Estatuto da Igualdade: impasses no Movimento Negro



Por Valdisio Fernandes*

Concessões ilimitadas de parlamentares negros e de partidos da base governista - com o apoio de algumas organizações negras - levaram à aprovação na comissão especial da Câmara de um Estatuto da Igualdade Racial esvaziado de suas propostas fundamentais(1). Sob a justificativa de constituição de um marco legal que representaria o reconhecimento da desigualdade racial no Brasil, aprovaram um documento de sugestões ao Estado Brasileiro.

O ministro Edson Santos liderou a comemoração na comissão do acordo com a bancada ruralista, capitaneada pelo DEM. A aprovação da “unanimidade”. Reconheceu ainda com regozijo, em declaração a imprensa que o grande avanço do texto é que ele não vai gerar conflitos. O Senador Paulo Paim, autor do projeto do estatuto original contemporizou: “Projeto bom é o projeto aprovado (...) estamos aprendendo a escolher entre o ideal e o possível (...) O Estatuto da Igualdade Racial não é o fim, mas o começo de uma trajetória de políticas públicas para igualdade racial de forma quantitativa e qualitativa”.

Não basta a constatação da desigualdade racial histórica existente no país. O efetivo reconhecimento do racismo deve levar a superação dele com o estabelecimento de mecanismos e ações eficazes para a redução da desigualdade racial.

Acreditamos que o Estatuto da Igualdade Racial não é o começo e muito menos o fim, de nossa luta na sociedade civil pela extinção do racismo.

Compreendemos que movimento social negro é o centro de acumulação política do povo negro. Mas, compreendemos também que a recuperação do projeto do Estatuto original, sua reapresentação no Congresso em momento adequado e a aprovação de seus eixos fundamentais significaria um marco na consolidação de conquistas e na afirmação de políticas públicas para os negros e negras.

“O movimento negro tem experimentado uma ascensão contínua, na fase de ressurgimento das organizações sociais após o golpe militar de 1964. Esse crescimento político-organizativo e da capacidade de mobilização permitiu também um significativo avanço no terreno institucional com a obtenção de diversas conquistas: O reconhecimento pelo Estado na constituição de 1988 da existência das comunidades quilombolas e do direito á posse e titulação dos seus territórios; a aprovação da Lei 10.639 que incluiu no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira"; adoção de medidas de ação afirmativa e a adoção de políticas específicas – mesmo ainda limitadas – voltadas para o povo negro. Todavia, nesse processo muitas lideranças do movimento passaram a assumir cargos e posições no parlamento, em secretarias, autarquias e na administração pública, secundarizando a atuação nas organizações negras, assimilando muitas vezes o discurso oficial do Estado, desenvolvendo políticas conciliatórias, de contenção das pressões sociais, de diluição das contradições de raça e classe. O enfrentamento dos meios de cooptação do Estado brasileiro, a luta política e ideológica contra a elite racista e burguesa tem uma intensidade crescente dentro do movimento negro. A dimensão dessa disputa travada em seu interior, coloca para o movimento o desafio de dar continuidade a seu avanço histórico mantendo a autonomia, e a orientação estratégica da acumulação política na organização do povo negro ou reduzir seu objetivo à integração inter-racial subordinada”(2).

O curso atual das negociações na Câmara e posteriormente no Senado aponta para a aprovação definitiva de um Estatuto mutilado que causa frustração e indignação em segmentos expressivos do povo negro. Esse rumo conduz provavelmente a rejeição desse instrumento institucional tornado inócuo e aprofunda uma divisão no movimento negro.

É imprescindível o estabelecimento de um espaço aberto de debates com as lideranças, intelectuais e organizações negras com a suspensão da tramitação do Projeto do Estatuto e a reabertura do dialogo entre nós. O CONNEB - Congresso Nacional de Negras e Negros do Brasil pode constituir esse espaço, fazendo também um chamamento às personalidades expressivas e reconhecidas da comunidade negra nacional para a incorporação nessas discussões, a exemplo de Sueli Carneiro, Edson Cardoso, Luiza Bairros, Edna Roland, Petronilha Silva, Cida Bento, Jurema Werneck, entre outros.

Precisamos pôr um limite às concessões à direita conservadora e racista. Definir uma proposta amplamente aceitável de negociação para a aprovação do Estatuto. Esse processo não substitui a necessidade de deflagração de um amplo processo de mobilização e debates do povo negro.

*Valdisio Fernandes é Coordenador Geral do Instituto Búzios.

(1)O que ficou de fora.

Saúde: A identificação da raça/cor em documentos do SUS, que serviria de base para traçar políticas públicas específicas; Educação: Criação de cotas em todas as universidades públicas brasileiras e nos contratos do Fies; Quilombolas: Remanescentes de quilombos teriam a propriedade definitiva das terras ocupadas; Mercado de trabalho: O Estado poderia realizar a contratação preferencial de afro-brasileiros no setor público e incentivar medidas semelhantes nas empresas privadas. Em uma licitação, o critério de desempate poderia ser o fato de empresas terem ou não ações afirmativas; Meios de comunicação: Filmes, peças publicitárias e programas de tevê teriam no mínimo 20% de afrobrasileiros.

* O Fundo de Promoção da Igualdade, que custearia as despesas com as políticas definidas, já havia sido retirado do projeto.

(2)Fernandes, Valdisio. “A Luta Pela Hegemonia – Uma Perspectiva Negra”. Salvador, Instituto Búzios, 20 de Novembro de 2006.

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