Infância Esquecida


Problemas familiares e abandono fazem com que o crack avance entre as crianças. Centros de Atenção Psicossocial de Curitiba têm 67 pacientes em tratamento

Fabiane Ziolla Menezes

Os dados são escassos e os números do estado, ainda mais raros, porque os registros de atendimento são municipalizados. Mas um levantamento inédito de fichas, feito pela coordenadoria de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde de Curitiba a pedido da reportagem da Gazeta do Povo, dá uma ideia da ameaça que o crack representa para a infância. Na 1.ª Vara de Infância e Juventude de Curitiba, 60% dos casos de acolhimento institucional de crianças se deve ao uso de crack pelos pais. Nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) da capital há 67 pacientes com idade entre 11 e 15 anos em tratamento por causa da pedra – neste ano, um enquadrado na faixa de 8 a 10 anos deu entrada.

No Paraná, o único recorte possível é o dos 168 leitos psiquiátricos reservados ao internamento de meninos (90) e meninas (78). Segundo a Secretaria de Estado da Saúde (Sesa), esses leitos são usados, em sua maioria, por adolescentes de 15 a 17 anos com dependência do crack. Um perfil mais apurado da ala psiquiátrica do Hospital Universitário do Oeste do Paraná, em Cascavel, que possui 17 leitos, indica que, ao menos, 11 pacientes entre 10 e 12 anos passaram pela instituição neste ano – entre março de 2007 e março de 2009 foram nove nessa faixa etária. O levantamento, feito pelo enfermeiro da ala Sérgio de Arruda Dias, a acadêmica de Enfermagem da Unioeste Ângela Gonçalves da Silva e a professora da universidade Nelsi Salete Tonini, apontou o crack como o motivo mais frequente de internação, seguido da maconha.

Fator de risco

Trauma aumenta predisposição

Uma convivência intensa com situações como a separação prolongada da mãe, a negligência e os maus-tratos seria suficiente para danificar a estrutura e o funcionamento cerebral, predispondo a criança ao uso de substâncias psicoativas. Essa relação é indicada por um estudo de 2002 do Departamento de Psiquiatria da Escola Médica de Harvard, nos Estados Unidos, intitulado “Neurobiologia do Desenvolvimento Infantil Exposto ao Estresse e ao Trauma”.

Os autores partem da hipótese de que a forma final do cérebro humano e seus padrões são esculpidos pela experiência e não vêm totalmente de uma fórmula genética pré-determinada. A exposição a situações traumáticas na infância, principalmente antes dos 5 anos, modificariam para sempre algumas regiões do órgão e fariam aumentar a vulnerabilidade a problemas como transtorno de estresse pós-traumático e depressão.

Em relação ao uso de substâncias psicoativas, os autores apontam a região do vermiscerebelar (parte do cerebelo). Quando tem um tamanho reduzido, esse ponto indica problemas como déficit de atenção e hiperatividade, fatores de risco para o uso de drogas. Essa situação também deixa o sistema límbico (relacionado com a regulação dos processos emocionais e do Sistema Nervoso Autônomo) mais irritável, outro fator para o uso de substâncias psicoativas.

Na Associação San Julian, em Piraquara, que atende Curitiba e região, a idade média é de 14 a 15 anos. O assistente social Wilsun José Gonçalves Araújo, coordenador da unidade de adolescentes, no entanto, diz que de 2009 para cá quatro pacientes de 12 anos passaram pela instituição. Segundo ele, o contato com a droga tem começado aos 7 anos. “Quando eles saem daqui, depois de uma internação que varia de 30 a 45 dias, têm dificuldade em dar seguimento ao tratamento e acabam voltando. São poucas cidades que têm o Caps 1, infantil (são três em Curitiba e sete em outras cidades grandes do estado) e nos outros centros (Caps 2 e AD, para dependentes químicos) não há equipes preparadas”, afirma.

Vício

Nas clínicas e abrigos, as histórias são semelhantes: alguém da família é usuário e/ou traficante, o que torna a droga algo comum na vida da criança. Além disso, a ausência do pai e da mãe pode levar a uma rotina livre de cobranças e disciplina. Crianças mais velhas às vezes traficam e chamam os mais novos, que na esquina de casa ou no campinho de futebol são surpreendidos pela fissura quase imediata proporcionada pelo cachimbo do crack. Duas vezes, em média, são suficientes para viciar. O cérebro, ainda em estruturação e maturação, absorve as consequências.

“Entre os 5 e 7 anos de idade, o esboço do cérebro está formado para uma maturação que acontecerá até os 21 anos, mas a massa encefálica, que é o filtro do órgão, ainda não está totalmente formada, deixando o cérebro mais vulnerável do que na adolescência e na vida adulta”, explica o psiquiatra Marcelo Ribeiro de Araújo, da Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas do Departamento de Psi­quiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Bastam 5 segundos para o usuá­rio entrar em um estágio onde não há percepção do que está ao seu redor. Segundo o neurologista Maccleiton Gehlen, do Hospital Milton Muricy, a fuga do real transita para o quadro eufórico – com bem-estar e atenção –, mas dura muito pouco. Em 5 minutos, o usuário quer mais. Conforme Gehlen, não há relação necessária entre o tempo de uso e o vício. “Pode ser da primeira vez ou no prazo de semanas. Depende da suscetibilidade de cada pessoa.”

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