Cotas, futebol e a continuidade do racismo



por Diorge Alceno Konrad*

Passam os dias, os meses e os anos e não conseguimos terminar o racismo explícito e implícito na formação social e histórica brasileira. Tristes trópicos quando na alegria do povo, o futebol, e nos centros do saber, a Universidade, continua a se repetir a mazela do preconceito, este câncer a ser extirpado de nossa convivência.


Porém, esta luta é cotidiana, sinuosa, objetiva e subjetiva, cotidiana e de longa duração, principalmente quando ela se apresenta latente no meio de todos nós. Dois episódios envolvendo o Rio Grande do Sul marcaram este final de outono e início de inverno.

Em 24 de junho de 2009, em partida pela Copa Libertadores da América, o atacante gremista Maxi López foi acusado de cometer racismo contra o meia do Cruzeiro, Edicarlos. Após o jogo, este procurou a Delegacia de Plantão do Mineirão, em Belo Horizonte, registrando ocorrência, gerando tumulto na entrada do ônibus gremista, sendo que um segurança foi algemado e o técnico Paulo Autuori chegou a receber voz de prisão. Foi instaurado o processo e Maxi Lópes poderá responder pela acusação de injúria qualificada e ser processado se a denúncia de que houve racismo for confirmada.

Após o episódio, o jogador argentino, que já atuou na Espanha, um dos países com diversos exemplos de práticas racistas no futebol, afirmou desconhecer o significado do termo ''macaco'', como teria chamado Edicarlos. Reconheceu, implicitamente, o uso do termo. Por sua vez, Autuori citou o caso do jogador do São Paulo, Grafite, em 2005, também em jogo da Libertadores, argumentando que na época o jogador Desábato fez declaração semelhante, ''nada aconteceu e muita gente apareceu''. Seria uma naturalização implícita desta agressão, tentativa pouco educativa de colocar ''panos quentes'' na gravidade da situação, justificada pelos ''ânimos acirrados'' de um jogo de futebol?

Restou deste episódio, desde já, a denúncia de Edicarlos e a defesa de sua negritude, de um lado, e as irresponsáveis e minimamente culposas declarações de setores da mídia, de dirigentes e pessoas do meio sobre a ''normalidade'' destes episódios nos campos de futebol. Não podemos aceitar tais argumentos, continuando a presenciar nos estádios, dentro do campo ou no meio da torcida que, quando um jogador comete uma dividida mais ríspida, um erro de passe, um senão técnico ou tático e, sendo negro, seja alvo de adjetivações racistas.

A identidade étnica da comunidade negra brasileira tem sido uma afirmação e conquista do movimento negro e de todos os que são comprometidos com suas bandeiras. O 20 de novembro (dia da morte de Zumbi dos Palmares), em substituição ao 13 de maio (Abolição da Escravatura), representa, há mais de 30 anos, o salto da consciência pelo resgate da negritude como um processo de auto-estima e valorização da cultura afro-descendente no Brasil.[1] E a trajetória de resistência de Zumbi e dos quilombolas sempre será um norte para seus pósteros, na batalha atual pela consciência negra de homens e de mulheres em todos os cantos do Brasil.


Ao estudarmos a escravidão em nosso país, compreendemos a contribuição dos negros por sua liberdade, conquistada na luta contra um modo de produção escravista implantado de fora para dentro, continuada na contraposição a opressão racial, após a abolição até os dias atuais. A aproximação de momentos históricos aparentemente tão distantes, 1695 (a morte de Zumbi) e a atualidade (sua eterna ressurreição histórica e política) têm como significado a luta pela liberdade e contra a discriminação racial, luta absolutamente atemporal. Este significado envolve todos aqueles que buscam, efetivamente, uma sociedade onde a igualdade não seja apenas preceito legal, mas concretude histórica.


