Jeansley Lim
O debate em torno da política de ação afirmativa para os negros nas universidades públicas retoma contradições e tensões da sociedade brasileira, contrapondo as postulações teóricas acerca da cidadania e suas práticas sociais atualmente.
As distorções sociais são resultado do acesso desigual às riquezas socialmente produzidas, cuja prevalência de interesses e privilégios de um grupo social sobre outros se mantém, seja pela supressão de classe, de gênero ou étnico-racial.
Vale ressaltar que a política de cotas se insere numa estrutura sócio-jurídica capitalista, com vistas a integrar socialmente grupos sociais neste sistema. Portanto, o que se discute é a efetivação de incentivos para a consolidação de direitos sociais para os negros no contexto de uma ordem legal restrita. Assim os pressupostos teóricos por ora analisados buscam contraporem os argumentos contrários a efetivação das cotas como uma política de ajuste e integração social.
O argumento histórico nesta disputa pela efetivação das cotas possui um caráter paradoxal e controverso. Ora para legitimar a reparação em favor dos negros, ora para sustentar a idéia de que inexiste um abismo racial no Brasil, enfatizando que o problema é estritamente social. Nesse sentido, o presente texto busca refletir a coexistência entre as desigualdades sociais e raciais, cuja superação depende de políticas específicas para suprimir os mecanismos sociais que as reproduzem, e a necessidade dos movimentos sociais e entidades que representam os interesses dos trabalhadores de defenderem o apoio às cotas como uma política social de classe.
O legado histórico
O primeiro aspecto a ser refletido são os significados da concentração de terras e a escravização dos negros como elementos análogos da formação e sustentação da sociedade brasileira. Afinal, estamos falando de um país cuja população negra é a segunda maior do planeta e que detém o primeiro lugar em concentração de terras.
A apropriação do trabalho do negro pelo escravismo instituiu as bases das relações sociais, impregnadas pelo paternalismo, que se caracteriza pela difusão da ética do trabalho degradado e de uma imagem depreciativa de povo. Já a grande propriedade e o modelo agroexportador lançaram as arestas de um sistema econômico restrito e desigual.
Enquanto a elite nacional colonialista se manteve indiferente às necessidades da maioria da população.
Por conseguinte, a grande propriedade rural se constituiu um dos maiores obstáculos para a cidadania no Brasil no seu processo de formação. A concentração fundiária é uma herança colonial, antecede a escravidão, embora tenha se consolidado a partir desta. Desde as capitanias hereditárias a concessão de terras foi o único meio para a obtenção da propriedade, até meados do século XIX. Isso gerou um processo irreversível na trajetória política brasileira, o qual o poder político se constituiu atrelado à concentração do poder econômico. A elite política imperial representava o poder dos grandes proprietários rurais e o aparato estatal executava os interesses dessa classe, mantendo a população distante dos processos decisórios e tendo na propriedade do escravo o instrumento de coerção e controle social.
O iminente fim da escravidão após a proibição do tráfico negreiro pressionou a aprovação da Lei de Terras, de 1850, que tinha como intenção a garantia da ordem vigente ao impedir o acesso à terra de grande parte da população, em sua maioria trabalhadores negros livres, ao definir critérios rígidos para obtenção da propriedade. Desse modo, se institucionalizou uma prática social permissiva, em que os proprietários rurais se colocavam acima da lei e mantinham um controle austero sobre os trabalhadores.
A escravidão, por sua vez, se tornou um lastro social difícil de ser superado pelas sucessivas gerações. A lei distinguiu brancos e negros, cidadãos e não cidadãos. Corroborou para a existência de conflitos étnicos e raciais no processo de transição para o trabalho livre, em que o trabalhador negro teve que conviver com o estigma do trabalho degenerado, amoral, restrito aos afazeres braçais, propenso ao crime e à vadiagem.
