O Hip Hop brasileiro, para além do Capital


Hertz 'Libriano Loko'

O Hip Hop e minha história de vida sem confundem, não pelo fato de ter sido eu um dos fundadores de uma das mais antigas e importantes organizações do Hip Hop militante do nordeste, o Quilombo Urbano, mas por que de fato o Hip Hop mudou completamente minha visão social sobre o mundo e sobre mim mesmo.

Eu lembro, como se estivesse folheando um álbum de fotografia em preto e branco, da época em que comecei a dançar break, entre 1983 e 1984. Lembro das saudosas rodas de break da velha Praça Deodoro no centro comercial de São Luís, do Cassino Maranhense, da Safári, do Foot Loose entre outras dezenas. Nesses espaços me sentia dominado por um certo sentimento de liberdade em meio à agonizante e agonizadora ditadura militar. A 'liberdade' momentânea que o Hip Hop me proporcionava, e eram tantos os momentos, contribuiu para que eu, por volta de 1989, abandonasse a escola que era, e ainda é, impregnada por um racismo viril. Eu 'fugia' da escola como os comunistas tentavam fugir da 'Operação Condor' ou como muitos dos meus antepassados fugiam das senzalas. Mas, assim como os comunistas e os aquilombados, eu retornaria aos cativeiros para tentar miná-lo por dentro, hoje sou educador. Veja só que coincidência, enquanto eu era afastado do ambiente escolar pelo racismo 'oculto' de nossa educação formal, enquanto o muro de Berlim vinha abaixo e a União Soviética se abria como uma flor ao capital, além da inesquecível derrota de Lula para Collor de Mello também em 1989, ali nascia o Quilombo Urbano, ali eu nascia enquanto afro-descendente, ali era plantada uma semente comunista num solo fertilizado pelo Hip Hop. Nascíamos dos escombros do 'socialismo real' e dos olhos úmidos da classe trabalhadora e da juventude pobre brasileira derrotada pela direta e pelo imperialismo.

Que ninguém esqueça, que ninguém duvide que é das entranhas do capital que nasce os germes de sua própria destruição. Nós, juventude hiphopiana da década de 1990, somos frutos dessa contradição. Enquanto os intelectóides do capital alarmavam prazerosamente que a história havia chegado ao fim da linha e que as classes sociais deixavam de existir, uma nova espécie humana emergia dos subúrbios, das favelas, dos becos, dos barracos de madeiras, das ruas sem esgoto ou com esgoto a céu aberto, sim, era isso mesmo, um novo homem, para falar com Gramsci, 'irresponsavelmente' endiabrados com os 'playboy's', com os 'gambés', com os 'guvernos', com a GlOBO, em fim com o 'sistema'. E os intelectuais do capital' A grande mídia' Os capitalistas' Fingiam que não existíamos, fingiam, é claro, pois seu 'braço de ferro' não tinha 'colete de chumbo' nos ouvidos, 'NÃO CONFIO NA POLÍCIA RAÇA DO CARALHO' dizia o Racionais... e como era forte a ressonância dessas frases em nossas periferias. A resposta não poderia ser diferente, rapper's presos ou espancados, grupos e artistas processados, clipes censurados, e a nova espécie humana se proliferando feito praga nas fronteiras dos jardins de pétalas de ouro da burguesia.

No entanto, sem grande alarde, a velha espécie humana do capital, que há mais de 500 anos se alimenta de sangue africano, reunia-se em seus laboratórios ideológicos para minar com a praga expansiva ou, para pelo menos, transformar essa nova espécie de seres mutantes em homens 'civilizados', 'comportados', 'comprometidos' e com 'responsabilidade social'. Era necessário fazer a ponte entre o capital e a favela ou entre a favela e o Estado.

Semana passada vi duas fotos que muito me emocionou. Uma do encarte de um CD do G.O.G. em que o mesmo está dançando break ainda muito novo. Essa aí me lembrou dos momentos relatados acima. Vi ali o G.O.G. como se fosse um jovem mutante contorcendo o corpo embalado pela indústria cultural norte-americana. Ironia do destino, mais tarde esse mesmo G.O.G se transformaria num dos seus maiores opositores dessa industria cultural no universo da cultura Hip Hop brasileira. A outra foto é a do Mano Brown com apenas 18 anos de idade escrevendo uma canção sentado em uma simples cama de seu humilde barraco, essa foto está na entrevista que ele concedeu a revista 'Rolling Stone' do Brasil, aliás, a foto me comoveu mais do que a entrevista em seu conjunto, e vou dizer por que.

Naquele mesmo período eu escrevia também uma canção chamada Menor Abandonado, nada comparada com as que o Brown escrevia, é claro, mas que virou hit em São Luís até a primeira metade da década de 1990. No entanto pensei, caralho!, quantos de nós pelo Brasil afora não estava fazendo o mesmo naquele mesmo período e em condições similares. Era conspiração pura mesmo, era a nova espécie de homens com caneta e papel na mão, uma idéia na cabeça e uma imensidão de problemas revoltantes ao redor de seus barracos como fonte de inspiração.

