Pedras de fabricação própria


Narcotraficantes brasileiros absorvem conhecimento e começam a processar matéria-prima vinda da Bolívia, do Peru e da Colômbia

Fabiane Ziolla Menezes e Aline Peres

Os narcotraficantes brasileiros estão se tornando empreendedores num ramo em que até então figuravam apenas como atravessadores. A expansão dos negócios, com uma carteira de clientes que só cresce, levou-os a investir no processamento da matéria-prima vinda da Bolívia, da Colômbia e do Peru. Até há pouco, apenas importavam o pro­­­duto já pronto, em pó ou pedra. A prática levou-os a perceber que o lu­­­cro é maior quando se importa a pasta-base de coca para eles próprios fazê-la render. Homens de visão, puseram o país num novo status e agora suas pedras levam o selo Made in Brazil.

A razão dessa tendência está, como em qualquer ramo, no custo-benefício. Um quilo de pasta-base rende entre 12 e 15 mil pedras de crack. Levar um quilo dela é mais fácil do que carregar um saco de pedras. Os números são elucidativos. O volume de pasta apreendida em 2009 no Brasil cresceu mais de três vezes em relação ao ano anterior. Saltou de 412 quilos para 1,4 tonelada. Já neste ano, o Narcodenúncia mostra aumento de 60% na apreensão dessa matéria-prima no Paraná. Desde 2003 foram confiscados 24,5 quilos por ano, em média. Mas só no último semestre a quantidade já chega a 32 quilos.

As polícias conseguem retirar de circulação apenas uma parte do que chega ao consumidor final. Ainda assim, os dados oficiais são preocupantes porque revelam a fabricação do pó e da pedra em território nacional, tendência confirmada com a descoberta de 11 laboratórios de refino no país entre março e maio deste ano, segundo a Agência Brasil. Um deles funcionava na Cidade Industrial de Curitiba. Nessa semana, a polícia do Paraná prendeu em Santa Catarina e em São Paulo dois dos maiores traficantes de Curitiba. Um deles mantinha um laboratório de refino de pó e pedra na capital paulista.

Os números podem ser ainda maiores se considerado que nem toda pasta-base apreendida é identificada como tal e acaba sendo registrada como cocaína. “A diferenciação entre pasta-base, crack e cloridrato (pó) é, muitas vezes, realizada de forma técnica, quando da elaboração do laudo pericial (depois da apreensão). Daí a distorção dos números. Muitas vezes se apreende pasta-base e, para fins estatísticos, entra no ‘bolo’ de apreensões de cocaína apenas”, explica o chefe da Delegacia de Repressão a Entorpecentes da Polícia Federal (PF) no Paraná, Rivaldo Venâncio.

Efeito é imediato e devastador

Inalado pelo pulmão, o crack tem um efeito bem mais devastador do que a cocaína, que chega ao organismo por outras vias. “A superfície de absorção do pulmão é grande e permite a entrada de uma quantidade muito maior da droga. Além disso, o acesso do pulmão ao cérebro é quase imediato”, diz o psiquiatra Félix Kessler, vice-diretor do Centro de Pesquisa em Álcool e Drogas do Hospital das Clínicas de Porto Alegre, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Segundo o Centro Brasi­­­­leiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), os efeitos do crack podem ser sentidos entre 5 e 15 segundos, enquanto os da cocaína cheirada ocorrem em 10 a 15 minutos, e o da injetável entre 3 e 5 minutos.

O perfil do usuário mudou nos últimos anos. Se antes a droga estava atrelada ao consumo pelas classes mais baixas (como D e E), hoje ela circula livremente em outras camadas sociais e em outros perfis. Na fissura do crack encontram-se pessoas de várias idades, embora o perfil majoritário seja de homens entre 18 e 35 anos de idade. O consumo na infância, pela mãe durante a gestação e amamentação, e na idade mais avançada, tornou-se mais frequente de cinco anos para cá. (FZM)

Leia entre amanhã e quinta-feira na Gazeta do Povo a continuidade desta série de reportagens sobre cada um desses perfis de usuários do crack.

