A voz rural contra o regime do Apartheid



Em série, a enviada do Brasil de Fato, Ana Amorim, apresenta artigos e reportagens sobre o país da Copa para além do futebol
Ana Maria Amorim,

Cidade do Cabo, África do Sul


cidade_do_caboPelos cantos da África do Sul, a forte história de intolerância racial ainda agoniza. Andando pela cosmopolitana Cidade do Cabo, capital do país, percebe-se que as contradições se afloram a cada curva da rua. Entre os bairros milionários, encravados nas praias azuis, a arquitetura remete às fotos das mansões europeias. A construção civil se ostenta com apartamentos luxuosos, cada qual com uma piscina particular na varanda e com um preço que ultrapassa a casa de um milhão de dólares. A famosa geografia desenhada pelas inúmeras montanhas que cercam e atravessam a cidade funciona como uma grande parede que não permite que os turistas se surpreendam com os precários subúrbios, com as casas construídas amontoadas em planos territórios, feitas de restos de madeira e metal.


Tão agressivo quanto o panorama de Cidade do Cabo é o retrato rural do país. Desde a colonização inglesa, as pessoas “coloridas” foram excluídas do acesso a terra – dentre tantos outros direitos. Em 1652, os povos nativos foram expulsos de suas terras. A única permissão concedida para continuar nas terras em que viviam era na condição de trabalhar no processo de produção para a metrópole, na Inglaterra. Este era o início da legitimação do racismo nas divisões de terras no país. Em 1913, a Native Land Act (Lei da Terra Nativa) formalizou nacionalmente que o acesso da terra se relacionava diretamente com a procedência racial da pessoa. Assim, foram reservados 8% das terras do país para os negros (na África do Sul, a união dos excluídos fez com que se entendesse por negro todos que não eram brancos, incluindo, portanto, as outras “raças”). Os outros 92% eram exclusivamente dos brancos.


O Land Act só foi revista em 1936, quando outra lei a Native Trust and Land Act conseguiu, entre outras medidas, uma tímida expansão – agora, os negros poderiam ocupar até 13% das terras. Este ato é entendido como a consolidação do “capital branco” vencendo dentro do negro país, particularmente o capital relacionado com a agricultura. Paralelamente, se agudiza a resistência negra e, na década de 40, os ganhos da parcela branca na África do Sul ficam ameaçados em uma crise econômica que coincide com o aumento da urbanização no país, da industrialização e da organização dos trabalhadores. A solução do regime que em 1948 comandava o país foi, entre outros passos, a instauração da segregação através do apartheid.


Estas são apenas algumas pitadas que evidenciam a exclusão a qual o povo originário foi submetido para uma expansão colonial da Inglaterra ser garantida. As bandeiras por liberdade e igualdade do sul da África se pautam, direta ou indiretamente, pela questão agrária. “A terra deve ser repartida para quem trabalha nela”, dizia a frase do The Freedom Charter, documento adotado em junho de 1955 por mais de três mil pessoas de todas as cores. O fim do sistema do apartheid – marcado com as primeiras eleições democráticas em 1994, que levaram Nelson Mandela ao poder da nação - e as promessas firmadas de reforma agrária não foram suficientes para consolidar ousados passos na democratização da terra.


Os primeiros passos dentro da democracia

Principalmente nos anos 90, Organizações Não Governamentais (ONGs), comunidade rurais e organizações políticas atuaram pela garantia de acesso a terra, com bandeiras que abrangiam as remoções forçadas, valorização da mulher que trabalha no campo e eliminação da pobreza nas comunidades rurais. Em compensação, mesmo com discussões e documentos políticos referentes à reforma agrária, ou, ainda, com a existência do Departamento de Questão Agrária, a atuação governamental não foi suficientemente ativa para o rompimento com as injustiças do passado.


Repleto de indefinições, os planos de uma reforma agrária na África do Sul encontra entraves como, por exemplo, as aquisições de terra pelo governo. Baseando a compra das terras através do preço de mercado, a moeda de troca dos fazendeiros foi a especulação. Assim, decisões que deveriam ter como meta a redistribuição de terras acabaram por desconsiderar os apontamentos defendidos pelas organizações que lutavam pela reforma.


Ainda que traçando metas, seja através do Settlement and Land Acquisition Grant (SLAG) (Assentamentos e Concessões de Terras) nos primeiros seis anos da redemocratização, ou do Land Redistribution for Agricultural Development (LRAD) (Departamento de Redistribuição de Terras para Desenvolvimento Agrícola) a partir de 2000, os resultados nunca foram realizados. Na mudança institucional dos órgão responsáveis pela reforma agrária, a meta anterior de redistribuir 30% das terras em cinco anos se alongou, podendo agora ser feita em até 15 anos. Assim, a África do Sul fechou o século passado com menos de 1% de suas terras redistribuídas. Atualmente, não mais que 5% de suas terras foram efetivamente destinadas para a reforma agrária. Em um país onde quase 80% dos 48 milhões de habitantes são negros, 80% das terras são controladas por fazendeiros brancos e Estado.


Em todo este curso de exclusão e exploração dos povos, os trabalhos das organizações que lutam pelos direitos humanos e de acesso a terra no país continuam como uma peça importante para encorajar uma real emancipação. A exemplo desta luta, encontra-se a ONG Trust for Community Outreach and Education (TCOE) que, em seus documentos, frisa que uma das maiores lições aprendidas no processo de reforma agrária no país é a necessidade de se formar um movimento rural – movimento este que não pode ser uma intervenção fora da nação nem ser construído de cima para baixo. Isto, é claro, não impede a participação de organizações exteriores à realidade diária da terra.


Semeando um novo futuro

cidade_do_cabo2Para a TCOE o trabalho fundamental, o maior desafio enfrentado, está na consolidação da organização dos trabalhadores rurais do país contra a lógica imposta para o campo no país. No estado do Cabo Oeste (Western Cape), o final de 2009 serviu para que as diversas comunidades com as quais a ONG trabalha trocassem suas experiência. O festival que reuniu estas comunidades aconteceu na segunda quinzena de dezembro e, para a avaliação do evento, as árvores da reserva natural Vrolijkheid, nas proximidades da pequena cidade de Robertson, acolheram os representantes no dia 16 de dezembro.


Monica Johnson mora em Buffeljags River, uma região que ela descreve como “muito pobre e sem oportunidades para trabalho”. As terras da região são próximas a duas grandes fábricas de queijos e vinhos, como a Sharon Fruit, mas os empregos gerados ali não são destinados para a população local. A história se repete com Velewzima Wakwa, que mora na região de Robertson e atua pelo direito à terra há quinze anos. Wakwa relembra as promessas feitas de reforma agrária no país, cuja taxa prometida em 1994 – de 30% em cinco anos – foi adiada novamente para 2014. Lizzie Neethling, da região de Swellendam, acredita que os direitos dos povos são negados. Há três anos na região cujos títulos não são daqueles que nas terras cultivam, Lizzie diz em voz calma e limpa que as terras deveriam retornar às pessoas que trabalham nela.


Give back our land” (Devolvam nossas terras) é a frase ao fundo das camisas de muitos ali presentes. Estampada em letras grossas nas camisas pretas, lê-se Mawubuye, nome dado ao fórum de direitos à terra na África do Sul. É esta a ligação entre aquelas pessoas afetadas por todo um legado de exclusão e que buscam de alguma forma ter o mínimo da justiça garantida. São as sementes lançadas em uma terra já demasiada regada de suor e sangue, onde novas vozes são estratégias necessárias para a construção de um projeto para o país.

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