Tente fazer a ponte no contexto: os ideólogos do capital escrevendo e publicando o 'atestado de obtido' da luta entre as classes e da história, enquanto nos barracos esquecidos pelo IBGE, jovens favelados, sem ao menos saber o que era luta de classes, fotografando fielmente em seus versos a 'guerra interna' da periferia ou da periferia contra os boys e vice-versa. Eis ai a contradição fundamental; enquanto Fukuyama escrevia o 'Fim da História' nos gabinetes militares do Tio Sam, nossos guerrilheiros se inspiravam na agonia cotidiana da periferia. Na situação limite da favela o ato limite seria inevitável e viria em forma de poesia musicalizada, visual e corporal.

Algumas pessoas tem me perguntado sobre o que achei da recente entrevista do Brown a revista Rolling Stones, isso em função do artigo que eu escrevia em 2008 sobre a provável parceria do Racionais com a Nike. Quem leu esse artigo sabe que ali eu não estou necessariamente dialogando com o Racionais, minha tentativa de dialogo é com a juventude de periferia, é com a juventude do Hip Hop de um modo geral. Era de tentar levantar alguns questionamentos do por que o capital, a grande mídia e os governos estão com os olhos tão esbugalhados no Hip Hop brasileiro. (In) felizmente o Racionais é o grupo mais importante do Hip Hop nacional e eles próprios combatem esse racionaiscentrismo, dizem constantemente que não querem ser referências para ninguém a não ser para os parceiros e para aqueles que estão próximos deles, ainda que suas músicas estejam latejando nas cabeças de milhões de jovens brasileiros, até então sem referência alguma de classe e de raça. Ora, enquanto o capital não for destruído ele seguirá expropriando as riquezas materiais que produzimos coletivamente, tal como nossas referências políticas, a exemplo do PT e do próprio Lula e tantos outros exemplos que poderíamos citar. À medida que a crise do capital se acentuar o canto da sereia soará mais forte ainda nos tímpanos dos favelados que são referencia política de peso e, infelizmente, muitos se transformarão em sereias também. Agora, o germe de sua destruição o capital não poderá eliminar jamais. Eu não tenho dúvida de que as periferias criarão novas referências, como estão criando de fato. Em todas as províncias do Brasil colonial em que existiam senzalas, também existiam fugas, revoltas, quilombolos, etc. A história segue assim, a favela precisa sobreviver politicamente.

Na virada de 2009 para 2010 um ex-aluno meu assassinou a tiros o irmão de um amigo nosso e militante do Quilombo Urbano. Nessa mesma 'borroca' mais dois conhecidos foram mortos e alguns baleados, tudo isso no bairro da Liberdade, meu bairro adotivo. Isso me deixou anestesiado, impotente e sem saber o que fazer, mas o rap foi à saída. Desabafei escrevendo a música 'Coração de Mãe'. Duas semanas depois o Quilombo Urbano lançava uma coletânea e em uma das canções do grupo Dialeto Preto tá lá a voz do parceiro que perdeu o irmão e a canção que escrevi. Uma semana depois em visita a meu irmão na casa de detenção 'Pedrinhas', percebo que por lá já estava 'bombando' a coletânea do Quilombo Urbano, especialmente a canção 'TV Vendida' que denuncia a atuação hipócrita dos programas policiais de São Luís. Na seqüência fiquei sabendo que 'Coração de Mãe' está virando hit nas comunidades do bairro Liberdade que se envolveram nos crimes da virada do ano.

É assim, penso eu, que o Hip Hop se movimenta, não pelas ondas sonoras das grandes emissoras de rádio ou pelas telas do 'plim plim', mas pelas veias pulsantes da favela. A favela é o oxigênio do Hip Hop e o Hip Hop é câmara de oxigeno dos favelados, é ele quem mantém a sobrevida dos sonhos de muitos de seus moradores.

Enquanto aqueles indivíduos que se encontram na linha frente do Hip Hop não compreenderem esse movimento como um movimento cultural atípico, completamente diferente dos demais até então existente, nossa tendência será tentar fazer do Hip Hop um movimento igual aos outros que a indústria cultural abocanhou. E essa ficção ideológica é ruim inclusive para a auto-estima da juventude hiphopiana. Muitos chegam a afirmar, irresponsavelmente, que nós não estamos bem financeiramente por que somos péssimos músicos, péssimos letristas, não sabemos rimar, somos amadores, sectários etc, etc, etc. Até parece que os músicos de sucesso da grande mídia são bons músicos, bons letristas, bons profissionais. Sim, mas bom para quem' Sem nunca ter freqüentado escola de música, de dança, de arte, de poesia, muitos de nós são grandes artistas e se estão fora dos espaços convencionais é por que nossa cultura tem conteúdo de classe. A mídia não nos quer, do mesmo modo que não quer o MST, mas quer os ruralistas, não quer a CONLUTAS, mas quer a FIESP, não quer os movimentos sociais combativos, mas quer as ONG's.

Muitas águas hão de rolar nos próximos anos nesse nosso apaixonado movimento Hip Hop, muitos abandonarão a barca, muitos virarão garotos propaganda do imperialismo cultural, mas enquanto não cessar a guerra do capital contra o trabalho não cessará também a cadeia produtiva de kamikazes periféricos, e essa é uma contradição que só cessará com a destruição do capitalismo



Hertz é militante do Movimento Hip Hop do Maranhão 'Quilombo Urbano', do Movimento Hip Hop Militante 'Quilombo Brasil' e vocalista do grupo de rap Gíria Vermelha.

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