Som de preto, de favelado, e quando toca é criminalizado


Vítima de preconceito histórico, o funk carioca sofre com a repressão policial e com uma imposição temática por parte de empresários

Vítima de preconceito histórico, o funk carioca sofre com a repressão policial e com uma imposição temática por parte de empresários




Leandro Uchoas

do Rio de Janeiro (RJ)


“É som de preto, de favelado. Mas quando toca, ninguém fica parado”. O famoso refrão do funk Som de Preto, de Amilcka e Chocolate, tem mais informação do que se pode inferir no primeiro momento em que se escuta. Historicamente associado à violência e à promiscuidade, o estilo musical surgido no Rio de Janeiro a partir da fusão entre sonoridades estadunidenses e brasileiras vive, na capital, momento ímpar. Ao mesmo tempo em que a repressão policial ganha a conivência legal, as letras mais politizadas perdem espaço frente à temática sexual, o mercado cultural sofre um processo de cartelização e os verdadeiros impasses seguem afastados do debate social.


No início de 2008, havia na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro um deputado estadual, ex-chefe da Polícia Civil, chamado Álvaro Lins. Seu principal projeto de lei criminalizava a prática do baile funk através de métodos tortos. Estabelecia regras para a realização de evento cultural que certamente não seriam atendidas pelas atividades ocorridas nas comunidades pobres, mas apenas pelos clubes mais ricos. A lei foi aprovada em tempo recorde: três meses. 69 deputados votaram a favor e um contra.


Pouco depois, Álvaro Lins foi cassado a partir de denúncias do mesmo deputado responsável pelo voto solitário, Marcelo Freixo (Psol). Acusado de formação de quadrilha, facilitação de contrabando, lavagem de dinheiro e corrupção ativa, o ex-policial terminou preso. Seria solto apenas em maio deste ano, através de um habeas corpus. A lei que aprovou, entretanto, permanece em vigor, embora nenhum deputado admita formalmente concordar com ela.


Nos grandes clubes, a lei não é problema. As exigências que se faz (aprovação policial no prazo de 72 horas, banheiros químicos etc.) são facilmente cumpridas em locais em que o ingresso é caro. Nas favelas, onde o estilo nasceu e tomou corpo, só se faz baile funk nos horários em que a polícia não entra. O estilo musical foi novamente guetificado, favorecendo a ocorrência dos proibidões (bailes para exaltar líderes de tráfico) e a exclusão cultural.


Em comunidades onde houve ocupação policial, através das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), a situação é mais grave. Oriunda da Colômbia, onde teria sido responsável por redução nos índices de criminalidade, a política é amplamente elogiada pelos veículos midiáticos cariocas. Apenas quem vai até as comunidades ou tem acesso a fontes alternativas de informação conhece a realidade de fato. Nessas favelas, o funk está proibido. Bailes-funk na comunidade que mais revelou artistas, Cidade de Deus, ou no tradicional Pagorap do Santa Marta foram extintos.


No interior do estado, segundo MC Tojão, o ritmo teria sido “completamente proibido”. No dia 14 de junho, a Associação dos Profissionais e Amigos do Funk (Apafunk) organizou uma roda de funk na Cidade de Deus. Após negociações com a polícia, conseguia-se romper com um período de oito meses sem baile funk, e sem qualquer outro evento cultural. O presidente da associação, MC Leonardo, denuncia que, no local, “se o sujeito faz uma festa em casa e coloca funk, a polícia invade. Se tiver um carro e tocar funk, é multado”.


A Apafunk vem realizando uma série de eventos para denunciar o problema. Já houve rodas de funk na Central do Brasil, no morro do Dendê e na Cidade de Deus. O próximo está marcado para o Santa Marta, onde o incansável rapper Fiell luta para romper a barreira midiática, fazendo conhecer o boicote policial a manifestações culturais.


