Arthur Bispo do Rosário criou um universo particular e ao mesmo tempo universal. É íntimo por partir de motivações profundamente enraizadas no seu subconsciente e alcança o outro na medida em que se concretiza na desconstrução e reconstrução de elementos percebidos e incorporados à vida cotidiana da sociedade de consumo, ao mesmo tempo em que se origina em códigos incorporados à civilização judaico-cristã.
A missão de reconstruir o mundo para apresentar a Deus no dia do juízo final não deixa de encontrar ressonância nos medos, nas culpas, na consciência permanente do pecado que aflige a maioria dos cristãos. Cada um a seu modo procura ou deseja reconduzir e transformar sua vida para o momento de encontrar a divindade, em que não haverá segredo ou dissimulação, ou o momento do juízo final, como Bispo acreditava, em que serão definitivamente separados os bons dos maus.
Daí, estandartes e mantos remeterem possivelmente o observador a aspectos ritualísticos da religião, por mais que se busque afastar a influência ou crença nessa opressão do divino.
O crítico Frederico Morais (apud FARIA, 2004) classificou seu trabalho em: 1) o texto: nos estandartes bordados; 2) as roupas: o Manto da Apresentação e os fardões; 3) os objetos: ready-made mumificados (enrolados por linhas) e construídos (barcos, miniaturas); 4) as assemblagens (ou vitrines, como dizia Bispo).
Rosário recolheu e retrabalhou objetos, fragmentos e restos do mundo industrial. Sua reconstrução era precedida do recolhimento de materiais descartados, encostados, inservíveis, simplesmente encontrados no lixo ou da obtenção de linha pelo desfiar de roupas, inclusive dos uniformes dos internos da instituição psiquiátrica em que vivia, para utilizar em bordados. Limpava o mundo, reciclava-o e reedificava-o.
Há uma preocupação de ordem patente em sua obra, a exemplo de trabalhos como Vassoiras, Planeta Paraízo dos Homens, Sandálias e Peneiras ou Canecas. Reconstruir era também organizar as coisas. Dessa idéia de ordenamento, decorre muito da harmonia estética de sua produção.
O artista foi vanguardista em muitos dos sentidos em que essa palavra pode ser usada. Ele reciclou e incorporou objetos ao seu trabalho em uma época em que não havia a preocupação ecológica declarada dos dias de hoje, nem as artes plásticas tinham se apropriado desses materiais.
Fazia-o de modo absolutamente pop, muito antes da pop art da década de 60, o que faz com que seja comparado a Marcel Duchamp (BRAGA, 2001). A relação é fácil de ser pensada. Para tanto, pode-se observar A fonte, de Duchamp, e Vaso Sanitário, de Rosário; ou Ready Made, do primeiro, e Roda da Fortuna, do último.
Foge dos suportes tradicionais, cria objetos tridimensionais, é precursor do que se chama hoje de instalação. Fez isso sem freqüentar escola de arte, ir a museus ou exposições, ler livros, aprender a pintar, a desenhar, a esculpir.
O resultado parece simples, decorativo, despretensioso, lúdico, mas é sempre minuciosamente trabalhado e a concepção é sofisticada e elaborada.
O conjunto de objetos produzidos pode ser tomado como uma narrativa. Segundo Silva (2007), narrativas podem ser realizadas com objetos e imagens colocados em relação e não apenas com palavras. Criando códigos muito próprios, Bispo do Rosário cria uma cosmovisão, conta a sua história e percepção do mundo.
Palavras ou pedaços de frases incorporadas às obras ultrapassam a função de signos lingüísticos, transformando-se em aspectos pictóricos, a exemplo da obra Como é que eu devo fazer um muro atrás da minha casa.
Negando-se a tomar os remédios que lhe entregavam para o tratamento, ele mergulhou no delírio como opção de criação. O preconceito criado pela loucura desse artista pode tentar diminuir a dimensão de sua arte.
Huxley (2002) tratou do uso de drogas alucinógenas como instrumento de abertura da percepção humana. Quantas obras não foram criadas sob o efeito de estados alterados de percepção? Nem por isso essa produção artística é questionada.
Discussões à parte, ninguém pode dizer que, com a sua arte, Bispo do Rosário não honrou sua missão.
Múltiplos Olhares
A obra de Arthur Bispo do Rosário pode ser apreciada sob diversos pontos de vista.
Sob a perspectiva psicológica, possibilita a análise de como as imagens da loucura do artista transportaram-se para os objetos.
Na perspectiva estética, é possível discutir e avaliar sua contribuição para a arte brasileira de vanguarda.
Pela ótica mítica, pode-se tentar recompor o seu universo onírico e buscar traduzir sua simbologia e sua cosmovisão, de significados cristãos e profanos.
Há outras abordagens possíveis. O leigo, talvez, prefira apreciar as cores, composições, simetrias e os aspectos lúdicos de sua arte.
No entanto, é impossível não ficar curioso e surpreendido pelo recolhimento e aproveitamento de objetos, pelo esforço colecionador e pela disposição ordenada de coisas, pela profusão e riqueza de detalhes, operados com minúcia e cuidado. Não se pode igualmente negar o seu talento, que se expressa de múltiplas formas e em variados suportes.
Referências
BRAGA, Alfredo. Arthur Bispo do Rosário Michel Duchamp: a reinvenção da arte. Site pessoal do autor. 2001. Disponível em: http://www.alfredo-braga.pro.br/ensaios/reinvencao.html. Acesso em: 25 maio 2008.
FARIA, Fabiana Mortosa. Arthur Bispo do Rosário e seu universo representativo. Revista Urutágua. Maringá, PR, n. 5, dez./mar 2004. Disponível em: http://www.urutagua.uem.br/005/12his_faria.htm. Acesso em: 25 maio 2008.
HUXLEY, Aldous. As portas da percepção. Rio de Janeiro: Globo, 2002.
SILVA, Avani Souza. Arthur Bispo do Rosário: narrador benjaminiano de estórias bordadas em diálogo com a literatura infantil e juvenil. Revista Crioula. São Paulo, maio 2007. Disponível em: http://www.fflch.usp.br/dlcv/revistas/crioula/edicao/01/Artigos/02.PDF. Acesso em: 25 maio 2008.
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