A Cultura da Violência

A Cultura da Violência

Ricardo Peres *

“O medo tem alguma utilidade, mas a covardia não” – Gandhi

Criamos uma sociedade que inclui economicamente e, ao mesmo tempo, exclui social, moral e politicamente. Em termos práticos, isso se traduz em duas “humanidades”, a formal e a informal, em uma mesma sociedade, que compartilham o eixo do consumo e a circulação de mercadorias e serviços.

A “humanidade informal” está encarnada nos cidadãos sobrantes, concentrados nos grandes centros urbanos do país, vivendo como podem. A economia formal não precisa deles, particularmente daqueles que estão sob risco social, que foram mal servidos pelo sistema público, que estão despreparados para a tecnocracia da economia moderna. Nós fingimos que necessitamos deles. Temos a pretensão de educar seus filhos. Nós fingimos que estamos realmente incluindo essas pessoas na sociedade. Mas nós não estamos.

Os cidadãos pobres dos centros urbanos sabem que foram abandonados e muitos deles entendem que a única base econômica viável em seus bairros é o negócio ilícito, incluindo o tráfico de drogas e armas, o que seria basicamente como abrir uma fábrica da VW em Brasilândia, Sapopemba ou Paraisópolis e gerar empregos à população. De fato, quando a economia formal não consegue criar condições favoráveis, o vácuo é ocupado por alternativas possíveis, ainda que precárias, uma vez que ninguém vai trocar a legalidade própria pela fome dos filhos.

O poder paralelo das favelas e periferias do sudeste do país, sustentado pela economia do tráfico e outras atividades ilícitas variadas, evidencia uma sociedade paralela de caráter alternativo, confirmando a presença de duas humanidades em um mesmo bioma urbano. Em particular, o comércio ilegal de drogas na favela é uma forma de capitalismo invertido usado para pacificar as pessoas que não têm qualquer condição de participar do mundo formal. Tecnicamente, o tráfico de drogas representa a mais destrutiva forma de bem-estar social criada nos últimos 25 anos.

Esse contexto social é responsável pelo aparecimento dos “justiceiros”, que hoje em dia controlam favelas e detém o status de liderança por conta de sua influência material sobre a comunidade carente. Assim, o poder paralelo nos coloca em face ao aparecimento da justiça popular que contesta a justiça institucional, já que a justiça sumária e sem apelo anula uma conquista da civilização na relação litigiosa entre duas partes.

Enquanto isso, o Estado parece incapaz de ações afirmativas que se façam sentir no dia-a-dia do cidadão sobrante. Observamos medidas tímidas, conjunturais, que acabam em descrença logo ao nascer, percebidas com desconfiança historicamente justificada por um cidadão que nunca foi tratado com o respeito que sempre mereceu, cuja memória retém a figura de um Estado omisso. De fato, sancionando que o problema social está enraizado no processo histórico do país, as estatísticas do sistema penitenciário mostram que os cidadãos mais afetados por esse quadro social são negros e pobres.

As políticas de segurança pública em vigor tratam de aumentar a produção da violência com medidas protelatórias que só fazem acumular a dívida social. Basicamente, a teoria embasando essas políticas explica que devemos estar dispostos a pagar por uma força policial opressora porquanto os sobrantes estiverem presos ou isolados nas favelas, se matando na disputa de negócios ilícitos.

É inconcebível que um governo se deixe seqüestrar dessa forma, sendo substituído por traficantes na vida da população carente. Todo mundo teoricamente concorda que essa situação é insustentável. É uma platitude dizer que a polícia precisa ser revigorada, modernizada e receber os subsídios para se reintegrar às comunidades com uma nova postura, visando protegê-las sem hostilizá-las, ajudá-las sem desmerecer seus valores. É senso comum que um processo de entrosamento e diálogo deveria se iniciar com a conquista da confiança da população, mediante um trabalho de assistência, presença permanente e compreensão desenvolvida de forma não conflituosa.

No entanto, essa diretriz levanta uma questão de valoração que precisa ser revisada: por que avaliar seriamente o que você está fazendo para os cidadãos mais vulneráveis se você não precisa deles? Afinal, não há impostos para coletar e não lucro para ser obtido a não ser em marginalizá-los e capitalizar na indústria da insegurança, com mais grades, carros blindados e helicópteros, alimentando ainda mais a insegurança, a opressão e a violência.

É notável que um número significativo de eleitores seja a favor da política que cria esse monstro social, como se estivéssemos em um cassino, onde se aposta sempre na menor probabilidade de sucesso. O equívoco fatal é que essa política opressora não aborda a causa para a subclasse, mas apenas reage de forma confusa e ressentida aos sintomas naturais de uma sociedade que escala a produção de cidadãos sobrantes e do flagelo.

Estamos diante do que acontece quando um sistema econômico míope, aliado a um Estado fragilizado, cria duas realidades: uma que fabrica milionários brancos de dia e outra que exibe crianças brasileiras se drogando e se prostituindo de noite. O resultado de tudo isso se revela na dor e na amargura vivida nos centros urbanos do país, particularmente em São Paulo e no Rio de Janeiro, em razão da negligência covarde de governantes que se recusam a debater as verdadeiras questões.

A única certeza nesse momento é que uma enorme bomba social latente deve explodir em breve se não houver uma inversão de forças impactando a questão social da periferia urbana e das prisões do país.


* Músico e filiado ao PCdoB

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