União e consciência negra


A comemoração da memória do Zumbi é importante em um Brasil que ainda mantém uma herança de forte desigualdade social


Marcelo Barros




No Brasil, esta semana começa pela recordação do dia em que foi implantada a República (15 de novembro) e se encerra com o dia consagrado à União e Consciência Negra. Segundo historiadores recentes, no Brasil, a mudança da Monarquia para a República aconteceu quase por engano ou por acaso. Não era a opção profunda do Marechal Deodoro e de seus companheiros. E não significou uma verdadeira transformação da forma de exercer o poder que continuou com as elites (Cf. Fábio Konder Comparato em Caros Amigos, nov. 2010). O segundo fato recordado nesta semana ocorreu em 20 de novembro de 1696. Neste dia, Zumbi dos Palmares, líder da resistência negra contra a escravidão, foi martirizado. Atualmente, em várias cidades, este dia é feriado e conclui uma semana de comemorações culturais. Uma criança perguntou à mãe se união tem cor e o que significa “consciência negra”. A unidade das raças e a igualdade entre os seres humanos supõem que cada cultura e cada povo tenham consciência de sua dignidade. Chama-se “consciência negra” o fato das pessoas afro-descendentes assumirem sua identidade cultural, conscientes do imenso valor de sua cultura, para contribuir com as outras na riqueza intercultural do Brasil.

A comemoração anual da memória do Zumbi é importante em um Brasil que ainda mantém uma herança de forte desigualdade social. Em inúmeros casos, na realidade brasileira, ser negro é quase sinônimo de ser pobre e ter menos acesso à escolaridade e às condições sociais de outros brasileiros. José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, em São Paulo, afirma: “A cor negra da pele de homens e mulheres, assim como sua raça e cultura própria, foram motivos de crueldade humana e de barbárie que mancharam e continuam manchando a dignidade da humanidade” (Carta Capital, 12/11/2008,p. 60). Por isso, são sempre importantes e oportunos os programas que fomentam a igualdade de condições e a integração social de negros e brancos. Conforme a Constituição Brasileira, devem ser respeitadas e valorizadas as comunidades remanescentes de Quilombos. São grupos que, desde os tempos da escravidão, reúnem negros, seus aliados e descendentes, em uma comunidade com cultura e valores próprios. Eles devem ter direito à terra coletiva e merecem das autoridades públicas a proteção e o apoio necessários. Estas comunidades estão organizadas em quase todos os estados e somam mais de dois mil grupos e comunidades. Algumas delas mantêm elementos de idioma, de danças e costumes ancestrais que são de uma riqueza incalculável para todo o Brasil.

Uma das mais profundas riquezas das culturas afro-descendentes é a espiritualidade viva e bela das comunidades negras. A Mãe África permanece viva e atuante na memória religiosa dos seus filhos e filhas. Para serem escravas nos diversos países da América, foram sequestradas pessoas de diferentes áreas do continente africano. Para evitar rebeliões, os senhores separavam os escravos vindos do mesmo clã ou região. Misturavam etnias. Proibiam que falassem as suas línguas e praticassem as suas religiões. Mesmo impedidos de saber onde estavam outros membros de sua família, também sequestrados, os afro-descendentes conseguiram manter as línguas, contar a seus filhos as histórias dos seus antepassados, guardar as canções da Mãe-África e reconstituir muitas expressões culturais e religiosas. Só podiam cultuar à noite, enquanto os brancos dormiam. Como objetos de culto, só possuíam seus corpos, suas vozes e os terreiros das senzalas, seus templos. Foram obrigados a adaptar antigos costumes da África às novas condições de clima, ao pouco tempo livre de que dispunham e à sua extrema pobreza. Fundiram costumes religiosos, adaptaram mitos e elaboraram oralmente uma explicação religiosa do mundo e da sua história. Esta teologia narrativa deu origem a religiões novas como o Candomblé, o Batuque, o Tambor de Minas, a Santeria cubana e o Vodu haitiano. Durante séculos, de geração em geração, se transmitiram ritos, cânticos e histórias ancestrais.

Um Cristianismo, testemunha de que Deus é amor e inclusão, não pode deixar de respeitar e valorizar estas religiões que, na história, foram responsáveis pela resistência dos nossos irmãos e irmãs negras em meio a um sofrimento tão intenso e continuado. A base da fé cristã é que a Palavra divina se fez carne e se revelou no meio de nós através da pessoa de Jesus de Nazaré que assumiu toda a condição humana e todas as culturas com seus valores para revelar em tudo o que é humano a presença divina. Nós somos chamados a continuar este caminho de reverência amorosa e delicadeza no diálogo e na colaboração com as outras religiões e culturas.


Marcelo Barros é monge beneditino.

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