Racismo e sistema penal


O racismo é uma variável fundamental para compreendermos o funcionamento do sistema penal brasileiro e o projeto genocida de Estado
Ana Luíza Pinheiro Flauzina, Mestra em Direito pela Universidade de Brasília e professora do UniCeub.
analuiza@irohin.org.br
É interessante observar como o sofisticado discurso da democracia racial, que conseguiu resguardar o Estado brasileiro da explicitação da existência do racismo, não foi capaz de penetrar o campo penal em sua plenitude(1). Nessa área específica da atuação institucional, a assepsia da raça na classe nunca se completou, sinalizando para um diagnóstico aberto da presença do racismo nos mecanismos de controle social penal. A desgastada tríade “preto, pobre e puta”, empregada como metáfora para os destinatários do sistema entre juristas e leigos, parece sinalizar para o que estamos sustentando, dentro de uma equação em que a ordem dos fatores altera substancialmente o produto.

Mas se as massas encarceradas e os corpos caídos estampando monotonamente o mesmo tom levaram necessariamente ao diagnóstico da presença do racismo na movimentação do sistema penal brasileiro, foi preciso obstaculizar a construção de uma teoria que desse sentido aos dados apresentados. Afinal, explicitar de alguma maneira que o sistema penal tem por principal função o controle e extermínio da população negra no Brasil é cindir definitivamente com o pacto da harmonia entre as raças. Isso não se pode permitir.

Foi então que se deslocou a variável racial do centro para a periferia das análises, situando-a apenas no rol ilustrativo das assimetrias que o empreendimento de controle social reproduz. As elaborações autorizadas são as que utilizam o negro como personagem, nunca o racismo como fundamento. Foi na biografia da escravização negra que o sistema penal começou a se consolidar e é na lógica da dominação étnica contemporânea que continua a operar em seus excessos. É o arranjo dessa relação de continuidade incontestável que se tenta obstar a qualquer custo.

A partir dos estudos efetuados pelos teóricos da criminologia crítica, que rompem com os padrões positivistas das causas do crime a atentam para a funcionalidade do sistema, a seletividade é apontada como uma marca que atravessa os sistemas penais em todo o mundo. Quantitativamente, é importante compreender que o sistema penal não foi feito, não pode e de fato não quer punir a todos os atos infracionais praticados. Aliás, se todos os delitos previstos no ordenamento jurídico fossem processados não haveria praticamente qualquer habitante que não fosse por diversas vezes criminalizado ao longo de sua vida. Esse é um mecanismo programado para não funcionar em sua máxima potência sob o risco de desencadear uma verdadeira catástrofe social.

No que se refere ao aspecto qualitativo, os estudos demonstraram, a partir das pesquisas de autodenúncia e vitimização, que a criminalidade é majoritária (a regra é a prática de delitos) e ubíqua, ou seja, está regularmente distribuída em todos os estratos sociais. O que ocorre é uma criminalização mais severa das condutas típicas dos segmentos mais vulneráveis e a imunização daquelas praticadas pelos hegemônicos. É importante ter claro, portanto, que todos delinqüem, o que ocorre é um recrutamento diferenciado dos grupos sociais para as fileiras da punição. As estatísticas oficiais passam a ser interpretadas então como uma amostra dos clientes preferenciais do sistema e não mais como a parcela da população que tem predisposição para a prática de delitos. A partir de todas essas considerações, a conclusão a que se chegou é a de que o sistema penal se presta mais ao controle dos indivíduos e dos grupos estigmatizados do que propriamente para a prevenção/repressão dos atos infracionais.

Mas se é verdade que os sistemas penais em todo o mundo são estruturalmente seletivos, do Canadá à Suíça, do Japão à Noruega, o fato é que nas periferias do capitalismo mundial essa realidade está estampada de maneira mais flagrante. Na América Latina, o entendimento é o de que os sistemas penais se movimentam na produção de um verdadeiro genocídio. A morte é mesmo o produto por excelência da movimentação dos sistemas penais latino-americanos.

Esse tipo de investida deve ser explicado pelo pacto social a que o sistema tem de dar sustentação (acintosamente assimétrico) e está ainda condicionado pelos destinatários do sistema. Dialogando com esses dois aspectos, o racismo é a variável que dá conta da carga excessiva de violência inscrita nas práticas penais de nossa região.

