Há alguns dias, um programa de um canal pago brasileiro exibiu uma interessantíssima entrevista com o empresário de cinema Luis Carlos Barreto, hoje no alto dos seus 80 anos. Rememorando o início de sua vida profissional como repórter fotográfico da revista O Cruzeiro, Barreto contou-nos o seguinte (aqui narrado de memória). No início dos anos 1950, a capa da revista O Cruzeiro trazia, invariável e obrigatoriamente, foto de alguma celebridade estadunidense, de preferência hollywoodiana. Disse ele que o “cromo” já vinha direto, pronto, dos Estados Unidos. Uma vez, estando a trabalho no Ceará, fotografou duas atrizes brasileiras, famosas àquela época, uma loura branca e uma negra, contra um lindo céu azul, tudo, aliás, cromaticamente também muito hollywoodiano. Mostrou a foto na redação e sugeriu que fosse a capa da semana. A reação de estranheza foi forte. “Cê tá maluco!”, ouviu. Mas Barreto conseguiu convencer seus chefes e a foto saiu na capa. Disse ele que, por isto, chegou a receber uma carta de Glauber Rocha (então, também, um iniciante) com palavras entusiasmadas: “Barreto, você começou uma revolução cultural!”.
Este era o Brasil dos anos 1950, um país para cuja elite, a capa de sua principal revista não podia mostrar gente brasileira. Este é o Brasil que começa a ser reconstruído, apesar do enorme esforço feito por toda essa geração à qual pertence Luis Carlos Barreto, para tornar este Brasil... brasileiro.
São muitos os meios pelos quais se dá essa reconstrução às avessas. O principal, como na mídia que O Cruzeiro então representava, é esta atual mídia re-americanalhada. E nela se destacam, ocupando cada vez mais o principal lugar na formação de nossas mentes e sentimentos, os canais da TV por assinatura. Neles não cabem tipos brasileiros, nem louros, nem negros. Mas cabem os louros e negros estadunidenses.
O debate aberto pela PL-29, ao menos a partir do momento em que teve o deputado carioca Jorge Bittar como relator, visava pôr claramente em questão tal retrocesso. Aceitando, nesses tempos de mundialização, que não podemos impedir a presença de canais estrangeiros de TV nas nossas salas de estar ou nos quartos de dormir da nossa criançada, buscava, ao menos, abrir nesses canais algum espaço para o audiovisual brasileiro, para as histórias brasileiras, para a gente brasileira, para as louras e negras brasileiras. Trata-se de uma reivindicação legítima de qualquer sociedade: defender, promover, privilegiar sua cultura, ou culturas. E como falamos também de mercado (a Fox, só num exemplo, fatura mundialmente cerca de US$ 30 bilhões por ano, 15 vezes mais do que a nossa Globo), estamos tratando de um mercado interno que é patrimônio do Brasil – isto está na nossa Constituição. Podemos cobrar pedágio para quem queira entrar nesse mercado. No caso, o preço seria abrir uma janela para o audiovisual brasileiro.
Para tornar isso possível, além das cotas (ver o primeiro destes dois artigos ), Bittar estabeleceu um conjunto de princípios e regras a serem obedecidos por todos os integrantes da cadeia produtiva do audiovisual, na TV por assinatura, não importa se por cabo, satélite ou celular. No artº 3º da última versão do seu Substitutivo, definia os princípios a serem obedecidos pelo serviço: basicamente aqueles que lemos no artº 221 da Constituição, devidamente adaptados. Dos princípios constava a “promoção da língua e cultura brasileiras”. O relator paraibano Vital Rego Filho, ou “Vitalzinho” como parece preferir, a julgar pelo seu blog na internet, criteriosamente suprimiu este princípio e, mais cuidadosamente ainda, introduziu outro que se poderia considerar tautológico, não fosse claro o recado: “incentivo ao lazer, entretenimento”... Algo como dizer, “cabe ao peixe respirar dentro d’água”.
