A dimensão racial da violência


Não há respostas satisfatórias para a questão da violência, porque ela cumpre afinal seu papel no extermínio do segmento negro da população.
Ana Luíza Pinheiro Flauzina, Mestra em Direito pela Universidade de Brasília e professora do UniCeub.
analuiza@irohin.org.br
Em 13 de maio de 1888, sabemos, deu-se o fim oficial da escravidão no Brasil. Dois anos depois, antes mesmo da feitura de uma Constituição para a nascente República, o Código Penal foi promulgado. A ordem social que se instaura num país de pessoas agora "livres" reclama prioritariamente por um instrumento de controle e coerção que auxilie na passagem sem rupturas do negro das senzalas para os bolsões da exclusão. Esse simbólico instrumento legal autoriza a responsabilização penal a partir dos nove anos de idade. Num tempo em que as elites brancas se sentem ameaçadas por uma possível mudança no status social da população negra, dentro de uma sociedade formalmente constituída por iguais, a redução da maioridade penal dá o recado inequívoco de que o segmento está sendo acusado de uma espécie de, no dizer de Nilo Batista, "infração existencial".

O século XXI parece querer atentar para o fato de que a passagem do tempo não implicou a renovação de nossos problemas. O assassinato de um menino de seis anos de idade no último dia 7 de fevereiro, no Rio de Janeiro, fez o debate sempre à espreita da redução da maioridade penal reacender com vigor. Para chacoalhar, em um Senado Federal que não avança na aprovação de instrumentos fundamentais para a melhoria das condições de vida no país, discutem-se vários projetos que tratam da responsabilização penal de crianças e adolescentes, a partir de idades que chegam aos 13 anos.

Do ponto de vista legal não há o que se discutir quanto à afronta que esse tipo de proposta representa aos princípios constitucionais. De acordo com o entendimento de Flávia Piovesan, registrado em artigo de ampla circulação, a Constituição colocou entre as cláusulas pétreas as garantias e os direitos individuais, não podendo esse conjunto de salvaguardas ser objeto de modificação por meio de emendas. Sem dúvida, o direito à proteção especial conferida às crianças e adolescentes, que abrange a inimputabilidade penal dos menores de dezoito anos, está dentro da esfera das garantias, sendo vedada, portanto, qualquer tipo de alteração, constituindo ofensa grave inclusive a parâmetros internacionais.

Mas deixemos logo de lado essa ladainha. Afinal de nada mesmo nos adianta toda essa retórica jurídica diante da dança das cadeiras que manipula o ordenamento diante do grupo social a ser preservado ou controlado nesse país. Não nos deixa mentir a famosa "Lei de Tóxicos" (Lei nº 11.343 de 23 de agosto de 2006) que, atendendo às demandas de imunização da classe média branca, resguarda a categoria do usurário e avança ainda mais bruscamente sobre o segmento que tem de garantir a alegria das festas regadas a pó e dos "beques" descompromissados da intelectualidade, elevando a pena mínima do ilícito de tráfico. O necessário debate sobre as conseqüências sociais da criminalização das drogas? Esse, o cerne do problema, não está em pauta. Assim como não está pautado o ponto de tensão vital no caso do menino assassinado e todas as questões a ele subjacentes.

O fato é que carecemos de um debate do que venha a ser violência fora dos limites dos estereótipos usuais veiculados. Sim, porque associar a feição mais brutal dessa categoria à criminalidade típica dos grupos subalternos, desvinculando da discussão a dimensão da violência estrutural, assumida como metodologia de controle das elites na produção de um genocídio que vimos denunciando, é não só equivocado, mas também perverso. Fundamentalmente, não há interesse em se complexificar a discussão porque a pauta da violência entre nós, carregando uma dimensão racial de base, não está atrelada às condicionantes de sua materialização, mas aos corpos a que se dirige.

Enquanto o circuito da violência em sua modalidade mais visível está circunscrito ao perímetro que delimita a vida da maioria negra, o incômodo não se manifesta em passeatas de Ong’s de direitos humanos e entradas especiais em novelas das oito. Ao que tudo indica, a violência em seu lócus "natural" não dá ibope. Essa é uma agenda que só ganha algum relevo quando a arrogância das elites é arranhada pelas seqüências inevitáveis advindas do tipo de pacto social e racial imposto, quando a rotina das tragédias é interrompida e os cômputos usuais da morte associados à negritude extravasam o muro físico e simbólico de proteção construído em torno das elites brancas desse país.

E falo isso em respeito a João Hélio, que perdeu sua vida pela nossa ignorância. Em última instância, não há respostas satisfatórias em termos de políticas públicas para trabalharmos a questão da violência entre nós em toda sua complexidade porque não há e nunca houve interesse real em confrontá-la, na medida em que ela cumpre seu exitoso papel de extermínio do segmento negro, nitidamente identificado na construção de um campo social minado em torno da juventude.