Sujeira aumenta o volume

A composição química da coca (Erythroxylon coca) possui de 30% a 50% de alcalóides de cocaína. Na primeira fase de extração de cocaína, que acontece em laboratórios dos países fornecedores (Colômbia, Peru e Bolívia), as folhas são tratadas (prensadas) com um solvente orgânico, como querosene ou gasolina, e ácido sulfúrico, formando uma pasta de até 90% de sulfato de cocaína. Se a essa pasta for adicionada ácido clorídrico, produz o cloridrato de cocaína, o pó. Se a pasta e o cloridrato forem misturados, junto com bicarbonato de sódio (produto sem controle específico da Agência Nacional de Vigilância da Sanitária ou da PF, encontrado em farmácias para outros usos), e aquecidos várias vezes tem-se a cristalização do pó, o crack.

Em nome do lucro, traficantes aumentam os volumes de pó e pedra com substâncias absurdas. “Em média, a cocaína apreendida no país tem pureza de 30%, segundo perícias do Instituto Nacional de Criminalística. Os outros 70% são substâncias como pó de mármore, talco e vidro moído, só para dar volume”, explica o delegado licenciado e ex-secretário especial Antidrogas de Curitiba, Fernando Fran­­cischini. O pouco que sobra de cocaína na mistura, no entanto, já é suficiente para viciar. O comprometimento é tanto que, segundo avaliação do de­­le­­gado da PF Wagner Mesquita, se o usuário brasileiro usar a cocaína pura, ele pode morrer de overdose. (AP e FZM)

Operação

Líderes em Curitiba, presos em SP e SC


O Departamento Estadual de Narcóticos (Denarc), da Polícia Civil do Paraná, prendeu nessa semana na Operação Madrugada os dois maiores traficantes do Bairro Alto, em Curitiba: Maikon Rubens Bonete Alves, 25 anos, conhecido como Bauduco, e Carlos Roberto Oliveira, 44 anos, cozm o apelido de Baiano. Ao todo, a operação cumpriu 34 mandados de busca e apreensão e 24 mandados de prisão em cidades do Paraná (Curitiba, Pinhais e Araucária), Santa Catarina (Joinville) e São Paulo (capital, São Bernardo do Campo e Diadema), resultantes de uma investigação que começou há seis meses, a partir das atividades no bairro da região norte de Curitiba. Seis pessoas ainda estão foragidas.Só repressão não resolve

Na opinião do delegado do Departamento Estadual de Narcóticos (Denarc), Julio Reis, é preciso existir mais do que repressão, trabalho desenvolvido pela polícia. A prevenção e o tratamento também são pontos onde as ações devem melhorar. “Enquanto houver demanda, haverá tráfico”, diz. Em uma recente operação na região Oeste do estado, onde foram apreendidos 25 quilos de pasta-base, em Céu Azul, os traficantes presos comentaram que para cada quilo de pasta seriam fabricados 10 quilos de cocaína, que por sua vez, produziria 100 mil pedras.


Ainda em março, a Junta Inter­­­­na­­­cional de Fiscalização de Entorpecentes (Jife) tinha apontado que o aumento de apreensões se deve ao crescimento do cultivo e da produção de coca no Peru e, principalmente, na Bolívia, e na consequente queda no preço da matéria-prima. O Relatório Mundial de Drogas, divulgado em junho pelo Escritório sobre Drogas e Crime da Organização das Nações Unidas (ONU), repetiu o alerta. “Tem se tornado cada vez mais vantajoso adquirir a pasta, que depois se transforma em cocaína (pó) ou crack (pedra), do que traficar a cocaína pronta, muito mais volumosa e fácil de identificar”, diz o delegado licenciado da PF Fernando Fran­­cischini, ex-secretário especial Anti­­­dro­­­gas de Curitiba.

Contudo, Venâncio afirma que, via de regra, o crack entra pronto no país. “A exceção é a fabricação”, diz. Por quanto tempo, no entanto, não se sabe. “A quantidade de pasta-base apreendida pode parecer pequena, mas não é um dado a desconsiderar”, lembra o delegado da PF em Foz do Iguaçu, Rodrigo Perin Nardi.