Um outro princípio, o ítem V de seu artº 5, deixa mais claro que o serviço se baseará na “liberdade de iniciativa, mínima intervenção da administração pública, modicidade de preços e defesa da concorrência” com vedação de monopólios etc. Assim, por este princípio, a televisão Fox, a televisão Disney ou a televisão CNN, a televisão HBO passam a poder operar no Brasil à margem de maiores controles públicos, ao contrário (ao menos em teoria) da televisão Globo, da televisão Record...
O ante-projeto anterior do deputado fluminense Jorge Bittar, definia com muita clareza o perfil das empresas que realizariam as distintas tarefas da cadeia produtiva; vedava propriedades cruzadas entre elas; e, mais importante, atribuía à Ancine a tarefa de regular e fiscalizar as atividades de programação e empacotamento. Inclusive, as empresas envolvidas nas atividades de programação e empacotamento deveriam obrigatoriamente possuir ao menos CNPJ brasileiro, serem geridas por brasileiros natos ou naturalizados (tudo inspirado na Constituição) e estarem registradas na Ancine à qual também competiria certificar o produto audiovisual brasileiro, para efeito das cotas. Todo o poder dado por Bittar à Ancine desaparece, pura e simplesmente, no Substitutivo de Vitalzinho. E como, nesse período, os formuladores ou dirigentes do Ministério da Cultura e da própria Ancine estavam mais preocupados em fazer da TV Brasil uma espécie de “Canal Brasil” no espectro aberto (ver o meu artigo “De ‘público’ e públicos”, neste Observatório, em 4/5/2009 ), tudo indica que sequer percebiam o que podiam estar ganhando e, agora, estão perdendo.
Bittar, seguindo uma tendência mundial, isto é, dos países capitalistas centrais, introduziu no seu projeto uma clara distinção entre o tratamento regulatório a ser dado aos conteúdos e o tratamento regulatório a ser dado à infraestrutura. Vitalzinho, sabendo melhor o que é próprio à periferia do capitalismo periférico, preferiu entregar conteúdo e infraestrutura, num pacote só, aos interesses do Império. A única exigência é a de que programadores, empacotadores e distribuidores ofereçam os “seus produtos em condições não discriminatórias”, cabendo ao CADE tomar as providências cabíveis caso isso não aconteça. Há... há... há...
Os artigos 7º e 8º desse Substitutivo do deputado paraibano estabelecem um conjunto de regras que parecem querer evitar a propriedade cruzada de operadores de rede por produtores de conteúdo e radiodifusores, e destes por aqueles. Por esses artigos, salvo melhor juízo, as Organizações Globo não poderiam deter o controle da NET (controle este, aliás, que, como bem sabemos, já entregaram preventivamente para a mexicana – sim, mexicana! – Telmex). E, também, a NET, ou a Telefônica ou a Oi não poderão deter participação superior a 30% do capital de empresas de radiodifusão e de produção ou programação de conteúdos, nem adquirir direitos de transmissão de eventos artísticos ou esportivos. As restrições parecem razoáveis (noves fora o muito provável desinteresse da Telefônica ou da Oi, ou da própria NET, pela produção de conteúdos), não fosse o que leremos, adiante, no Artº 13º: “Serão admitidos, excepcionalmente, os contratos de exclusividade, entre programadores, empacotadores e distribuidores, de um determinado canal de programação, quando essa modalidade de contrato for essencial para a viabilidade da produção, ressalvadas as competências legais dos órgãos do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência em matéria de controle, prevenção e repressão das infrações de ordem econômica”. O deputado quer enganar quem? Ou, na verdade, ele e seus conselheiros na redação desse capcioso artigo estão mesmo é contando com o baixo interesse da sociedade nesse debate, ao lado dos elevados rendimentos que poderão proporcionar as negociações das excepcionalidades?
Não que a última versão do deputado Bittar fosse das mais avançadas. Fortemente pressionado por um lado e sem nenhuma contrapressão equivalente por outro, o deputado viu-se forçado a recuar de suas propostas iniciais até chegar a um mínimo que pareceria irredutível. Ainda assim, por força de um golpe dado por um desses burocratas do Congresso que, agora sabemos (vide as notícias do Senado), mandam mais do que os próprios congressistas, teve o seu projeto enviado, para ser ainda mais descaracterizado, para a Comissão de Defesa do Consumidor. Evidentemente, esse golpe não foi ingênuo.
