As cores da África-Brasil


por Michelle Amaral da Silva
Colaboradores: Augusto Juncal

Pedi dois copos. Enchi o meu de cerveja, e deixei o outro vazio junto à garrafa. Não demorou muito para que um jovem se aproximasse da minha mesa

Pedi dois copos. Enchi o meu de cerveja, e deixei o outro vazio junto à garrafa. Não demorou muito para que um jovem se aproximasse da minha mesa

Augusto Juncal

Atravessando uma ponte sobre um esgoto, cruzando uma larga avenida confusa de carro e de gente, sob um sol quente que nuvem nenhuma amenizava, do outro lado da avenida eu avistei o começo de Thokozo. Só mesmo um olhar atento, de corte de navalha, para delinear com clareza cirúrgica, e de claridade de céu africano, a confusão da avenida que passava paralela à Thokozo, e a própria confusão do township aglomerada na sua porta de entrada.


Sua porta de entrada era um imenso portão metafísico que sinalizava: você está entrando no township de Thokozo. Talvez seja bem-vindo. Talvez não. Depende de quem você seja e do que você quer aqui. Nesse twonship não há pacotes turísticos. Se é isso que você procura, dirija-se a Soweto. Hambakahle.


Towship, uma intradução. Uma condição humana materializada em... bairro? aglomeração? gueto? favela? periferia? cidade-satélite? campo de concentração? De quem? Dos brancos? Dos capitalistas? Dos brancos e capitalistas? Dos negros e capitalistas? De quem? Township é uma intradução porque é cidade-satélite, é periferia, é favela, é gueto, é holocausto. E se é preciso buscar as causas, as conseqüências estão ali. Sem esforço nenhum para a percepção. Mesmo para as mais embotadas.


Passei por aquele imenso portão, portão para iniciados, com a segurança de quem está com o passaporte carimbado com visto de entrada. Sibusiso era meu passaporte com visto de entrada. Negro e morador local. Com ele entrei. Havia outros motivos, outras razões para minha segurança. Uma confiança em algo que havia em mim, que naquele momento me era obscuro. E que ainda não tenho identificado. Que ainda é negativo de foto não revelada.

Quando entramos em Thokozo havia muita música. Vários bares, várias músicas. Em um deles identifiquei Zola. Noutro, Hip Hop Pantsula. Tuks. E em outro, o gospel da Rebecca. Pensei no Brasil. Vivemos num país onde a mídia tenta banalizar todas as coisas: a política, a sensualidade, a sexualidade, o afeto, os sentidos diários da vida.


Einstein explica

De São Paulo a Johannesburg tudo me pareceu a mesma realidade reproduzido-se a si mesma. Mas os townships eram novas realidades que começava a conhecer. Estava em Thokozo, e, incrível, estava em Guaianazes. Poderia estar. Como sou do muito pequeno e seleto grupo que sai da universidade contemporâneo de Einstein e não mais de Newton, aceitei, sem problemas a possibilidade de meu corpo único, ocupar dois espaços ao mesmo tempo. Mas claro, nada se repete. Nem o Sol, nem a miséria. Todas as misérias são una, e são cada uma, uma.


Debaixo daquele Sol e diante daquela expressão da pobreza, eu me perguntei: “Como é possível uma militância política divorciada dos códigos simbólicos, presentes todo o tempo nos cotidianos?”.


A vivência nos centros e nos bairros periféricos de nossas cidades, debaixo dos viadutos e dentro de guetos, revelam-me imagens que antes eu nunca vi. Não poderia ver. Imagens do abandono e da fome que transcendem o corpo físico e o texto específico dos atores. Será que a questão é só a falta de dinheiro ou de trabalho? Será que são esses itens que movem um povo a revolucionar sociedades como as nossas?


Penso que a exclusão social, se é que posso usar essa expressão sem a explicar, sugere outras condições humanas, que estão dentro dos sentimentos, dos gestos, do ser e estar na vida desprovida. Estes contatos diários com o lixo, os cheiros que exalam dos esgotos, a angústia da sobrevivência, os medos de não amanhecer, enfim... parecem inscrever formas de sentir no mundo não só desprovido, mas sem qualquer alento, sem qualquer esperança. A única maneira de estar vivo é na alegria, na criatividade da alegria... e aí a mídia pega pesado... e de todos os lados. Por que vamos acreditar na contaminação, se a nós é dado perceber um cotidiano de modo subjetivo? E a maioria dos militantes de esquerda? ... Que tão-pouco se conhecem a si mesmos? Pouco se miram ou fingem em si (sem o saber), um outro personagem, fora, externo ao seu, para explicar, para representar, uma condição que nem sempre “conhece”, ou não a sente...de um Outro?...Talvez por esta razão estejam cansados, ausentes, entregues.


Meandros próprios

Vou me aprofundando ruas adentro e vou pensando: “Quem vive em São Paulo pode viver em qualquer cidade do mundo”. Inverdade! “Quem anda com uma certa segurança de si em Capão Redondo, Jardim Elba, Glicério, e Gato Preto, não tem porque temer as ruas de Johannesburg. Nem dos townships.” Inverdade! Os acúmulos da miséria têm meandros próprios de culturas e materialização local que uma mente forasteira pode não perceber. Não sentir.