No Brasil, fazer o cruzamento entre racismo e sistema penal com esse nível de profundidade conta com uma resistência há muito cultivada pela intelectualidade branca. Afinal, sinalizar a existência de um sistema penal genocida voltado para o extermínio da população negra pode abrir frestas que extrapolam os limites do sistema. Sim, porque esse empreendimento se movimenta ancorado numa pauta, numa agenda política que o preside e extrapola. Defendemos mesmo que o sistema penal é a porção mais vulnerável de um projeto genocida de Estado multifacetado nas diversas instâncias da atuação institucional. As abordagens truculentas, os encarceramentos desproporcionais e as mortes abruptas fazem desse campo a arena mais sensível da engenharia genocida brasileira, a porta de entrada mais acessível ao empreendimento de extermínio que fora abraçado pelo Estado brasileiro desde a abolição da escravatura em finais do século XIX e com o qual nenhum governo subseqüente foi capaz de romper. Daí toda a interdição em se trabalhar os dados do racismo em torno do sistema penal teoricamente. Analisando historicamente a articulação entre racismo e sistema penal adotamos a periodização sugerida por Nilo Batista, que sinaliza a existência de quatro sistemas penais: o colonial mercantilista; o imperial-escravista; o republicano-positivista e o por nós denominado neoliberal. Uma sucinta análise desses empreendimentos de controle social permite aferir que os mais de trezentos anos de um direito penal de ordem privada, instrumentalizado por um sistema de controle que tem suas origens na relação casa grande e senzala, somados ao projeto de extermino que com o fim da escravidão formal transforma o negro na grande mácula à viabilidade do país, arrasta para dentro da República um sistema penal de base fundamentalmente corporal. Agravando todo esse quadro, os ventos do neoliberalismo aprofundam o controle diferencial dos segmentos como marca fundante da atuação do sistema penal da contemporaneidade.

Mergulhando nas contradições do sistema penal dos tempos globalizantes, encaramos uma realidade extremamente reducionista. Para os consumidores em potencial, chama mais uma vez a atenção Nilo Batista, deve-se evitar ao máximo o “contágio prisional”. É para esse segmento que se estruturam os Juizados Especiais Criminais, que apesar de terem ressuscitado uma criminalidade que antes escapava as malhas da punição, servem para reduzir os impactos do sistema sobre os indivíduos. São eles os acusados de homicídio culposo no trânsito, estelionato negocial, lesões corporais leves. Para esse contingente o discurso da humanidade das penas se aplica, servindo como um escudo ao abismo que a seletividade gerou. Do outro lado estão os infratores tomados como perigosos. Os que não consomem. Os autores de furtos qualificados e extorsão mediante seqüestro. Para esses o aprisionamento é a medida por excelência, devendo-se manter o indivíduo na prisão o máximo que se puder. Esse contingente é o que justifica todo o discurso da periculosidade e do medo, fazendo render uma poderosa indústria do controle do crime, que se expande no país. Esses são os verdadeiros clientes do sistema penal.

Toda essa diferenciação, obviamente, conta com o racismo como um elemento central na seleção dos indivíduos a freqüentarem as fileiras da punição ou da redenção. É mesmo importante compreender que o racismo é uma marca de nascença irremovível do sistema penal brasileiro. Digamos de maneira direta: o sistema penal age com tamanho grau de brutalidade e violência porque foi um instrumento pensado para controlar os corpos negros, na lógica da desumanização que o racismo impôs como regra. Por isso, apesar de atingir inegavelmente a negros e brancos, com intensidades diferentes, o sistema penal também é violento ao se deparar com os corpos brancos. É violento porque o racismo o condicionou dessa maneira. Estudar esse relacionamento incestuoso, nesse sentido, está para além de entender a relação entre sistema penal e a população negra. O racismo é uma variável essencial para a inteligibilidade do funcionamento do sistema penal brasileiro, para além do grupo a que esteja se dirigindo.

O desgastado discurso da “falência do sistema penal” perde, portanto, qualquer sorte de credibilidade. O sistema penal funciona e funciona bem. Funciona para os fins para os quais foi concebido: manter as pessoas onde estão. Mais especialmente, funciona para assegurar os termos de nosso pacto racial, auxiliando na disposição de negros e brancos em espaços concretos e simbólicos diferenciados.

Nesses termos, qualquer análise que objetive compreender a dinâmica de funcionamento do sistema penal brasileiro prescindindo da politização da categoria raça é necessariamente lacunosa. Há um potencial subaproveitado nessa seara, que pode contribuir decisivamente para o debate sobre as relações raciais no Brasil. A verdade é que trabalhando o sistema em toda sua complexidade estão abertas as portas de um projeto genocida que se pretende inviolável e que opera, há muito, para minar a existência coletiva da população negra neste país. Podemos dizer que, atirando no sistema, acertamos em definitivo no mito. Em última instância, equacionar os termos da relação entre racismo e sistema penal no país configura-se em um atalho estratégico para o sepultamento das narrativas conciliatórias de nossas relações raciais.

(1) Esse texto foi baseado na dissertação de mestrado intitulada “Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro”, por mim defendida na Faculdade de Direito na Universidade de Brasília.

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