A banalidade do mal


O que leva agentes do Estado a executar de forma tão natural meninos negros? O que os motiva? Por que se sentem autorizados a cometer estes crimes? A autora reflete sobre racismo institucional e a execução sumária de adolescentes negros no Brasil.
Ana Paula Maravalho, Conselheira Gestora do Observatório Negro. Mestre em Direitos Humanos pela Universidade de Paris X, Nanterre
Carlos Rodrigues Júnior, 15 anos, Denis Henrique Francisco dos Santos, 13 anos, e Djair Santana de Jesus, 16 anos, não se conheciam. As circunstâncias de suas mortes, no entanto, uniram estes adolescentes pelos laços de um parentesco que remonta à origem do Brasil, país que, em décadas nem tão remotas assim, se orgulhava de se autodenominar “o país do futuro”. Os adolescentes, respectivamente residentes em Bauru (SP), Recife (PE) e Salvador (BA), foram assassinados pela Policia Militar de seus estados, nos meses de dezembro de 2007 e janeiro de 2008. Tinham em comum, além dos sonhos característicos desta faixa etária, o fato de serem negros e pobres, de estarem desarmados e de não oferecerem nenhum risco à policia no momento em que foram abordados.

Carlos Rodrigues Junior estava em sua residência, na madrugada do dia 15 de dezembro de 2007, quando seis policiais militares (o tenente Roger Marcel Vitiver Soares de Souza, 31 anos, o cabo Gerson Gonzaga da Silva, 42 anos, e mais os policiais Emerson Ferreira, 35 anos, Ricardo Ottaviani, 34 anos, Maurício Augusto Delasta, 33 anos, e Juliano Arcangelo Bonini, 34 anos) entraram em seu quarto e procederam a uma sessão de tortura que, ao fim de 30 choques elétricos, levaram o adolescente à morte.

Denis Francisco dos Santos foi espancado por alunos da Policia Militar (Baltazar Arantes da Silva, que confessou ter dado uma gravata no adolescente, e mais Ganduso Pereira Diniz, Frederico Renan de Albuquerque Lima e Eduardo de Souza Xavier, suspeitos de omitir socorro à vítima), e morreu por asfixia, em conseqüência dos golpes recebidos, quando participava de uma prévia carnavalesca no bairro do Cordeiro, em Recife, acompanhado de seus familiares, no dia 13 de janeiro de 2008.

Djair Santana de Jesus foi baleado pelas costas, arrastado e novamente baleado na cabeça em seu bairro, no Pelaporco, em Salvador, em uma ação da Policia Militar, em 15 de janeiro de 2008. Nos três casos, a veemência dos protestos das familiares das vitimas (todas mulheres) que presenciaram os assassinatos - denunciando in locco e depois, corajosamente, nos meios de comunicação – é contestada pela fraca argumentação policial de “fatalidade”, nos casos de Carlos e Denis, e de “reação à prisão”, no caso de Djair – apesar do tiro nas costas. Para as mulheres que denunciam os crimes, resta a incômoda situação de testemunha ameaçada, ou ainda de vitima da violência e achincalhe policial, como no caso de uma das tias de Djair, baleada nas nádegas. A morte dos três adolescentes confirma tristemente as estatísticas do Mapa da Violência 2006, que situa o Brasil em 3° lugar no assassinato de jovens, num ranking de 84 países. Dentre os jovens assassinados, jovens negros têm um índice de vitimação 85,3% superior aos jovens brancos. Além disso, o estudo aponta que o crescimento do numero de homicídios nas ultimas décadas, no Brasil, explica-se exclusivamente pelo aumento de homicídios contra a juventude: enquanto as taxas de homicídios entre os jovens aumentaram de 30,0 para 51,7 (por 100.000 jovens) no período de 1980 a 2004, neste mesmo período as taxas de homicídio para o restante da popula ção diminuíram de 21,3 para 20,8 (por 100.000 habitantes). Outro dado importante é que a faixa etária em que ocorre um significativo aumento no numero de homicídios é a de 14 a 16 anos.

O Mapa da Violência é um estudo que se propõe a conhecer e dimensionar a violência no Brasil, oferecendo dados que possibilitem a orientação de políticas públicas destinadas ao seu enfrentamento. Neste sentido, as informações sobre a importância do fator racial na vitimação de jovens, aliadas à constatação da magnitude do impacto do homicídio de jovens no aumento de homicídios da população como um todo e, finalmente, da tendência de diminuição da faixa etária destes homicídios, não deixam dúvidas quanto ao caráter genocida em relação à população negra que a violência vem assumindo ao longo das ultimas décadas no Brasil.