No Brasil, como em vários países africanos e outros lugares do planeta, foram os movimentos sociais negros a as lutas abolicionistas que levaram adiante a luta antiescravista, sobretudo levantando a negritude como um das grandes bandeiras contra a discriminação racial. Em nosso país, em finais do século 19, a ideologia do branqueamento entrou com força, especialmente quando se buscou a mão-de-obra imigrante da Europa para substituir a força de trabalho negra. Junto com a defesa do branqueamento vieram as teorias cientificistas e eurocêntricas, à base de um vulgar darwinismo social, dividindo o mundo entre civilização e barbárie. Nestes pressupostos, que influenciaram as ciências sociais e jurídicas, as pessoas eram identificadas como suspeitas e/ou criminosas pela cor da pela, pelas expressões faciais ou pelo tamanho de partes do corpo, especialmente o cérebro e a cabeça.

Triste influência esta, pois, além de reforçar o preconceito racial contra negros e mulatos, escravos e libertos, estas teorias solidificaram uma cultura de suspeição a priori, onde todos sabem que etnia é a mais ''perigosa'' quando se dão as abordagens policiais. A triste cena se repete aos milhares, sem expressão pública, quando alguém passeia pela rua e, ao passar por alguém, teme ser vítima de violência.


A história, enquanto processo, não existiria se não fosse pela mudança. Mas no Brasil, os processos de mudanças têm sido incompletos. A luta contra a escravidão não resultou na igualdade étnica. Pelo contrário, a exploração econômica e social do escravo, justificada e construída pela discriminação cultural e étnica, resultou no racismo passado e presente, como forma de manutenção ideológica da dominação de classe, que o fim da escravidão não extinguiu.


O fim da escravidão no Brasil aprofundou a existência dos sem-teto e sem-terra, de maioria negra. O fim da escravidão no Brasil perpetuou a dominação de uma classe dominante de maioria branca, que transformou o trabalho assalariado, um avanço histórico, em novas formas de discriminação, colocando os descendentes de escravos nos salários mais baixos - quando tiveram acesso a ele, no desemprego, no subemprego. Esta é a herança mais perversa do ''medo branco'' (termo apropriadamente referendado pela historiadora Célia Marinho de Azevedo), em relação à maioria negra do Brasil, a fim de que esta não tivesse, com o fim da escravidão, a igualdade social, econômica, política e cultural. Nossas elites políticas e econômicas sempre temeram aqui uma revolução antiescravista que construísse um poder partilhado com ex-escravos ou de hegemonia negra, a exemplo do Haiti.

Ainda temos muito a refletir em termos de consciência negra.[2] A consciência é um processo de construção coletiva e social que é reelaborada sob o ponto de vista individual. No Brasil, as ideias dominantes e oficiais ainda são as ideias da classe dominante, hegemonicamente racistas, preconceituosas e excludentes, mesmo que em tese afirmem o contrário. Resgatar a história de Palmares, de João Cândido e da Revolta da Chibata, do Massacre dos Lanceiros Negros, em Porongos, durante a Revolução Farroupilha, e de tantas outras formas e exemplos de resistência antiescravista e contra o preconceito racial enraizado no Brasil, faz parte desta reflexão. Reflexão para a ampliação da consciência negra, em particular, e da consciência de todos, em geral. No rumo da construção de uma sociedade na qual a discriminação e o preconceito étnico, bem como a exploração social e econômica (também fundada na discriminação e no preconceito), sejam parte do passado de nossa história.

Porém, quando acontecem episódios como o da menina Tatiana Oliveira, [3] aprovada no Curso de Pedagogia da UFSM no sistema de cotas, ainda se vê que falta muito para avançar. Filha de pai pardo, se autodeclarando parda e neta de avô paterno negro, ela se colocou como parda para a inscrição no vestibular.


