Cartola ou a linguagem das rosas





Escrito por Maria Clara Lucchetti Bingemer

Tudo e todos fazem centenário neste mágico ano de 2008. Também Cartola, Agenor de Oliveira, carioca nascido em 1908 no bairro mais do que carioca do Catete e fundador da Estação Primeira de Mangueira, glória absoluta do carnaval carioca e do samba brasileiro. E, mais importante, autor de "As rosas não falam" e de inúmeros outros sambas de impressionante beleza.

Agenor pequeno ainda, a família pobre passou por dificuldades financeiras consideráveis e teve de se mudar para o que então era um começo de favela no morro da Mangueira. Ali, Cartola encontrou Carlos Cachaça, com quem trocava sambas quando não trabalhava de servente de pedreiro, usando um chapéu coco para proteger o cabelo do cimento que caía. E imediatamente veio o apelido: Cartola.

Em 1928, o bloco por ele reunido de amigos que encontrou no morro fundou a Estação Primeira de Mangueira, a verde-rosa, nome e cores escolhidos por Cartola, que compôs também o primeiro samba, "Chega de demanda". Começava verdadeiramente sua carreira de sambista, sob as cores da Estação Primeira, grande amor de sua vida. Nos anos 30, teve canções gravadas por nomes ilustres como Chico Alves, Mário Reis, Sílvio Caldas e Carmem Miranda.

Mas durante a década de 40 Cartola sumiu de circulação. Viúvo, teve depressão braba com a morte da mulher Deolinda. Combalido, pegou meningite e quase morreu. Foi encontrado lavando carros por Sérgio Porto, o imortal Lalau, que o resgatou e o devolveu à sua vocação. Levou-o ao rádio, incentivou-o a compor novos sambas e o colocou de novo nos ouvidos e coração dos brasileiros, como representante máximo do samba.

Foi aí que Cartola encontrou Dona Zica, viúva como ele e como ele amante do amor. Casaram e foram muito felizes. Sob a inspiração de Zica, compôs seus mais belos sambas, impregnados de uma poesia profunda e sofisticada. Para quem só tinha o curso primário, a poesia de Cartola é um fenômeno que ultrapassa a simples e direta compreensão.

Ah, senhores, é obstinada a musa, entrega-se a quem quer e só aos que elege. Assim foi com Cartola, Agenor de Oliveira, servente de pedreiro e pouco letrado. Foi-lhe dado conhecer os segredos da poesia e o enredo das palavras. Sob a inspiração de seu violão, falava tudo: homens, mulheres, natureza, cidade e rosas. Mas as rosas não falam, não é isso que Cartola disse em seu imortal samba?

Pois bem, se como dizia Gertrude Stein "uma rosa é uma rosa é uma rosa", a partir de Cartola as rosas falam, sim, senhor. Falam e dizem coisas das quais até Deus duvida. O ouvido de poeta de Cartola, banhado pelo amor de Dona Zica, escutou a linguagem das rosas. Linguagem não feita de palavras, mas de cheiro, de odor, de perfume roubado da amada, falando dela e só dela.

Linguagem maior se quer? Que linguagem? Que palavras? Se o próprio do poeta, mago das palavras e da linguagem, é decifrar segredos que ninguém conhece e decodificar linguagens para todos desconhecidas? Se o poeta, mais que tudo, entende de amor e as rosas só disso podem falar, pois beleza e amor são intimamente aparentados?

Pois perfume é linguagem sim, e das mais elaboradas e mais eloqüentes. E é isso que diz Cartola, contradizendo-se poeticamente, após afirmar que "as rosas não falam. Simplesmente as rosas exalam o perfume que roubam de ti." A escrita das rosas, a fala das rosas, é o perfume da amada que deixa rastro e a tudo faz cheirar bem. Perfume aparentado ao que a pecadora que invadiu o banquete do fariseu espargiu sobre os pés de Jesus de Nazaré.

Assim falam as rosas, como ensina mestre Cartola. Sem pedir licença, com a linguagem que bem desejam. Que pode não ser na forma de palavras, mas de perfume. Do outro lado da vida, Cartola não se queixa mais às rosas, pedindo-lhes explicação para a dor e o sentimento do mundo. Para ele, as rosas falarão eternamente e jamais se calarão. Amém!

Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio e autora de "Deus amor: graça que habita entre nós", e outras obras.

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