Esta reflexão é de importância capital para os estados onde ocorreram os homicídios dos três adolescentes. Em lugares onde a polícia distorce suas funções para cometer um crime bárbaro – assassinar um adolescente indefeso, através de choque elétrico, armas de fogo ou com as mãos nuas – é preciso reconhecer que há uma inversão da ordem que ameaça a sustentabilidade moral do poder. Torna-se, então, imperioso responder a questões tais como: o que leva agentes do Estado a executar de forma tão natural meninos negros? O que os motiva? Por que se sentem autorizados a cometer estes crimes?

Segundo o Mapa da Violência, Pernambuco, em 2004, ocupava o 1° lugar entre os estados brasileiros com maior taxa de homicídios da população total, e o 2° lugar entre as maiores taxas de homicídios da população jovem, superando de longe São Paulo (10° lugar na taxa de homicídios da população total e 9° na taxa de homicídios de jovens) e Bahia (22° lugar na taxa de homicídios para a população total e jovens). A clareza dos dados estatísticos, no entanto, não tem sido suficiente para orientar a ação governamental. O Plano de Segurança Publica do estado – batizado de Pacto pela Vida – ignora completamente estes dados em seu diagnostico, impossibilitando a adoção de medidas de enfrentamento à violência racial, sobretudo quando esta violência encontra-se enraizada na ação da própria policia.

O assassinato do garoto Denis Henrique é praticamente uma reedição de outro caso ocorrido em 2006, quando um grupo de adolescentes negros foi abordado pela Policia Militar no centro do Recife, durante o carnaval. Após serem espancados, os jovens foram obrigados a entrar no rio Capibaribe; em conseqüência dos ferimentos, um deles morreu afogado. Durante o processo de julgamento dos policiais responsáveis pela ação, outro jovem do grupo morreu em circunstâncias não explicadas, às vésperas de prestar depoimento.

A não punição dos culpados até o presente momento revela a outra face do sistema de segurança publica: a omissão da justiça em apurar casos nos quais vitimas fatais são pessoas negras, resultando na ineficácia da prestação jurisdicional em razão do pertencimento racial dos cidadãos. Assim, percebe-se que tanto a persistência da violência racial na policia, quanto o desinteresse explicito em combater o racismo entranhado na estrutura mesma do Estado encontram suas raízes no racismo institucional, definido como o “fracasso coletivo de uma organização em prover um serviço profissional adequado às pessoas por causa de sua cor, cultura ou origem étnica. Ele pode ser visto ou detectado em processos, atitudes ou comportamentos que denotam discriminação resultante de preconceito inconsciente, ignorância, falta de atenção ou estereótipos racistas que colocam minorias étnicas em desvantagem”.

A exclusão histórica do sujeito negro do acesso a bens e direitos, a desconsideração de sua personalidade jurídica nas instituições republicanas no Brasil e a adoção de teorias oriundas do racismo cientifico no século XIX como base do senso comum teórico no aparelho de segurança publica, alimentados na atualidade pela volta da idéia da “criminalidade nata da infância negra ” – defendida no pós-abolição por Nina Rodrigues e recuperada pelas campanhas de redução da maioridade penal - consolidaram a distorção da “presunção de culpabilidade” em relação à pessoa negra, ou seja: diante do aparelho de repressão estatal, pessoas negras serão priorizadas em abordagens policiais, em atos de tortura e ações que resultam em morte, pois na percepção dos agentes do Estado, o perfil do suspeito é a pessoa de sexo masculino, jovem e negro. A equação: democracia racial X estereótipos racistas X violência policial tem significado, para a população negra, um pesado saldo de execuções sumarias com efeito genocida, elementos presentes no assassinato dos três adolescentes.

Na verdade, a compreensão do caráter estrutural do racismo institucional permite o estabelecimento da responsabilização da própria autoridade publica omissa na adoção de políticas eficientes de enfrentamento à violência racial. Não basta apenas punir os responsáveis diretos pelos crimes – embora, sem o cumprimento desta etapa fundamental, qualquer perspectiva de prevenção de outros crimes seja impossível. É preciso ainda responsabilizar a autoridade pública encarregada da política de segurança.