Um ponto importante que já se encontrava no projeto de Bittar foi mantido no de Vitalzinho: as outorgas de redes serão dadas por mera autorização. Na Lei do Cabo, as outorgas se dão por concessão: exigem licitação, têm prazo de começo e término, estão submetidas a contratos entre as concessionárias e o Poder Público. Assim como também se encontram em regime de concessão as estradas de rodagem privatizadas ou a construção e operação de geradoras de energia elétrica, sem falar da telefonia básica ou da radiodifusão aberta. A concessão é o instrumento legal que submete um dado serviço a um conjunto de obrigações de natureza pública. Na TV por assinatura, devido a um completo vácuo legal, os serviços via satélite podiam ser autorizados, mas os cabeados, regidos pela lei, não. Seria de se esperar que uma lei que tratasse do conjunto dos serviços de TV paga, incorporasse todos eles ao regime de concessão. Infelizmente está se caminhando na direção contrária, em mais uma afirmação da vontade do mercado sobre a da democracia. E logo quando uma enorme crise financeira acusou, de vez, os limites e as iniqüidades do projeto neo-liberal. Felizmente, para todos, no Brasil, essa crise não passou de marolinha...
Na televisão aberta, canais como Globo, Record ou SBT ocupam, cada um, uma banda de freqüência de 6 MHz. Na TV paga, canais como Fox, Discovery, HBO, quaisquer outros também ocupam, cada um, uma banda de freqüência de 6 MHz. Na TV aberta, as emissões são difundidas pelas ondas atmosféricas nas faixas VHF ou UHF. Na primeira cabem, na prática, no máximo 7 canais; na segunda, 69 canais. Ao todo são, no máximo, 76 canais de televisão. Além deles, nessas bandas, também se encontram menos de 100 canais de rádio FM e, abaixo delas, outros tantos canais de rádio AM, comunitárias etc. Com as tecnologias atuais, num cabo coaxial associado a uma rede de fibras óticas podem caber, graças aos milagres da engenharia, cerca de 200 canais de TV, mais dezenas de canais de música, faixas de rádio FM (a NET transmite algumas delas), além de muitos outros serviços, vários deles interativos, inclusive telefonia e internet banda-larga. O mesmo se pode dizer do serviço via satélite ou do via celular, agora nas faixas gigahertz. Se considerarmos que, numa mesma cidade, poderão coexistir duas, três, quatro até mais operadoras de TV paga, estamos falando de um espectro disponível para centenas – isto mesmo, centenas – de canais de TV, espectro este que, em alguns anos, substituirá econômica, política e culturalmente, esse atual limitado espectro de apenas 76 canais. Na prática, somente 7; a rigor, dois, no máximo três.
Na medida em que novas redes de TV paga vierem a ser implantadas por diferentes operadoras, essas centenas de canais se disseminarão no País, atingindo cada vez mais gente, inclusive populações de renda mais baixa. É inexorável. O Brasil será, assim, cada vez mais penetrado por uma televisão produzida e distribuída a partir dos Estados Unidos. Como nos tempos d’O Cruzeiro, nossa população será, cada vez mais, levada a se identificar com imagens e símbolos que conformarão a nossa sociedade, a nossa história, a nossa cultura a uma posição subalterna, desprezível, no limite, invisível, na periferia do mundo.
No debate da PL-29 se discute se a cultura e a história brasileiras terão algum espaço em centenas de canais de TV que já estão assumindo papel central na formação de nossas futuras gerações e no entretenimento de nossa atual classe média. Ou se, por esses programas cada vez mais popularescos e vulgares que estão crescentemente dominando a TV aberta nesses últimos anos, pastiches de nossa cultura e história acabarão sobrevivendo apenas em meia dúzia de canais VHF ou UHF destinados ao passa-tempo apassivador dos mais pobres e excluídos. |
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