamente neste momento de tomada de posições e decisões que o adolescente pode “ escorar-se” no álcool ou nas drogas em geral, associando uma fragilidade (disponibilidade) interna e possibilidades (reforços) externos.
Segundo Osório (1989) há dois grandes equívocos relacionados ao uso de drogas pelos adolescentes:
1) Por parte dos próprios adolescentes, a ilusão de que as drogas são sinônimo de liberdade ou livre expressão, quando na verdade essas escravizam e submetem seu usuário aos interesses, por exemplo, dos traficantes.
2) Por parte dos pais, que pensam que ao usar drogas os filhos estão protestando ou desafiando a moral doméstica quando na verdade os estão imitando. Pais que fumam, bebem ou fazem uso indiscriminado de tranqüilizantes ou outras drogas, estão transmitindo aos filhos a mensagem implícita de que as drogas têm sua função no “mundo dos adultos.”
Com tais considerações não se está simplesmente procurando inocentar os adolescentes ou incriminar os pais pela incidência, reconhecidamente cada vez maior, das toxicomanias em geral entre os jovens, mas antes buscando assinalar que uma abordagem compreensiva do uso de tóxicos na adolescência não é possível sem incluir, ao lado dos estudos das motivações conscientes e inconscientes dos jovens, a avaliação correta do papel dos pais e da sociedade na gênese e manutenção do problema. (OSÓRIO, 1989, p.44)
Buscar explicações plausíveis para o uso abusivo de álcool na adolescência requer esses mesmos cuidados: observar e entender as motivações conscientes e inconscientes do adolescente, assim como analisar o papel dos pais e da sociedade como um todo. As pesquisas que abordam esse tema precisam investigar esses fatores, dando ênfase a um ou outro, mas nunca negligenciando a importância de cada um deles na definição do comportamento de beber abusivamente.
Por essa razão estamos empreendendo um estudo que foca um desses fatores: o raciocínio moral dos adolescentes que fazem uso abusivo de álcool, ou seja, investigamos um fator intrapsíquico do adolescente (sua moralidade) que, no entanto, é construída através de sua interação com o meio em que vive. Nossa pesquisa tem como objetivo principal buscar respostas e contribuir para a problemática em questão. Posteriormente, divulgaremos os resultados obtidos.
NOTAS
1. Doutoranda em Educação pela Unesp (Marília). Esse artigo é parte de nossa pesquisa sobre o raciocínio moral de adolescentes que fazem uso abusivo de álcool, desenvolvida sob a supervisão do Dr. Raul Aragão Martins (Unesp/Ibilce).
Artigo de Rita Melissa Lepre - Psicóloga, Mestre e Doutora em Educação pela Unesp Docente universitária no curso de Pedagogia
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