Em São Paulo, a pobreza faz privado um espaço que é público. Sempre que passo muito próximo a um morador de rua, tenho a desconcertante impressão que estou entrando numa casa sem ser convidado. Mas eu, ali, em Thokozo, queria fazer público um espaço que era privado. Queria fazer minhas, as ruas para as quais eu era estranho. E pior que estranho, um branco para eles.


Thokozo e todos os townhips de África do Sul eram dos negros. Deles somente. Eram espaços privados. E eu queria me apropriar deles. Não. Na verdade queria ser apropriado por eles.


Manifestei meu desejo por uma cerveja bem gelada. Sibusiso me deixou na casa de sua irmã. Uma irmã de pouco e curto inglês. O inglês era uma condição sócio-educacional. Às vezes, tinha a impressão de que entendia o que ela me falava em zulu. E respondia. Muitas vezes, acertei na reposta.


Uma cerveja, please

Meu amigo me deixou em casa e foi visitar uma velha tia. Quis ficar e quis tomar cerveja. “Você não pode sair só. Se quiser tomar uma cerveja, minha irmã vai com você. Você compra e volta para beber aqui em casa. Não quero que você sofra nenhuma agressão verbal. Ou mesmo física.” Disse e foi na direção da casa de sua tia, sua irmã foi arrumar o quarto em que eu ia dormir, e eu fugi para o barzinho mais próximo.


Andei por duas, três ruas, seguido por olhares que não soube identificar. Mapeei quatro ou cinco botecos. Escolhi o mais cheio de pessoas e de música. Entrei. Pedi uma Castle no balcão. Um balcão protegido por grades. Todos os bares eram assim: te serviam por trás de grades. Apenas um espaço aberto para a passagem do dinheiro e da cerveja. “Uma Castle, please.” Não tinha. “Heinenken? No. Eu quero south african beer.” “Ah! Hansa.” “South african?”, perguntei. “South african.” “Ok. Hansa.”, então. Ele trouxe, me cobrou e eu pedi dois copos. “Ngiyabonga”, agradeci dizendo obrigado em zulu. Ele respondeu e sorriu. Me sentei, enchi o meu copo, e deixei o outro vazio junto à garrafa.


Não demorou muito para que um jovem se aproximasse da minha mesa. De pé, com seu copo de cerveja na mão, falou pra mim. Eu não entendi. Mas vi a agressividade do seu tom, e seus olhos quase imóveis, fixos sobre mim. O rapaz do balcão intercedeu falando alguma coisa que também me escapou dos sentidos. Senti que chamava o outro à atenção. O rapaz à minha frente respondeu pra ele, e tornou a me falar. Todos no bar olhavam. Posso ter um problema sério agora, pensei enquanto mantinha meu olhar firme no olho do rapaz. “Igama Iami ngu Augusto. Ngubami igama lakho?” (Meu nome é Augusto. Qual o seu?). Senti um vacilo de confusão no olhar. Não dei tempo e estendi a mão, dizendo: “Unjani?” (Como você está?). Seu olhar era menos inquisidor, e até vislumbrei, com um pouco de esforço, um sorriso zulu no fundo de suas pupilas negras, para as quais eu olhava intensamente.


Sem me responder e sem me estender a mão, perguntou: “Uphumaphi?” (De onde você é?). “Brasil”. E ele falou mais. Mas minha cota de zulu tinha acabado. Tinha na manga apenas mais uma frase para uma urgência e fui logo desembolsando ela: “Ngisagala ukufunda isiZulu. I speak isiPortuguese and isiEnglish.” (Apenas comecei a aprender zulu. Falo português e inglês). Soltei meu melhor sorriso. Agora sim, seu olhar tinha vacilado bastante. Era a hora do golpe final: “I don't undersand what you said. But if you are inviting me to drink a beer with you, let me invite you to drink a beer with me” (Não entendi o que você falou, mas se você me estiver convidando com uma cerveja, deixa eu convidar você com uma).


Enchi o copo vazio, que aguardava sua hora. Ele recebeu o copo. “Brasil? Ronaldinho!”. Bati a mão no peito da camisa que vestia e disse: “Ronaldinho no! Corinthians!”. E aqui começou uma amizade construída a partir da desconfiança e em segundos. Tinha agora um novo carimbo no meu passaporte: “Augusto, Igama Iami ngu Bhekithemba”. Disse e me estendeu sua mão imensamente negra. Estendi-lhe, outra vez, minha mão marrom. Da cor do apartheid do meu país.


Augusto Juncal é integrante da torcida organizada Gaviões da Fiel e do Coletivo de Projetos Internacionais do MST.


PARA ENTENDER

Township – Durante o apartheid racial da África do Sul, townships eram cidades-dormitório da periferia onde moravam negros e negras. Para ir trabalhar nas grandes cidades, precisavam “passe”. Com o fim do apartheid racial, permaneceu o apartheid econômico e social. Hoje as negras e os negros pobres continuam a viver nos townships.


Zola, Hip Hop Pantsula, Tuks e Rebecca são músicos sul-africanos

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