Mães em desespero: Edna Ezequiel, mãe de Alana (13) assassinada no Rio de Janeiro em 05 de março.Foto: Marcos Tristão - Ag. O GloboE assim, mergulhado num sentimento de ameaça antigo que acompanha o sono de nossas elites, vamos mais uma vez arrastando nossas contradições para o futuro sem qualquer tipo de indignação mais conseqüente. O envolvimento de um adolescente na morte abrupta e prematura de uma criança de seis anos em nosso país não serve como sinal vermelho para questionarmos a estrutura social e racial que nos preside e a lacuna na rede de proteção que deveria acompanhá-lo. Ao contrário, esse é o sinal verde para que os processos de encarceramento sistemático da população negra, parte fundamental na produção do genocídio denunciado, ganhem novo fôlego. A escolha do sistema penal como o instrumento apto a intervir nessa realidade, com o viés centrado em práticas repressivas em detrimento das preventivas, é preciso ser dito, é a opção clara e consciente das elites pela morte, em detrimento da vida. O discurso enviesado amplamente difundido, que tem seu acento na conotação individual da violência, desconectado do terror de Estado que a promove e estimula, visa, em última instância, legitimar os processos de eliminação física que comprometem a existência do segmento negro do país. Trata-se, em suma, de recado direto e inequívoco de que o extravasamento da violência para fora de seu reduto patente não é tolerado sem reação, sendo essa mesma violência por demais estratégica na materialização da morte dos grupos excluídos para ser confrontada.

"É o descaso cobrando a conta", nos lembra Hamilton Borges. Por ela pagam a inocência da infância branca bruscamente interrompida e as centenas de corpos negros que não tem a seu favor o benefício da revolta.

Um comentário:

OTONIEL AJALA DOURADO disse...

DENÚNCIA: SÍTIO CALDEIRÃO, O ARAGUAIA DO CEARÁ: UM GENOCÍDIO ESQUECIDO PELO PODER PÚBLICO!


No CEARÁ, para quem não sabe, houve também um crime idêntico ao do “Araguaia”, contudo em piores proporções, foi o MASSACRE praticado por forças do Exército e da Polícia Militar do Ceará no ano de 1937, contra a comunidade de camponeses católicos do Sítio da Santa Cruz do Deserto ou Sítio Caldeirão, que tinha como líder religioso o beato JOSÉ LOURENÇO, seguidor do padre Cícero Romão Batista.


A ação criminosa deu-se inicialmente através de bombardeio aéreo, e depois, no solo, os militares usando armas diversas, como fuzis, revólveres, pistolas, facas e facões, assassinaram mulheres, crianças, adolescentes, idosos, doentes e todo o ser vivo que estivesse ao alcance de suas armas, agindo como feras enlouquecidas, como se ao mesmo tempo, fossem juízes e algozes.


Como o crime praticado pelo Exército e pela Polícia Militar do Ceará foi de LESA HUMANIDADE / GENOCÍDIO / CRIME CONTRA A HUMANIDADE é considerado IMPRESCRITÍVEL pela legislação brasileira bem como pelos Acordos e Convenções internacionais, e por isso a SOS - DIREITOS HUMANOS, ONG com sede em Fortaleza - Ceará, ajuizou no ano de 2008 uma Ação Civil Pública na Justiça Federal contra a União Federal e o Estado do Ceará, requerendo que sejam obrigados a informar a localização exata da COVA COLETIVA onde esconderam os corpos dos camponeses católicos assassinados na ação militar de 1937.


Vale lembrar que a Universidade Regional do Cariri – URCA, poderia utilizar sua tecnologia avançada e pessoal qualificado, para, através da Pró-Reitoria de Pós Graduação e Pesquisa – PRPGP, do Grupo de Pesquisa Chapada do Araripe – GPCA e do Laboratório de Pesquisa Paleontológica – LPPU encontrar a cova coletiva, uma vez que pelas informações populares, ela estaria situada em algum lugar da MATA DOS CAVALOS, em cima da Serra do Araripe.


Frisa-se também que a Universidade Federal do Ceará – UFC, no início de 2009 enviou pessoal para auxiliar nas buscas dos restos dos corpos dos guerrilheiros mortos no ARAGUAIA, esquecendo-se de procurar na CHAPADA DO ARRARIPE, interior do Ceará, uma COVA COM 1000 camponeses.


Então qual seria a razão para que as autoridades não procurem a COVA COLETIVA das vítimas do SÍTIO CALDEIRÃO? Seria descaso ou discriminação por serem “meros nordestinos católicos”?


Diante disto aproveitamos a oportunidade para pedir o apoio de todos os cidadãos de bem nessa luta, no sentido de divulgar o CRIME PERMANENTE praticado contra os habitantes do SÍTIO CALDEIRÃO, bem como, o direito das vítimas serem encontradas e enterradas com dignidade, para que não fiquem para sempre esquecidas em alguma cova coletiva na CHAPADA DO ARARIPE.


Para que as vítimas ou descendentes do massacre sejam beneficiadas pela ação, elas devem entrar em contato com a SOS DIREITOS HUMANOS para fornecerem por escrito e em vídeo seus depoimentos sobre o período em que participaram da comunidade do Caldeirão, sobre como escaparam da ação militar, e outros dados e informações relevantes sobre o evento.



Dr. OTONIEL AJALA DOURADO
OAB/CE 9288 – (85) 8613.1197 – (85) 8719.8794
Presidente da SOS - DIREITOS HUMANOS
www.sosdireitoshumanos.org.br
sosdireitoshumanos@ig.com.br