Eis a surpresa: depois de ingressar na Universidade, foi convidada para uma entrevista onde UMA Comissão de Implementação e Acompanhamento do Programa de Ações Afirmativas de Inclusão Racial e Social da UFSM lhe perguntou sobre a sua raça. Repetiu que se considerava parda, menos que seu pai, por ter mãe branca, reconhecendo, ao mesmo tempo, nunca ter sido vítima de descriminação.

Maior surpresa ainda: em menos de um mês de aulas, recebeu a notícia do cancelamento de matrícula, pois a Comissão e a administração da Instituição ficaram em dúvida sobre o que a aprovada declarou na confirmação da vaga.


Sabemos do avanço e da conquista dos movimentos negros da sociedade com o sistema de cotas para negros e pardos, índios e oriundos de escola pública na UFSM. Vencendo as ideias conservadoras e o discurso elitista de que ''as cotas geram racismo em um país em que o preconceito inexiste'', a primeira universidade federal em uma cidade do interior do Brasil superou suas barreiras. Disse NÂO aqueles que acham inexistir dívidas históricas e sociais com negros e índios, depois de mais de trezentos anos de exploração colonial, quatrocentos anos de escravidão e mais de quinhentos de discriminação.


Desde a implantação do sistema, a polêmica continua. Foi a própria Comissão de Vestibular que aprofundou a polêmica na primeira seleção, quando manteve ponte de corte igual para cotistas e não-cotistas. Esta decisão, na prática e em sua essência invalidaria as cotas, pois mantinha a meritocracia alicerçada em número mínimo de acertos. Porém, esta injustiça foi sanada no vestibular seguinte.


Porém, a polêmica foi reavivada recentemente quando a Comissão de Cotas da UFSM passou a definir sobre a identidade étnica de algum vestibulando, tendo a última e definitiva declaração sobre quem é negro ou pardo entre os concorrentes. A Universidade Nacional de Brasília (UNB) já foi um exemplo extraordinariamente negativo para as cotas quando sua Comissão, através de exame de fotografia, definia quem tinha direito a cotas ou não. Foi lá, justamente que, em 2007, dois irmãos gêmeos, Alex e Alan Teixeira da Cunha, foram, respectivamente, aprovado e reprovado, para concorrer no sistema de cotas, pois inicialmente a comissão considerou um deles não-negro e o outro sim. No mesmo ano, a Universidade teve que voltar atrás, depois de recurso judicial de Alex.


Em pleno século 21, quando o conceito de raça passou a ser questionado pelo conhecimento científico a partir do exame do DNA humano, restou apenas jogarmos para a lata de lixo o preconceito racial, este sim latente e presente em nossa cultura e cotidiano. Em pleno século 21, o debate mais avançado sobre a questão das cotas, elimina a questão racial e coloca em seu lugar a etnia, cuja identidade não pode ser mesurada em hipótese alguma, mas sempre ser defendida, haja vista tratar-se de autoafirmação. Não foi isso o que o movimento negro definiu como consciência negra historicamente?

Quando ainda na década de 1970, através do Movimento Negro Unificado (MNU), se começou a propor e discutir as cotas no Brasil sabia-se que o enfrentamento da questão passaria pelo dilema da negritude. Em nosso país, seria necessário enfrentar a estatística oficial dos censos, nos quais, veja só, a maioria se dizia branca, ou no máximo parda, negando, muitas vezes, a negritude.

Foi um longo trabalho de militância e debate social e intelectual para que os negros se assumissem como tal. Afinal, se fosse o caso, a autodeclaração branca no meio de profundo racismo é ou não mais apropriada e oportunista do que se reconhecer como negro? Mas desde a implantação das cotas, o discurso parece que vem se invertendo: são oportunistas aqueles que se autoafirmam negros, transformando as vítimas em potenciais criminosos ou burladores da legislação. A solução para o impasse: cria-se uma comissão burocratizada para definir quem o outro é. Na prática, voltamos ao etnocentrismo. Por isso, ou a Comissão da UFSM e a justiça revêem os seus conceitos, sobretudo em torno da questão da negritude, ou se continuará com posição vacilante diante daqueles que sempre defenderam a meritocracia e abominaram a reparação social das injustiças pela ação da sociedade e do Estado. A posição, justamente, daqueles que acham que o tal de mercado e a ação individual são a solução para os problemas do mundo.