Embora a resistência e a luta antiescravista pusessem fim ao sistema escravocrata, não foi capaz de democratizar o acesso a terra e perpetuou a discriminação racial. A existência de preceitos morais, sociais e políticos sustentados pela velha ordem patriarcal e colonialista não permitiu que se firmassem os direitos sociais dos ex-escravos. Ademais, as disputas políticas e sociais no decorrer do processo de transição do trabalho escravizado para o livre foi marcado pela relutância em libertar os escravos, que demonstra uma tentativa de preservação da propriedade, ora perpetuada pela concentração de terras e a expropriação dos trabalhadores livres em obtê-las.
Portanto, a grande propriedade é o símbolo da concentração econômica e das disparidades sociais, que teve na escravização da mão de obra o seu meio de perpetuação e após o término do escravismo não modificou a sua estrutura rígida e limitada. Enquanto a escravidão mitigou o acesso dos trabalhadores escravizados e livres a propriedade, restringindo a participação política a grupos sociais privilegiados, mantendo-se os traços estruturais do passado escravista no processo de construção da sociabilidade capitalista no Brasil. Já o trabalhador negro livre se viu segregado em virtude da sua ex-condição sócio-jurídica e da sua aparência (cor). Tendo a política de imigração européia o traço institucional da negação do negro como elemento nacional, cujos significados serão discutidos a seguir.
Raça: um conceito social
As teses do darwinismo social tiveram origem na segunda metade do século XIX, período o qual foi cunhado o termo raça, que concebia a divisão dos seres humanos em grupos sociais distintos, a partir de uma debilidade natural das suas variadas espécies. O principal objetivo desta perspectiva teórica era justificar a seleção natural como meio de explicar o imperialismo e o domínio de um povo sobre outro.
Segundo esta abordagem teórica a miscigenação brasileira legou ao seu povo a degeneração racial e, por conseguinte, o servilismo político perante outras nações. Enquanto os negros estavam condenados, naturalmente, à decadência e à corrupção, por estarem num estágio inferior na evolução da espécie humana. Essa postura discriminatória foi difundida e aceita pela elite política brasileira. Visava não somente atribuir à inferioridade racial dos africanos a causa de todos os males que atingiam o país, mas como uma tentativa de reproduzir os hábitos europeus, tidos como civilizados, na sua integralidade.
Esse tipo de análise reproduz, em parte, aspectos centrais do pensamento social e científico que se difundiu no Brasil após a década de 1870. Criou-se a idéia da raça com base nas distinções físicas e biológicas entre grupos humanos e as ciências sociais apropriaram do conceito para explicar as diferenças e valores culturais. Com isso, a indicação das posições sociais e acesso aos bens materiais foram atribuídos às desigualdades naturais, da raça, tentando-se justificar por meio da natureza os problemas estritamente relacionados ao social.
Tais teorias raciais só foram superadas a partir da década de 1930, com a tese da democracia racial, capitaneada por Gilberto Freyre, cuja miscigenação trouxe benefícios sociais importantes na formação social brasileira, em que as raças conviviam pacificamente, atenuando os conflitos e as tensões raciais, tendo na simbiose do branco, do negro e do índio um protótipo ideal de povo. Assim o estágio seguinte ao período das teorias raciais tentou suavizar as relações raciais no Brasil, negando a existência do racismo e protelando instituir meios para a sua superação.
No entanto, o conceito de raça passa a ser incorporado socialmente. Deixa de ser uma abstração teórica e se institucionaliza nos aparelhos ideológicos e de coerção do Estado. Desta feita o racismo brasileiro desenvolve uma característica peculiar: se oculta por trás de uma suposta garantia da universalidade e da igualdade das leis, que do ponto de vista material não atendem às expectativas/necessidades prementes dos negros.
Igualdade e equidade racial
O Supremo Tribunal Federal - STF julgará duas ações a respeito do mérito constitucional das cotas. A primeira impetrada pelo DEM, ex-PFL, contra a reserva de 20% da vagas para negros na Universidade de Brasília - UNB. A segunda pelo estudante Giovane Pasqualito Fialho, por não ter sido aprovado no vestibular da UFGRS mesmo obtendo nota superior a de estudantes cotistas. Ambas as ações alegam que este procedimento fere o princípio da igualdade, previsto constitucionalmente, posto que esta prerrogativa privilegia um grupo social em detrimento de outro.