Desmobilização social

“O problema para eles não é o funk, é a favela. É ter um movimento organizado, da favela, da periferia, feito por negros. É quando você começa a dar voz a essas pessoas, a criar um discurso. Isso chega lá em cima”, denuncia o documentarista Fernando Barcellos, morador de Cidade de Deus. A professora Adriana Facina (UFF), com pós-doutorado em funk, reforça a tese de Fernando. “A cultura emerge como arena da luta de classes, como um espaço de disputa por hegemonia e de formulação de visões de mundo contra-hegemônicas”, escreveu em artigo.


Autor do premiado “Se Todos Fossem Iguais”, Fernando denuncia a atuação policial em sua comunidade como criminalização da pobreza mascarada de política de inclusão. “A cultura aqui está morta, não existe. Aí eles vêm querendo pintar os prédios. Estética? Eu quero cultura. Eu quero pensar, eu quero ler, eu quero ser inteligente”, protesta.


A Apafunk nasceu em 2008 para lutar pelos direitos dos funqueiros e contra a associação entre funk e violência. Boa parte dos integrantes faz denúncia social pelas letras. Os que surgiram com o movimento, no início dos anos 90, foram perdendo seu espaço na mídia para os artistas de temática mais voltada à sexualidade. “Quando me dizem que gostam ‘daquele funk’ antigo, eu digo que ele ainda existe. Ninguém parou de compor. A gente só parou de ser tocado”, protesta o MC Leonardo, de sucessos como o Rap do Centenário e o Rap das Armas e colunista da revista Caros Amigos.


O funk sensual encontra ampla aceitação em todas as classes sociais, mas seu sucesso não seria a única causa do boicote às letras mais politizadas. Os dois principais escritórios que agenciam os funqueiros, a Big Mix do DJ Marlboro e a Furacão 2000 de Rômulo Costa, apostam quase exclusivamente em artistas que adotam o sexo como temática principal. Alguns MCs chegaram a mudar o estilo para ganhar mercado. “Muitos dos que hoje ‘mandam a novinha sentar’ têm rap de cunho social”, ironiza MC Leonardo.


Cartel capitalista

Os militantes que se reúnem em torno da Apafunk não condenam a temática sexual. “O funk é um tipo de musicalidade ligado à diáspora africana, de maior estimulo à dança, ao corpo, à sensualidade”, diz Adriana. Na verdade, a crítica que fazem volta-se ao monopólio do mercado e ao asfixiamento da diversidade do funk. São unânimes em denunciar o cartel formado pelos escritórios de Marlboro e Rômulo.


Os empresários, hoje milionários, controlam não apenas a produção e distribuição, mas também os mecanismos de difusão. Os principais programas de rádio e TV também são controlados por eles. Nos contratos com os artistas, a exploração é de dar inveja aos maiores empresários da história da música nacional.


No contrato relativo ao fonograma, por exemplo, enquanto Marlboro cobra 96% do valor, entregando apenas 4% ao artista (ou à dupla), Rômulo cobra 100% dos lucros. Vitalício, o contrato é imposto como documento padrão. A exploração é reproduzida também nos shows, onde ambos ficam com o lucro quase total. “Você não vê o dinheiro voltar para a favela, onde estão os artistas. Não se ganha dinheiro” protesta MC Junior, irmão e parceiro musical do MC Leonardo.


Também se denuncia o controle midiático dos empresários. “O Marlboro só toca quem assinou contrato com ele. Se você chegar para ele com uma música maravilhosa, vai ter que assinar, senão não toca na rádio. Isso é crime. Rádio é uma concessão pública”, diz MC Leonardo. “Durante décadas a música brasileira sofreu com isso, na mão de presidente de Sony, de Polygram. Impunham o que o povo queria ouvir. O monopólio do funk está agindo da mesma forma que eles”, compara.


Também haveria artistas de sucesso fabricado pelos empresários. O produtor DJ Amazing Clay confessa que existem, “embora sejam raros”. No mesmo ritmo em que cresce o cartel e a repressão, também se organiza a resistência. A Apafunk tem se estruturado e ganhado respeito de setores dos meios político e cultural. Se vingar sua luta contra os preconceitos e os bloqueios policiais e empresariais, o Rio de Janeiro talvez venha a orgulhar-se de ter apresentado ao país mais um movimento cultural. (Leia mais na edição 330 do Brasil de Fato, disponível nas bancas)

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