Favela e “asfalto”: diferentes faces da violência

Luciano Cerqueira*

No dia 1º de julho, o Ibase revelou os resultados da pesquisa “Dimensões da cidade: favela e asfalto”, em evento realizado na Fiocruz. A pesquisa, parte do projeto Pacto pela Cidadania, foi realizada nos meses de abril e maio deste ano, ouvindo mais de 800 pessoas. O grupo foi composto por moradores(as) do conjunto de favelas conhecidas como Complexo de Manguinhos e moradores(as) de 26 bairros da cidade do Rio de Janeiro, que estamos chamando de asfalto.

A pesquisa teve como principais objetivos: identificar a percepção de cidadãos e cidadãs cariocas sobre a relação entre a favela e o “asfalto”; avaliar o conhecimento do “asfalto” sobre o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC); e saber como as pessoas que moram em Manguinhos estão avaliando o programa. Foram elaborados dois questionários, um para cada grupo de entrevistados(as) (mas com uma parte comum aos dois, para efeitos de comparação), divididos em blocos: avaliação de serviços públicos, percepção de preconceitos, relação entre asfalto e favela, violência, conhecimento sobre o PAC, entre outros.

Dentre as tantas informações relevantes, quero destacar uma: a questão da violência. Os números revelam que mais da metade das pessoas – tanto as que moram em Manguinhos quanto as que moram no “asfalto” – já cancelaram alguma atividade por insegurança. Os números são: 54,3% para Manguinhos e 50,6% para “asfalto. Na cidade do Rio, a violência tem impedido a continuidade das rotinas pessoais.

Embora os números sejam altos e os resultados parecidos, cabe aqui uma especulação: os problemas relacionados à violência que afligem um grupo não são os mesmos que afligem o outro. Enquanto moradores(as) do “asfalto” se preocupam com jovens e crianças nos sinais de trânsito, quem mora em Manguinhos, e em outras favelas, está preocupado com a violência policial e com a violência do narcotráfico.

Em outra parte do questionário, perguntamos sobre o tipo de violência de que já foram vítimas. Confirmamos que em um país campeão de desigualdades (disputamos o primeiro lugar com o Burundi e Serra Leoa), a violência também se manifesta de forma desigual.

Quando falamos de crimes relacionados à integridade física – tentativa de homicídio, agressão física, agressão verbal, ameaça de morte e violência policial –, as pessoas que moram em Manguinhos são as maiores vítimas. Quando tratamos de crimes contra o “patrimônio” (roubo de carros, roubos e furtos de uma forma geral etc.), moradores(as) do “asfalto” são os(as) mais vitimados(as). Os dados nos levam a crer que morar em Manguinhos é estar constantemente exposto ao risco de morte, independente da hora do dia, enquanto morar no “asfalto” é estar constantemente sujeito a perder bens.

Embora estejamos falando da cidade do Rio de Janeiro, essa é uma situação que acontece com certa frequência em muitos lugares do Brasil e do mundo. Por isso, embora pensar soluções para Manguinhos e para o restante da cidade seja válido (e necessário), temos que começar a pensar soluções mais amplas, articuladas com políticas sociais.

Não há dúvida que vivemos em um mundo mais violento do que há 20 anos. Os números1 da violência não param de crescer. A taxa de homicídios na América Latina está em 19,9 por 100 mil habitantes. Quando desagregamos por idade e olhamos a faixa de 15 a 24 anos, o número vai para 36,6 por 100 mil. Quando analisamos os dados por país, a situação do Brasil é desconfortável. Vivemos no 6º país mais violento do mundo, com uma taxa de 25,2 por 100 mil habitantes. El Salvador é o mais violento, com taxas de 48,8 por 100 mil habitantes. Olhando a taxa de homicídios da população jovem, nosso lugar na tabela se altera um pouco e subimos uma posição, infelizmente, com uma taxa de 50 por 100 mil habitantes. Podemos perceber claramente que são os jovens (de Manguinhos (RJ), de Heliópolis (SP), Querosene (MG), Favela do Papelão (PE), Candial (BA) e etc.), do sexo masculino, moradores(as) de favelas, os(as) que mais morrem no Brasil. Baixa renda, baixa escolaridade e pele escura são o alvo preferencial da polícia brasileira.

Hoje, muita coisa mudou. A polícia mudou, nós mudamos, os criminosos mudaram. Para enfrentar os criminosos, o estado precisa de um aparato policial bem treinado, equipado e remunerado, que efetivamente combata o crime, mas que trate todas as pessoas como cidadãos e cidadãs. Quem mora em Manguinhos tem os mesmos direitos de quem mora na Lagoa. A polícia tem de prender mais e matar menos. Isso é o trabalho dela. Claro, existem situações que o confronto é inevitável (e, infelizmente, as mortes ocorrerão), mas parece que a polícia brasileira, e a carioca em especial, atira primeiro e pergunta depois.

A pesquisa pode alertar a todos(as) nós, moradores(as) ou não de favelas, sobre a necessidade de nos envolvermos nas soluções dos problemas. Não podemos mais olhar jovens negros mortos nas capas dos jornais e não nos importarmos. E até achar que, assim, ficaremos mais seguros. Não agir de forma responsável, não tentar fazer parte da solução, é agir como cúmplice. Isso é verdade para quem mora em Manguinhos, para mim e pra você.

*Pesquisador do Ibase.

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