Esta interpretação da lei assume um caráter estritamente instrumental, em que a igualdade é tida como supostamente uma garantia material. Ignora o contexto social e a singularidade dos sujeitos a que se aplica a norma, destituindo os processos sociais como construções baseadas nas experiências de grupos sociais distintos. Busca equalizar aquilo que é notoriamente avesso na esfera social.
O princípio da igualdade equiparou no âmbito jurídico nobres e plebeus a categoria de cidadãos, pondo fim à sociedade estamental (feudal) e instituindo a sociedade de classes (capitalista). Com isso, o estatuto jurídico se compôs de diversas leituras e ambigüidades, sendo a ideologia o alicerce da sua interpretação. Logo, a legislação não deve ser entendida apenas como um instrumento jurídico de dominação, mas um espaço de disputa e conflito.
Assim a lei assume uma função classista, em que se contrapõem o Direito Positivo - associado à idéia da ideologia vigente, e em que as normas são instrumentos usados pela classe dominante como forma de opressão - e o Direito Subjetivo - reivindicado pelas classes espoliadas, em que se centra a dimensão libertadora do Direito, para qual a retórica da lei adquire uma identidade distinta, oferecendo proteção aos destituídos de poder.
Desta forma, o que se defende com a implementação do sistema de cotas é a superação do conceito de igualdade como uma premissa formal, ou seja, para além do seu cunho contratual. Sua finalidade é denunciar o caráter não-universal e desigual da lei positiva, para que se possa atingir a equidade, ou seja, a reparação das injustiças sociais. Por isso, é importante entender o debate das cotas dentro de um processo de luta histórico de afirmação e inserção do negro na sociedade.
Cotas: uma perspectiva de classe
A proposta de tencionar a política de cotas para o âmbito social e não racial é uma estratégia dissimulada, como se os militantes em favor das cotas fossem contrários aos investimentos para a valorização da escola pública. O que se pretende é impedir a efetivação de um atalho que torne a universidade plural e diversificada. Logo, a ofensiva midiática e as sucessivas manifestações do meio acadêmico e jurídico para impedirem o avanço de importantes e bem sucedidas experiências de cotas nas universidades federais e estaduais em curso no Brasil representa o temor que esta política se institucionalize.
Por isso é importante reiterarmos que vivemos numa sociedade de classes e a defesa de uma política racial como mecanismo de ascensão e mobilidade social do negro deve ser tomada pelo conjunto da classe trabalhadora. O debate da questão racial ingressa no século XXI com a mesma necessidade de superar os limites da intolerância religiosa, os desafios do meio ambiente, as tensões das hierarquias masculino-feminino e da luta de classes.
Os movimentos sociais e entidades representativas dos interesses dos trabalhadores devem assumir a política de cotas como defesa intransigente dos seus interesses. Afinal, são as experiências comuns, herdadas ou partilhadas pelos excluídos que articula a sua identidade de seus interesses entre si contra outras classes, cujos propósitos se diferem e se opõem aos seus. Neste caso, as cotas beneficiarão o acesso e a democratização da universidade, já que para a maioria da população não seria possível sem a implementação desta política social.
Embora as cotas se enquadrem dentro de uma proposta reformista no interior da ordem liberal, sua efetivação contribuiu para repensar o atual estágio da pesquisa científica e do ensino superior, ao incluir um grupo social historicamente excluído. Caso o STF reconheça a emergência e a necessidade das cotas, esta decisão abrirá margem para que tais benefícios se estendam para outras áreas de atuação, conforme prevê o Estatuto da Igualdade Racial. Caso contrário, se tornará uma grande derrota para as aspirações daqueles que lutam por justiça social no Brasil.
*Jeansley Lima é mestre em História Social pela UNB
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