No fim da linha, o crack


Com mais de 50 anos, usuários de outras drogas migram para a pedra e aumentam os riscos. Tendência já foi verifidada nos Estados Unidos e no Brasil

Aline Peres e Fabiane Ziolla Menezes

Não é comum, mas mais pes­­soas na faixa dos 50 anos de idade têm começado a usar crack. O uso geralmente está ligado ao vício do álcool e outras drogas e muitas vezes a uma vida complicada, de morador de rua. Desde 2009, 24 pacientes com idade entre 51 e 57 anos e três entre 58 e 60 anos deram entrada nos Centros de Atenção Psicossocial de Curitiba (Caps). O levantamento, feito a pedido da reportagem da Gazeta do Povo, é o primeiro do gênero. Segundo a coordenadoria de Saúde Mental da Secretaria Municipal de Saúde, pacientes mais velhos não costumavam aparecer até 2008.

Em pouco mais de uma semana de buscas, a reportagem encontrou dois homens viciados em crack em Curitiba, um com 48 anos e outro com 58. Há mais pelas ruas, alguns frequentando a Fundação de Ação Social (FAS), da prefeitura de Curitiba, mas em números bem menos significativos que os do perfil majoritário, dos 18 aos 35 anos.

Para o tráfico, idade não conta

Apesar de menos frequente que os jovens, o envolvimento de pessoas mais velhas no tráfico também acontece. Nos últimos meses, a imprensa noticiou vários casos em Saramandaia, no interior da Bahia. Em março, Laudelina Maciel de Jesus, 77 anos, foi presa como traficante.

"Se tivesse, fumava na sua frente"

Experimentei o crack em uma noite com mulheres, com 43 anos, depois de usar muita maconha, cocaína e outras drogas. O plano era usar ecstasy, mas acabou e elas tinham a pedra. Caí no crack por problema financeiro.

"Meu corpo não suporta mais"

Antes do crack eu usei muita maconha, anfetamina e glicose na veia, desde os 15 anos. Aos 30 passei a usar cocaína. Experimentei o crack em 1997, com 35 anos, e larguei o resto. Uma pessoa me apresentou e me explicou como fazia.


Embora duas pessoas não sirvam como base para uma estatística, os casos indicam um fenômeno percebido recentemente nos Estados Unidos, onde pesquisadores têm verificado uma migração do álcool para o uso de drogas ilícitas. Segundo um estudo do epidemiologista norte-americano James Anthony, isso pode estar relacionado a um efeito cascata do uso da maconha, que ainda é considerada uma porta de entrada para outras drogas.

Anthony é autor de uma teoria da progressão do uso de entorpecentes: quem usa álcool teria três vezes mais chances de consumir maconha. Quem usa maconha, por sua vez, teria 11 vezes mais chances de passar para a cocaína, e assim por diante. Para o crack não há um cálculo, mas espera-se uma progressão semelhante.

No Brasil, o tema tem sido explorado por estudiosos como o psiquiatra Philip Ribeiro, do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas do Instituto de Psiquiatria, do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP). “O uso dessa droga [maconha], que antes era feito aos 16 anos, agora está aparecendo aos 24 ou 25 anos, o que levaria também à cocaína e ao crack em idade mais avançada. Por que isso acontece, ainda não sabemos”, diz o psiquiatra.

Segundo Ribeiro, em São Paulo o número de usuários de crack mais velhos, com mais de 65 anos, também não é significativo, mas eles podem ser encontrados em locais como a Cracolândia, no centro da capital paulista.

O uso prolongado da droga entre alguns dos entrevistados pela Gazeta do Povo não o surpreende. “A sobrevida do jovem, da criança e do adolescente é muito pequena, mas mais por conta da violência, pelo envolvimento com o tráfico. Com o passar do tempo criou-se uma falácia de quem usa crack, independentemente da idade, morre cedo. Mas não é bem assim.”

Consequências

O consumo do crack na faixa dos 50 ou 60 anos é ainda mais perigoso por causa dos problemas típicos da idade, como os cardiovasculares, que potencializam os efeitos da pedra. Se considerados outros problemas adquiridos com o consumo de outras drogas ao longo da vida, os riscos são ainda maiores. “Se no jovem a causa da morte pode estar mais ligada ao tráfico, no idoso a conjunção de outras doenças, como a hipertensão, pode ter conseqüências fulminantes”, afirma o neurologista Maccleiton Gehlen. “Se ele já tem outras doenças, a tendência é piorar. Ele acaba tendo mais chances de ter um derrame, uma crise convulsiva um ou quadro demencial.”

Segundo o médico geriatra José Mário Tupiná Machado, o organismo de pessoas de idade mais avançada tem dificuldades para se adaptar a novas substâncias, o que pode dificultar o tratamento. “Quanto mais tempo se vive, menos capacidade de adaptação e tolerância a mudanças o organismo tem”, explica Machado. “O nome para isso é reserva funcional. Quanto mais tempo eu vivo, mais ela diminui. Qualquer mudança de ambiente ou introdução de nova medicação, por exemplo, fica mais difícil.”

Os homens ouvidos pela reportagem apresentaram dificuldade de concentração e de raciocínio durante as entrevistas. Além disso, listaram uma série de problemas de saúde, como hipertensão, dentição prejudicada e hepatite, entre outros. Atualmente eles não trabalham: um por invalidez, depois de sofrer um acidente de moto sob o efeito da droga; o outro recebe uma porcentagem da renda da lanchonete da família enquanto está em tratamento. A rotina de solidão, sem amigos ou familiares, que muitas vezes atinge os idosos, chegou mais cedo para esses personagens. Por enquanto, visualizar um futuro além da abstinência é difícil.

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