JOSÉ CARLOS DOS ANJOS*
Os espaços de interação que envolvem processos de recrutamento, filtragem e rusgas sociais, estão informados por esquemas geradores de apreciações e expectativas do tipo: "quando o negro não suja na entrada, suja na saída". Conceituar raça do ponto de vista sociológico é levar em conta o peso histórico do efeito agregado de milhares de reconhecimentos cotidianos ligeiros e insustentáveis como esse. Trata-se do efeito histórico de dispositivos objetivos e de disposições subjetivas para repartir e definir o lugar das pessoas tendo como uma das bases de apreciação o fenótipo. O "lugar de negro", esse execrável princípio de partição de populações, se faz evidente porque existe esse substrato material causador de impressões marcantes em disposições subjetivas preparadas para racializar.
Não é porque cientistas dizem que raças não existem que elas passam a não existir socialmente. Historicamente, a não existência de raças precisa ser praticada, imaginada em dispositivos institucionais concretos, tornada presença visível de negros nos espaços mais caros da nação, sob pena de ficarmos condenados à presença visível da insistência de raça.
A entrada nos campos mais especializados de concorrência social como é o caso das profissões liberais, a universidade, os mundos artísticos de elite, estão duplamente interditados aos negros. Em primeiro lugar pelas exigências vinculadas ao direito de entrada, condicionadas pelo peso das heranças (no caso do vestibular, o capital econômico que faculta o acesso a cursinhos, por exemplo).
Em segundo lugar, a cor da pele conforma um habitus racista que se expressa, sobretudo nos momentos de seleção para cargos e funções dos espaços sociais mais institucionalizados. O modo de funcionamento do racismo limita tanto mais as expectativas com relação a candidatos negros quanto mais elevados os níveis de concorrências. Mais ainda do que a ausência de capital econômico, cultural e social, as trajetórias negras carregam uma herança (negativa) que se reproduz continuamente, que é o destino na forma como ele é socialmente construído e incorporado.
Isto é, uma criança negra que não vê nenhum médico negro nas novelas e não tem nenhum parente médico dificilmente poderá desenhar para si um destino de médico. Uma família negra que sabe que um investimento custoso nos níveis iniciais de ensino não irá se reverter em possibilidade de entrada na faculdade para a sua criança dificilmente fará esse investimento por um longo período de tempo. Não se trata apenas, portanto de uma questão de desigualdade na distribuição de renda. Há uma desigualdade na distribuição de expectativas de ascensão social. É essa reorganização nacional da economia das expectativas que está hoje em jogo quando se fala em políticas afirmativas, como as cotas.
* José Carlos dos Anjos é doutor em Antropologia e Professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (IFCH/UFRGS).
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