Ao relatar e analisar o julgamento de Otto Adolf Eichmann, funcionário do governo nazista e responsável pela logística do transporte de prisioneiros para campos de concentração, Hannah Arendt deteve-se sobre a questão da responsabilidade dos vários níveis de execução de um crime de Estado, concluindo que o fato de estar mais “próximo ou distante do efetivo assassinato da vítima nada significa no que tange à medida de sua responsabilidade. Ao contrario, no geral o grau de responsabilidade aumenta quanto mais longe nos colocamos do homem que maneja o instrumento fatal com suas próprias mãos”.

Esta compreensão nos leva ao reconhecimento de que os funcionários que executam tais crimes acreditando desempenhar suas funções não podem ser qualificados de “monstros”, nem “pervertidos, nem sádicos”; ao contrário, são pessoas “terrível e assustadoramente normais”, pois sua ação se encaixa na lógica de um sistema; é, portanto, uma ação esperada e, geralmente, encorajada institucionalmente. O que assusta nesta situação não é a possível “anormalidade” da conduta de quem comete estes crimes, mas, ao contrário, sua absoluta normalidade, “mais apavorante do que todas as atrocidades juntas”, pois implica a existência de um criminoso que “comete seus crimes em circunstâncias que tornam praticamente impossível para ele saber ou sentir que esta agindo de modo errado”, mesmo porque sua ação nada mais é que uma conseqüência lógica do sistema no qual esta inserido. Ela cumpre uma trajetória que tem inicio na própria formação policial, carregada de estereótipos em relação à população negra, e que encontra eco na sociedade, onde os estereótipos criminalizantes e desumanizadores dirigidos a negros e negras são reproduzidos e alimentados nos meios de comunicação, na educação formal e nas relações sociais.

Ao priorizar a pessoa negra em suas abordagens, os policiais militares não inventam uma regra, mas seguem um roteiro preestabelecido, agem de acordo com o que aprenderam. Funcionando como um reflexo condicionado, a conduta racista na abordagem policial não exige reflexão por parte dos policiais que a praticam. E é exatamente na consistência superficial desta atitude que reside o problema, porque o mal que a anima se justifica pela idéia do dever cumprido, de um certo heroísmo mesmo. É, portanto, extremamente banal, e exatamente por isso pode se alastrar facilmente, indefinidamente.

Por outro lado, é exatamente a normalidade desta conduta que impede que ela seja combatida e punida – afinal, o extermínio (no nosso caso, o da população negra) é o resultado esperado, e mais que isso – o resultado programado em um Estado que se constituiu a partir do pressuposto da exclusão do contingente negro de sua população. Daí porque a punição dos agentes estatais responsáveis pelo extermínio físico deste contingente é a exceção. Mudar esta lógica é possível, mas exige como pressuposto o restabelecimento da moralidade no poder. Não de uma moralidade abstrata, mas aquela nascida do que Hannah Arendt conceitua como amor mundi – ou seja, a atitude de admiração pelas obras das gerações humanas passadas (considerando a humanidade em toda a sua diversidade) e desejo que tais obras sejam preservadas para as gerações futuras. Esta moralidade exige que o Estado abandone o propósito político inconfessado de exterminar contingentes inteiros de sua população, e assuma o compromisso de preservar para o futuro também as crianças, adolescentes e jovens negros, como parte integrante e constituinte da própria nação brasileira. Extinta esta parte fundante, é a própria nação que corre perigo de sobrevivência no futuro.

A mudança desta perspectiva está ao alcance do poder publico atualmente em exercício. Políticas públicas de combate ao racismo devem levar em conta o enfrentamento incansável ao racismo institucional, a mudança consciente de padrões de comportamento, de regras internas e de relacionamento com o publico, enfim, da mudança de paradigmas que permitam considerar a pessoa negra, em qualquer situação que se apresente, como detentora dos mesmos direitos e merecedora do mesmo tratamento dispensado às pessoas brancas. No cerne destas políticas deve estar a promoção de uma educação em todos os níveis que privilegie a capacidade reflexiva. Pois, como reflete ainda Hannah Arendt, se “a maldade não é condição necessária para fazer o mal”, a capacidade reflexiva, a busca empreendida pelo pensamento ativo é, sem dúvida, um antídoto poderoso contra a banalização do mal.

O Movimento Negro em Pernambuco, chamado a contribuir na elaboração da Política de Segurança Publica, elegeu entre outras medidas especificas, a adoção do Programa de Combate ao Racismo Institucional no âmbito do governo estadual e articular ações semelhantes com os governos municipais. Acreditamos que esta medida possibilitar á ao Estado responsabilizarse concretamente pela erradicação da violência racial, apontando para um novo paradigma do respeito aos direitos da população negra.

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