Passados dois meses do caso de Tatiana, a tentativa de reaver a vaga no curso de Pedagogia da UFSM, via judicial, se tornou mais longínqua. Em maio, a Justiça Federal de Santa Maria negou o seu pedido. Em 10 de junho, o Tribunal Regional Federal (TRF), em Porto Alegre, reiterou a decisão anterior: não considerando a questão central que levou a Universidade a cancelar a vaga, mas o preenchimento da autodeclaração, considerada incorreta, de acordo com a juíza federal Gianni Cassol Konzen, reforçada pela posição da desembargadora federal Maria Lúcia Luz Leiria. O argumento foi de que o edital e o Manual do Candidato indicam que o aprovado deveria apresentar a autodeclaração em formulário próprio da UFSM e assinado, enquanto a candidata escreveu sua audeclaração de próprio punho.

Na questão central, no parecer de Gianni Konzen, é afirmado que o edital do vestibular e o Manual do Candidato nada dizem sobre entrevistas para avaliar se o candidato é ou não afro-brasileiro, considerando, assim, que a entrevista não poderia resultar em exclusão da UFSM e do sistema de cotas. Por que, então, a aluna continua sem poder retornar à Universidade? Por uma questão formal?

Parte do resultado deste processo começa logo a aparecer. A descaracterização do caminho progressista das cotas como forma, mesmo que ainda parcial, de reparação de injustiças históricas. Mais ainda, estamos negando toda a luta histórica do resgate da identidade étnica e social, forma primordial para que a negação do passado seja feita de forma consciente no presente. Um passo extraordinário para, desde já, construirmos o futuro da história no qual as cotas serão desnecessárias e o acesso ao ensino superior será universal.


Até lá, viva as cotas e viva a autodeclaração da identidade étnica, forma intermediária de terminar com o branqueamento histórico da universidade brasileira e único princípio para se saber, efetivamente, quem é negro, pardo, branco, amarelo, marciano, etc.


Sabemos dos limites mercadológicos do futebol, como do carnaval, da música, etc. e da procura por ascensão social via acesso ao ensino superior, processo intrínseco de um País desigual socialmente, no qual o preconceito é o duplo trágico e cultural da exploração econômica e social. Mesmo assim, não toleremos o racismo no ensino superior, no futebol, no cotidiano, enfim, em toda a sociedade.

Notas


[1] Em um instigante texto, Clóvis Moura afirma que ''a negritude apenas como uma atitude dos negros face ao mundo dos brancos (...) nos levaria a uma posição metodologicamente equivocada; pois a veríamos apenas como um conceito para ser estudado, nunca uma ideologia para ser vivida e aplicada''. Cf. ''Os dilemas da negritude''. In. http://www.ufrgs.br/cdrom/moura/moura.pdf. Acesso em 11/04/2009.


[2] As questões teóricas deste texto, em parte, já foram apresentadas no artigo de minha autoria ''Na senzala a resistência, no quilombo a liberdade: a obra de Clóvis Moura''. In QUEVEDO, Júlio; DUTRA, Maria Rita Py (org.). Nas trilhas da negritude: consciência e afirmação. Porto Alegre: Martins Livreiro, 2007.


[3] As referências sobre o caso da UFSM e o problema das cotas, logo após o cancelamento da matrícula de Tatiana Oliveira, já foi apresentado, de forma modificada, no artigo ''Autoafirmação ou identificação externa?'', publicado no Caderno Mix-Ideias do Diário de Santa Maria, em edição de 18/19 de abril de 2009, p. 14-15.




*Diorge Alceno Konrad, Doutor em História Social do Trabalho pela UNICAMP

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