Já em Guaíra, também na fronteira do Paraná com o Paraguai, onde se apreendeu quase 4 dos 17 quilos de pasta-base recolhidos em 2009 no estado, o delegado local da PF, Érico Ricardo Saconato, lembra que a fabricação do crack é muito simples e que o fechamento de um laboratório da droga não é tão frequente. “O crack é fabricado em casa. Tivemos um caso no ano em que o indivíduo estava fazendo a mistura em uma forma de bolo, na residência.”

Laboratório e refino

Laboratório é o local onde a folha da coca é transformada em pasta base ou cocaína e refino é onde a droga á batizada com mais produtos e cresce em volume, seja em forma de pó ou pedra. Segundo o delegado da PF Wag­­­ner Mesquita, o Brasil não teria laboratórios, mas apenas refinos. Os laboratórios não são de processamento. “O que é fechado no país é o local onde é feito o batismo da droga. Por exemplo, 100 quilos de pasta-base podem virar 500 quilos de cocaína”, explica.

Paraná é corredor do tráfico

A pasta de coca e seus derivados têm chegado ao Brasil principalmente da Bolívia, mas também do Peru e da Colômbia. Entram no Brasil pelo Acre; por Cáceres (MT) e Guajará-mirim (RO) rumo ao Nordeste; por Corumbá e Ponta Porã (MS); e por Guaíra e Foz do Iguaçu, via Paraguai, rumo a Curitiba e outras cidades do Sul e do Sudeste do país. Parte segue para Europa e África, via Brasil. De acordo com o chefe da Delegacia de Repressão a Entorpecentes da Polícia Federal no Paraná, Rivaldo Venâncio, as cidades de Entre Rios do Oeste, Pato Bragado e Santa Helena, no Oeste do Paraná, também são entradas da droga no estado.

Por aqui, as cargas chegam geralmente via carros de passeio e caminhões. As principais estradas usadas são a BR-271, de Guaíra, e a BR-277, segundo o che­­fe de Policiamento e Fiscaliza­ção da Polícia Rodoviária Federal do estado, inspetor Gilson Cor­tia­­­no. A corporação é a campeã nacional de apreensões de crack e com uma média considerável nas de cocaína. Do primeiro se­­mestre do ano passado para o mesmo período de 2010 houve aumento de 150% nas apreensões de cocaína (de 45,6 para 113,9 quilos) e o dobro nas de crack (118,9 para 240,6 quilos).

Em Guaíra, o delegado da PF Érico Ricardo Saconato diz que as apreensões de cocaína e derivados nos primeiros meses de 2010 já superam as do mesmo período do ano passado: de 24,4 para 52,8 quilos, aumento de 54%. As cargas de pasta e pedras são transportadas em pequenas quantidades. “O número de pessoas trabalhando para o tráfico aumentou, enquanto a quantidade diminuiu. A pasta vem em três ou quatro quilos”, diz. Saconato conta que o crack tem tomado conta da região Oeste e que foi verificado o uso da droga até mesmo no meio rural, entre cortadores de cana. “É uma droga tão barata que vem substituindo a maconha.”

Em ascensão

Em Foz do Iguaçu, a situação não é diferente. O delegado Rodrigo Perin Nardi lembra que a droga mais apreendida é a maconha (18 toneladas em 2009, contra 15 em 2008), mas a cocaína e seus derivados têm crescido. “Neste ano foram 3,1 quilos de pasta-base, 36 de cocaína em pó e 47 de crack, além de 64 quilos de lidocaína (uma das substâncias usadas para batizar e dobrar o volume da cocaína). No ano passado foram 280 quilos só de cocaína recolhidos pela delegacia de Guaíra”. Nardi explica que, enquanto o quilo da maconha é comercializado a R$ 50 no Paraguai, o da cocaína chega a R$ 9 mil. “Isso também explica as diferenças no tráfico, modo de transporte e quantidade de uma droga e outra.”

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